Será excesso poético dizer que Aldina Duarte é sinónimo de liberdade, mas não o é dizer que a fadista, que tem hoje 52 anos, quer ser livre. Sempre. Há poucas coisas que a movam tanto na vida, há poucas coisas de que lhe custe tanto abdicar, e isso não é só verbo de encher, percebe-se nas opções de uma carreira que começou há já 25 anos.
Um exemplo? Antes de uma entrevista ao Observador, a propósito do seu próximo disco, Roubados — que será editado esta sexta-feira, 1 de novembro —, Aldina Duarte confidenciava-nos que tinha acabado de tomar uma decisão: não cantaria mais ao vivo sem condições para isso, mesmo que o desafio lhe fosse feito durante uma entrevista. E se não quer, não canta. A fadista é mesmo assim. As decisões são dela, a agenda é ela que a decide. Não gosta de fazer digressões? Não faz. Ainda tentou, após editar o seu primeiro disco de estúdio, Apenas o Amor, de 2004. “Fui aos continentes quase todos, acho que só não fui à Austrália”, garantiria. Não é uma questão de estatuto nem capricho, é a alergia a prisões.
Os palcos dos concertos não lhe são obviamente estranhos e até será difícil contar os espetáculos ao vivo em que já participou. “Eu gosto de concertos, não gosto é de tournées”, explicará. O seu palco de eleição, contudo, é outro: as casas de fados, onde só entrou — ao contrário do que é habitual nos fadistas — já adulta, e que nunca mais deixou.
Foi precisamente para homenagear a cultura fadista, que se aprende por excelência quando se canta de luz apagada, a olhar nos olhos os ouvintes que estão a poucos metros de distância, que Aldina Duarte quis comemorar os seus 25 anos com um disco de “versões” (assim as chama ela). Roubados é “uma espécie de cartilha para quem chega à casa de fados e ainda não tem repertório próprio”, são clássicos, uns mais conhecidos e outros mais obscuros, feitos para alguns dos grandes fadistas e cantores portugueses, de Maria da Fé (“Porta Maldita”) a Tony de Matos (“Vendaval”). Feitos, também, por alguns grandes nomes da composição e escrita fadista, como Fontes Rocha (compositor, com Jorge Rosa, de “Porta Maldita”, cantado por Maria da Fé), David Mourão-Ferreira (autor da letra de “Praia de Outono”), Frederico Brito e “Armandinho” (criadores de “Padre Nosso”) e Alberto Janes (“Oiça Lá Ó Senhor Vinho”).
[A capa do disco:]
Aldina Duarte, que aqui interpreta os fados em trio, na companhia de Paulo Parreira (guitarra portuguesa) e Rogério Ferreira (viola), quis gravá-los como tributo à cultura que a fez cantora e a assim fez. Só tem pena de já não os poder ouvir a todos, na voz dos seus intérpretes originais, alguns dos quais gente a que chama “mestres”, que viu cantar incontáveis vezes nas casas de fados e cuja ausência lhe provoca “uma falta, quase uma carência”.
Na entrevista, não falaria só do disco, da “inquietação” que a faz querer mudar sempre que as coisas estão estáveis, de ter ousado começar a expor-se mais na música — cantando-se a si em vez de cantar o que lhe é alheio —, das inseguranças e do que a fez chegar ao fado. Também falaria da amargura de perder quem aqui homenageia: “Estas pessoas já não estão nas casas de fados, algumas já morreram e outras já não cantam. Agora vou continuar a aprender com quem?” Ainda lhe perguntaríamos se são uma perda para o fado, ela responderia como sempre, sem pruridos e com uma clareza desarmante: “Falta, falta, fazem-me a mim, desculpem lá o egoísmo”.
Tem um novo disco, Roubados, cuja capa é uma fotografia sua com 21 anos. Porquê?
Foi quando tive o meu primeiro emprego, saí da [escola] António Arroio para a redação do jornal O Século, onde era redatora no suplemento cultural. Curiosamente, um dos primeiros trabalhos que me pediram foi uma entrevista à Maria da Fé.
Foi aí que a sua vida se transformou?
Não. Curiosamente é a pessoa com quem trabalho há mais anos, é a pessoa mais importante na história do meu fado porque é a dona do Sr. Vinho, onde permaneço há 23 anos. Porém, quando fui fazer a entrevista nem sequer sabia o que era uma fadista. Tive de ir saber. A ironia do destino é esta e a escolha da capa tem a ver com aquele ter sido o meu primeiro contacto real com o fado.
Na comunicação oficial do disco, refere-se que esta fotografia mostra-a com a idade “com que se encantou pela arte que se tornou na segunda grande revolução da sua vida”. Esta segunda revolução é o fado e a primeira é o 25 de abril?
[riso] A primeira é o 25 de abril, sempre. E a segunda revolução é o fado, de facto. Parece que não são condizentes, mas são no meu caso. Diria que tive uma vida e fui uma pessoa até descobrir o fado, quatro anos depois dessa fotografia, quando ouvi a Beatriz da Conceição cantar pela primeira vez ao vivo numa casa de fados — e depois tive outra. Nunca tinha ouvido fados ao vivo, não fazia ideia quem era a Beatriz da Conceição, fui lá porque o Jorge Silva Melo [encenador, escritor e realizador] pediu-me para fazer uma pré-entrevista para um documentário que ele gostava de fazer sobre a Beatriz da Conceição, o Fernando Maurício e a Celeste Rodrigues. Fui um bocadinho às cegas, mas quando a ouvi cantar nem coragem tive de me aproximar, achei que estava a um metro de distância da Billie Holliday, por exemplo. Ou da Nina Simone, tanto faz. Estava perante uma cantora de exceção, uma artista rara e fiquei com muita vergonha de não saber nada sobre fado sendo esta uma arte que só existe aqui.
A partir daí mudou tudo. Um ano ou dois depois comecei a cantar, quase dois anos depois tive o meu primeiro projeto profissional que foi no Teatro da Comuna, com o Camané. E ainda hoje gosto tanto de ouvir como de cantar, não consigo escolher.
É engraçado que fale dessa proximidade que sente nas casas de fado. É preciso ter coragem para estar num sítio destes em que a proximidade é muita, a intimidade é muita? E ainda sente nervosismo?
Não, hoje já não sinto, para ser honesta. Mas é preciso coragem, muita. Sou uma pessoa que não tem vergonha de nada, é uma coisa estranha, não sei se é bom ou mau mas é uma característica minha. Sou é muito tímida, é muito raro alguém que não as pessoas da minha intimidade ouvir-me falar de questões mais privadas. Até chorar em público, para mim é uma coisa horrível. A verdade é que também faz parte deste canto aprofundar essa coragem, que diz e bem que é necessário ter para estar a um metro de distância de desconhecidos, num espaço que de sagrado só tem a alma que pusermos nele quando cantamos — porque quando a luz se acende, é um espaço de passagem e de restaurante. Não é como um palco, onde à partida já se está naturalmente protegido.
Há uma distância que ali não existe.
Ali o que há é só o baixar das luzes e o poder de concentração e entrega que os músicos e o fadista têm para cativar pessoas, que vêm de um momento de conversa que é interrompido pelo canto. A própria refeição é interrompida se for o caso. Há aqui quase uma luta para conquistar e criar todas as condições para que o fado aconteça. Nesse sentido acho que é mesmo uma questão de coragem, mas essa coragem também ajuda a moldar a voz, a forma de interpretar, a postura física, ajuda-nos a ser mais inteiros no que estamos a fazer — porque o público nunca é esquecido também.
Isso tem consequências depois, fora da casa de fados? Se se está menos protegido, se se está mais exposto enquanto se canta, sai-se da casa de fados e isso influencia a maneira como vemos os outros, a proximidade, a intimidade?
Exige um cuidado diferente. A pessoa que tem a profissão de fadista numa casa de fados precisa de saber gerir muito bem a proximidade com o público, com as pessoas conhecidas mas que não são amigas — agora com as redes sociais ainda mais cuidado tem de ter. As pessoas confundem muito facilmente um encontro artístico ou um encontro virtual com uma intimidade que não existe. E estou ali muito exposta, toda a gente sabe que se não estiver em concertos ou [impedida] por razões pessoais, estarei de terça-feira até sexta-feira no Sr. Vinho. É só ir lá e sabem que estou. Se não souber definir muito bem a fronteira entre o meu trabalho como fadista e a relação com o público naquelas circunstâncias, corro o risco de criar falsas intimidades com as quais não lido nada bem.
Com estes 25 anos de experiência, muitas noites passadas no Sr. Vinho, acha que as pessoas que vão lá ouvir fado são muito diferentes do que eram antigamente? Ou o turismo não alterou nada no ambiente que se sente nas casas de fado de Lisboa?
O turismo não alterou nada numa casa como o Sr. Vinho. Porque o Sr. Vinho tem uma história já bastante antiga e tem à frente uma das figuras icónicas do fado, a Maria da Fé. Como é uma artista e tem a dimensão que tem, tem um grau de exigência na direção artística da casa que não distingue se [os clientes] são portugueses ou estrangeiros.
O fado também não precisa da compreensão da língua para ser sentido, pelo menos em parte.
Não, basta a sonoridade e a personalidade vincada daquelas melodias. A maior parte das pessoas não resiste. Tem-se sempre uma reação mesmo que seja de repulsa, porque é de facto uma melodia com uma personalidade muito vincada e é uma arte musical com uma sonoridade muito singular. Não há mais música nenhuma no mundo onde se toque guitarra portuguesa. É impossível não haver uma reação, positiva ou negativa. Há uma coisa que é universal e temos de deixar de ter aquela mentalidade tacanha de que os estrangeiros são tontos ou que o povo é parvo. Não, as pessoas até podem não distinguir propriamente mas apercebem-se quando uma coisa é feita de uma forma falsa, preguiçosa, descuidada. Mesmo que não saibam exatamente o que é, sabem que aquilo não soa [ao mesmo].
Sabem que é mais plastificado?
Sim. E na reação depois nota-se. No Sr. Vinho isso é bom porque é logo direto, a Maria da Fé não permite isso, exige a todos os que lá cantam e tocam profissionalismo, entrega e cuidado. Exige o todo. Isto faz com que o Sr. Vinho não fique uma casa para o turista ver.
Foi no Sr. Vinho que ouviu mais vezes a “Porta Maldita” [tema que canta neste disco]?
Foi, por acaso foi. Aliás, só ouvi lá e em disco. Ainda que não fosse um dos temas que a Maria da Fé cantava regularmente, pedi-lhe até para o cantar. Fiz-lhe uma surpresa na Culturgest, quando fiz duas noites [de celebração] dos 20 anos de carreira. Nunca tinha cantado um tema da Maria da Fé em concertos e cantei-o ali sem que ela soubesse — foi uma surpresa e dediquei-lhe [o momento]. Ela depois percebeu porque é que algumas vezes lhe pedia [para cantar “Porta Maldita”].
Sempre gostei muito daquele fado. Não é dos fados mais conhecidos da Maria da Fé, porque ela tem uma obra muito vasta e ficaram outros [mais conhecidos] e não este, mas acho que é dos mais bonitos do repertório dela. Tive oportunidade de lhe pedir para o cantar e de o ouvir ali. A Maria da Fé é a artista mais importante no meu fado, mais do que não fosse por me ter dado logo de início um espaço na casa dela para crescer à minha vontade. Isso não é de somenos importância, pelo contrário, é preciso uma grande generosidade e convicção de que eu tinha algum valor. Ela sempre o achou. Mesmo quando desisti, ela é que me foi buscar.
Não teve só uma importância iniciática. Pode-se dizer que foi a Maria da Fé que a trouxe de volta para o fado, quando já tinha parado de cantar?
Foi. Foi mesmo a Maria da Fé. Na altura ainda era casada com o Camané e aconteceu quando o Camané estava a festejar o aniversário dele. Fomos fazer a festa lá [ao Sr. Vinho] com um grupo de amigos. Eu já não cantava há uns seis meses, algo assim. Nem pensava nisso, não queria pensar nisso sequer, fechei ali uma porta qualquer. E de repente a Maria da Fé, quando foi o momento dela cantar, resolveu dizer à sala cheia que a coisa que mais queria naquela noite era que eu fosse cantar, que tinha muitas saudades de me ouvir. Começou a dizer às pessoas que eu estava numa pausa mas que era evidente que ia retomar, porque tinha muito talento para desistir deste trabalho. Não estava a acreditar naquilo, disse: está tudo a enlouquecer-me. Não estavam a enlouquecer, estavam a enlouquecer-me.
O Camané estava sentado e disse: vá, vai lá cantar. Aquilo foi tudo muito estranho porque ela pediu-me para cantar sem intervalo, ou seja, durante o espaço da atuação dela. Pediu-me que terminasse. É uma coisa de uma generosidade e de um peso — ao mesmo tempo — incrível. Nesse momento já estava muito aflita, estava cheia de vontade de chorar. Disse-lhe que cantaria com certeza, mas que nunca o faria no espaço dela porque achava que era estragar qualquer coisa. Disse isto em voz alta. E achava mesmo, não estava a fazer género, tinha deixado de cantar exatamente por causa disso, porque achava que não tinha nada para acrescentar numa arte com talentos fantásticos como aqueles que ouvia. Estava a cantar e estava a ouvi-los a todos na minha cabeça a dizer: mas o que é que estás aqui a fazer?, vai-te embora. Acho que hoje em dia tenho uma grande resistência às críticas exatamente por causa disso, porque ninguém até hoje conseguiu dizer pior de mim do que o que eu já disse.
Vou fazer uma pequena inconfidência: antes desta entrevista, a Aldina recebeu uma chamada do António Zambujo — que canta consigo o “Rosa Enjeitada” neste disco e que deu-lhe uma vez um raspanete por ter essa resistência ao elogio, como já contou numa entrevista.
Um grande raspanete [sorriso]. Tenho uma insegurança artística que vai morrer comigo. Já não luto com ela, sequer, integrei-a. Mas também já não me faz desistir de nada, é uma amiga que tenho aqui que é chata como o raio. Fiz dessa insegurança uma amiga com mau feitio. E chegava a um ponto, as pessoas iam felicitar-me [ri-se] e eu só a chamar a atenção delas para as coisas que tinha feito mal na minha atuação. Uma dessas vezes o António assistiu, nem estava a acreditar no que estava a ouvir e quando as pessoas saíram deu-me um raspanete, um arraso. Aquilo marcou-me, também.
Este disco é apresentado como um “disco improvável”. Mas antes de irmos ao porquê de o ser, gostava de lembrar que o disco anterior, por exemplo, por causa da estrutura narrativa e de quem consigo colaborou, já poderia ter sido entendido como “improvável”. Há aqui um gosto em surpreender, em andar permanentemente à procura de caminhos novos?
Sim. Adoro surpresas [risos], em tudo. Na vida, na arte, adoro. Mesmo correndo o risco de serem às vezes coisas muito assustadoras, adoro surpresas e adoro arriscar. Sou uma pessoa muito inquieta, tenho uma vibração adolescente que não há meio de passar [sorri] e que não sei se algum dia vai passar. Desde a minha adolescência que fui sempre bastante rebelde, bastante selvagem até, e não consegui encontrar um sentido numa vida muito regular. Tinha dificuldade, por mais que estivesse a funcionar. Aliás, quanto mais está a funcionar, mais desconfio que está na altura de mudar. Então artisticamente… acho que é fatal uma pessoa instalar-se, nem quero experimentar isso. Deve ser por isso que estou sempre a inventar [risos].
Lembra-se de onde estava ou de com quem estava quando se lembrou: agora apetecia-me mesmo era fazer um disco de fados “roubados”, pegar nestes temas e desconstruí-los?
Estou sempre a ter ideias [sorri]. Faz parte do meu dia-a-dia, acordo, tenho uma ideia e nunca mais paro de ter ideias. Chateia-me às vezes porque não consigo materializar a maior parte, é impossível. É-me muito difícil localizar essa ideia, mas lembro-me de ter pensado: faço 25 anos [de carreira], era uma belíssima altura de fazer um tributo aos mestres do fado. Estamos a falar de uma arte de tradição oral, portanto é com os mestres que nós mais aprendemos. Ainda por cima tive a sorte de ouvir quatro fadistas que são uma referência fundamental no meu trabalho, conhecê-los pessoalmente e ouvi-los inúmeras vezes — e tinham mais ou menos a mesma idade que eu [a que tem agora, 52 anos] quando cheguei aos fados…
Cinquenta anos também é uma idade muito boa no fado, porque o fado é uma arte muito generosa, envelhece bem. Também é uma altura em que uma pessoa já não está propriamente a querer provar nada. Tudo o que é acessório no fado estraga, e estraga muito, nesse aspeto é muito frágil. Se uma pessoa não consegue libertar-se das suas inseguranças, das suas vaidades, da sua necessidade de agradar, fica logo tudo sujo. Quando se tem 50 anos, e depois de cantar há 20 e tal, mais até, já não se está muito preocupado em provar nada, está-se preocupado em fazer o melhor possível e em agradecer, cada vez que cantamos, o facto de chegarmos aqui a fazer isto. Tenho uma gratidão aos fados quase inexplicável, vivo de fazer uma coisa de que gosto profundamente e faço exatamente o que quero. É um luxo incrível. Não dá tanto dinheiro como podia dar…
O que é que se pretere, exatamente, para ter essas liberdades?
Não podemos criar muitas necessidades materiais. Não podemos ser ambiciosos financeiramente — para poder dizer não, para poder escolher tempo em vez de dinheiro. Há pessoas que adoram fazer tournées. Não digo que essas pessoas estão erradas, a verdade delas pode passar por ali, a minha não. Abomino cantar três noites seguidas em sítios diferentes, estar sempre fora e longe da minha casa, dos meus afetos. Era incapaz de andar um mês… eu experimentei! O primeiro ano do meu primeiro disco foi a experimentar. Foi aos continentes quase todos, acho que só não fui à Austrália. Ao fim de sete dias estava a achar que ia definhar. “Onde é que estou? Não oiço falar português”. Por mais bonitos que os sítios às vezes até fossem, por mais espantosos que fossem do ponto de vista da viagem, não se desfruta de nada.
Percebi que o meu fado, o meu repertório, exige uma dose de improviso musical e interpretativo muito forte, porque sou só eu e dois músicos, não há espetacularidade nenhuma. Agora imagine o que é estar a cantar em palcos, no mínimo para 600 pessoas — que não percebem a língua —, com o meu repertório que vive sobretudo da poesia e da palavra. De repente vou precisar de ter uma concentração e uma entrega extraordinárias. Manter esse nível uma noite, durante hora e meia, é possível. Duas noites seguidas, é muito difícil. Três noites é impossível, há-de chegar ali uma noite em que somos três gatos pingados em vez de sermos (quando a coisa corre bem) três anjos em cima do palco.
A magia quebra-se inevitavelmente?
É inevitável, ninguém consegue ter criatividade. Esta arte nasceu numa casa! É uma arte acústica, aprende-se a cantar sem amplificação e existe para se comunicar. Os fadistas mais antigos ensinam-nos logo: quando cantas, esquece-te de cantar, é uma conversa com música. Isto diz tudo, o objetivo é chegar ao outro. Este tipo de repertório, que é o que me encanta e aquele a que dediquei a minha vida, não é propriamente um repertório que foi feito para andar em festivais e em grandes palcos a toda a hora. Uma vez, é um desafio incrível — e quando se consegue é mágico.
Lembro-me de um concerto que fiz no Largo de São Carlos, estavam cerca de três mil pessoas. Arquitetonicamente e do ponto de vista da história daquele espaço já há ali muita alma musical, e da melhor. Isso tudo conta. Mas de repente chegar a um ponto em que até o som do elétrico integrava no que estava a cantar, parecia que até me ajudava a ir mais longe… momentos desses são inesquecíveis. Depois até tive a oportunidade de ir a correr para o Sr. Vinho cantar para seis pessoas, queria ter essa sensação na vida. A Maria da Fé, que até tinha estado a assistir ao concerto, viu-me chegar e perguntou: o que é que estás aqui a fazer? Porque nunca vou no dia dos concertos, nem sequer na véspera ou no dia seguinte. É que um concerto de fado tradicional é extenuante, mas compensa com o prazer de conseguir fazer chegar aquele repertório, aquela poesia, aquela música, a um número maior de pessoas. Eu gosto de fazer concertos, não gosto é de fazer tournées, que é outra coisa.
E cantar na casa de fados, não se tornou nunca extenuante?
Na casa de fados nunca me cansei, a rotina faz-me aperfeiçoar a minha arte. Porquê? Porque aquele fado foi feito, nascido e criado naquele espaço [sorri]. Mesmo quando pensamos ‘hoje não tenho alma nenhuma, não me apetece cantar’, também se aprende quando percebemos que estamos a tentar e a alma não aparece. Também se aprende outras coisas, do ponto de vista técnico aprende-se imenso. Ali, as adversidades são sempre construtivas, ao contrário dos concertos em barda ou de outras circunstâncias que hoje estão na moda mas é uma pena.
Falava, antes da entrevista, do incómodo que sente ao ser desafiada a cantar ao vivo em qualquer contexto. Numa rádio, por exemplo.
Exato. As pessoas já não têm hábitos de parar para ouvir música, não ouvem um disco do princípio ao fim, por exemplo. Já não há essa cultura. Se não aproveitarmos meios como a rádio para divulgar o que é uma gravação nas melhores condições — porque hoje em dia a tecnologia permite grandes interpretações em estúdio que também não são possíveis ao vivo, até porque o estúdio também é uma espécie de confessionário, se nos deixarmos ir podemos encontrar um registo confessional no canto que não acontece ao vivo… Há registos vocais que ao vivo, em concertos acústicos, nem se ouvem. Que sentido faz não ser a rádio, que tem todos os meios técnicos e humanos para isso, a educar o ouvido das pessoas?
Voltando a este novo disco: não idealizou só a escolha, apropriação e desconstrução destes fados, assumiu também a direção dos arranjos e da sonoridade do disco. Porque é que o fez? Por ser um disco que celebra tanto a história do fado, que conhece tão bem?
Encontrei, há três discos atrás, o produtor musical com quem quero ficar até ser velhinha, como costumo dizer. É o Pedro Gonçalves [do grupo Dead Combo]. O Pedro ia fazer a produção musical deste disco, mas teve um problema de saúde e coincidiu a intervenção cirúrgica com as datas do estúdio. Entretanto já tinha tudo programado. Já tinha feito um mês de ensaios do espetáculo que esteve no Teatro D. Maria II, as Malfadadas, e já tinha planeado ter oito dias para a gravação do disco no intervalo do espetáculo. E então faria a mistura e pós-produção do disco.
Tudo isto coincidiu [com a intervenção cirúrgica do Pedro Gonçalves]. Na altura já tinha uma ideia concreta do que queria fazer neste disco e não tinha tido oportunidade de discuti-la muito com o Pedro, sequer. Falámos no essencial, mas não houve oportunidade para aprofundarmos porque ele estava de facto debilitado. A ideia era isto ser uma espécie de biografia breve do meu caminho, da minha história de fadista nestes 25 anos. Tinha histórias pessoais e profissionais sobre cada um destes temas, o que é importante porque esta é uma arte de tradição oral. E há muitos anos que oiço estes temas cantados diariamente e por gente mais velha, mais nova, pelos próprios [intérpretes para quem os temas foram compostos]… Quando comecei a pensar “e se cantasse os fados que são uma espécie de cartilha para quem chega à casa de fados e ainda não tem repertório próprio”, porque nunca os tinha cantado, pensei: não os quero cantar ao vivo, quero experimentar criá-los em estúdio, ver o que ficou.
Porquê? Qual era exatamente o objetivo?
Queria apropriar-me a ponto de os desconstruir, com toda a liberdade para errar. Tenho a teoria, que não é minha, o Italo Calvino até explica isto muito melhor do que eu, que os clássicos resistem a tudo. Bem podem fazer deles gato sapato, podem fazer deles o que quiserem, com o tempo eles continuam a ser os clássicos como são…
… E os outros passam.
Exato. Acho que na pior das hipóteses o que fiz acaba por passar, porque aqueles clássicos não correm o risco que eu os destrua. Nos fados é muito comum estar a ouvir alguém cantar um determinado tema e dizermos, na nossa cabeça, “o verso aqui não está bem dividido, isto era melhor se fosse acentuada esta parte da história, aqui melodicamente podia-se fazer um ajuste desta maneira”. Estamos sempre a ouvir coisas destas na nossa cabeça. Além disso, tenho uma ideia sobre aquelas histórias que canto, aquela linguagem.
Depois há ali temas que são incríveis. O “Vendaval” [cantado por Tony de Matos] é um tema que costumo dizer que é uma das melhores melodias não só da música portuguesa, mas do mundo. É difícil uma melodia ser mais bem construída e mais bela, porque consegue ter uma força e uma intensidade que não é muito comum num tema tão solar. Acho que o “Vendaval” tem a densidade e a intensidade de qualquer fado dos mais tristes da Amália.
Conseguir ter essa intensidade não soando a algo notoriamente triste é raro…
É raríssimo! Costumo comparar o “Vendaval” ao “My Way”, porque aquilo é elegíaco, não sei como dizê-lo de outra maneira. Nesse aspeto é um grande desafio a nível interpretativo. É evidente que… quando se trata de clássicos, a comparação com o original parece-me de uma arrogância e uma ignorância extraordinárias. Uma coisa é vermos as diferenças entre uma versão e o original, movidos pela descoberta. Isso é interessantíssimo e construtivo. Agora a comparação preguiçosa, comparar a qualidade da versão com a qualidade do original, acho que é um absurdo.
Só alguém muito tonto, julgo eu, é que vai pegar num tema da Amália a achar que vai fazer melhor ou acrescentar qualquer coisa. É só uma necessidade e uma urgência criativas de deitar algo cá para fora e materializar uma ideia do ponto de vista artístico, mais nada. Se a minha motivação fosse essa, era melhor mudar de profissão. Aliás, se um dia me virem a fazer qualquer coisa com essa intenção, peço que me internem, quem for meu amigo que o faça. Todos estes senhores [cantados neste disco] têm um legado extraordinário na história do fado. Até o Tony de Matos, que é não é um fadista, é um cantor, tem gravações de fado extraordinárias que são autênticas lições de interpretações. Nesses momentos não recorre ao estilo de cantor romântico que usava nas canções, porque tinha uma musicalidade tal que percebia que não devia usar a voz da mesma forma.
[“Vendaval”, o primeiro tema revelado do disco:]
Também sentiu necessidade de ter outras nuances vocais nestas versões, como lhes chama?
Achei piada e fiz uma graça: copiei-os a todos só um bocadinho. Fui escolher aquilo que me parece mais identitário no canto de cada um deles e pus em algumas partes dos temas. O que é que para mim é a marca identitária do Tristão da Silva na “Senhora da Nazaré”, por exemplo, que eu posso roubar e por ali num verso, numa palavra, no final? E fiz isso em todos.
Ao disco anterior a este, Quando Se Ama Loucamente, a Aldina Duarte tinha chamado “auto-ficção”…
[Risos] E é, e é.
Disse na altura que ali estava a cantar factos da sua vida, que sabia que objetos eram aqueles que cantava, que pessoas eram aquelas. Como foi cantar tudo isso ao vivo? Foi diferente do que tinha vivido antes em palcos, ou é fácil abstrair-se disso?
Pesa e mudou a minha maneira de cantar. Mudou no sentido em que acho que dei um salto qualquer para o desconhecido. Ainda não sei exatamente onde é que estou, mas estou noutro sítio desde esse disco. Faço sempre uma história, uma espécie de guião com o meu trabalho. Nos concertos tenho um guião, mesmo que não seja claro para o público, é-o na minha cabeça, com os discos faço a mesma coisa. Aliás, ainda não sei pensar em single, só sei pensar em disco. Mas aqui houve um salto para um sítio que ainda não sei exatamente qual é. Apercebo-me, isso sim, que vou mais fundo nas minhas interpretações.
O salto que dei tem a ver com esse disco e também com este, porque neste também abordo experiências concretas. Há dias, uma pessoa que me entrevistou dizia-me que achava que este disco era muito vivo, tinha muito nervo — e acho que essa vivacidade e nervo que se sentem no canto e nas interpretações já se ouvem no anterior. Este é uma continuação, indiscutivelmente, e acho que isso tem a ver com a descoberta que foi cantar factos que vivi, saber que sítios e objetos eram aqueles que cantava, que pessoas eram aquelas. Isso mudou muito e tão depressa não o vou largar. Houve uma altura em que o que me desafiava era não me cantar a mim…
Mas sim “cantar com o que é”, como já disse.
É, cantar com o que sou, não me cantando a mim. “Sou sensível à sua história, vou tentar ser voz da sua história”. Era assim. Isso desafiou-me durante muito tempo. Também não tinha coragem de ir mais fundo…
… na exposição íntima, pessoal?
Nessa exposição. Como sabia que ia-me proteger, não iria estar inteira se o fizesse. Fui aos poucos. Agora consigo. Às vezes custa-me muito. Também neste disco é muito difícil estar a cantar uma coisa da Beatriz da Conceição ou da Maria da Fé, porque estou a avivar intensamente a falta que me faz ouvi-las cantar para continuar a evoluir. E não tenho como resolver isso Restam-me os discos mas não é a mesma aprendizagem.
Aquilo que aprendi de essencial e do melhor que tenho a cantar foi porque ouvi durante 23 anos, todas as noites, pessoas que tinham então a minha idade [atual] e que são hoje as pessoas mais importantes da história do fado. E como é agora continuo a aprender sem elas? Isso custa-me horrores. É uma falta, uma carência quase. Sofro com isso. Onde é que estão os meus mestres? O meu caminho não foi aprender com os discos, foi aprender a ouvi-los todos os dias.
Aprender com a música mas também com o olhar, com a expressividade?
Com o olhar, a voz, o corpo. Com tudo! Ver aquelas pessoas a cantarem todos os dias daquela maneira… quando corria mal, corria mal, mas estavam sempre a tentar tudo. Pude aprender a cantar depois de um dia maravilhoso, aprender a cantar depois de um dia terrível, aprender a cantar com tudo. Pude ver aqueles mestres, que são mestres da história do fado, não são umas pessoas que têm uma história bonita e cantam bem. O Carlos do Carmo, vi-o muitas vezes a cantar no Sr. Vinho. E vi a Beatriz da Conceição, o João Ferreira-Rosa, o Fernando Maurício…
Neste disco só não cantei nada do Fernando Maurício e do Alfredo Marceneiro, que são duas das minhas grandes referências, porque eles cantam sobretudo fado tradicional e não havia nenhum tema deles relacionado com esta história [do disco]. Se não, também teria cantado porque são importantíssimos. Vi o Fernando Maurício cantar inúmeras vezes. Essas pessoas agora já não estão nas casas de fado, algumas já morreram e outras já não cantam. Agora vou continuar a aprender com quem? Oiço o Camané, com quem aprendo muito, e também aprendo com quem não é mestre, mas isso é uma aprendizagem. A que fiz estes anos todos com os mestres é uma outra. Como é que vou resolver isto? Acho que era a única coisa que no tempo me podia fazer deixar de cantar.
O Carlos do Carmo, de que falou agora, anunciou recentemente que vai deixar os palcos.
Sim… tem 80 anos [sorri].
Tem muito em breve, inclusivamente, os últimos concertos. Sente esse fim como uma perda para o fado ou consegue transportar o que fez no disco anterior para aqui, que é não encarar o final [no caso do disco anterior, de uma relação amorosa] como uma coisa mais impactante que tudo o que aconteceu antes?
Tenho esperança que o Carlos do Carmo vá sentir tantas saudades de cantar que volta e meia vá jantar ao Sr. Vinho e cante um ou dois fados — e que eu esteja lá para ouvir. Como também tenho esperança que de vez em quando dê na cabeça à Maria da Fé, que esteja sentada, abra a boca e pareça, como parece sempre, que a estamos a ouvir pela primeira vez. Estes fadistas, tenham a idade que tiveram, abrem a boca para cantar um fado e parece que nunca os ouvimos cantar antes, é uma coisa estranhíssima [risos], é tão surpreendente a qualidade que até nos esquecemos de como aquilo é genial. Tudo aquilo, as vozes que aquelas pessoas têm, a alma…
[Aldina Duarte e Carlos do Carmo cantaram e gravaram, em dueto, o fado “Vou Contigo, Coração”:]
Têm um magnetismo diferente dos outros? Isso sente-se?
Um magnetismo, exato. E sim. Assisti a coisas incríveis. A Beatriz da Conceição uma vez, numa cervejaria do mais banal que há, fez uma dessas. Estávamos sentados numa mesa, a cervejaria não tinha à partida nada [de especial]. Baixam a luz, começa a música a tocar — guitarra e viola — e ela só se levanta da cadeira para o sítio onde vai cantar e de repente parece que estamos no Palácio de Queluz. Aquilo foi inexplicável. E quando abre a boca ali, então meu Deus, vamos à lua.
E o Carlos do Carmo?
Acredito que o Carlos do Carmo ainda vai cantar de vez em quando e que vou ter oportunidade de o ouvir cantar. Se calhar ainda vai gravar uns singles, é menino para isso [sorri]. Os concertos tenho pena de não ver, mas já vi muitos. Para o fado é natural, não é uma grande perda, porque tem uma obra enorme e isto é natural [deixar de dar concertos] tem 80 anos. Falta, falta, fazem-me a mim, desculpem lá o egoísmo. Acho que ainda poderia cantar razoavelmente mais dez anos, mas sei que metade do que preciso de aprender não vou ter como. Não será com eles, vou ter de fazê-lo sozinha e agarrar-me ao que aprendi até agora.
Como me dizia alguém, “tiveste uma sorte incrível, viste esses todos durante estes anos”. Curiosamente era o que dizia antes, quando era jovem, ao Camané: caramba, desde criança que ouviste a Maria Teresa de Noronha, o Alfredo Marceneiro, sorte a tua. E agora dizem-me a mim: que sorte que a Aldina teve, ouviu estes todos na altura com 40 e tais e 50’s a cantar todos os dias. Se calhar sempre foi assim, a história do fado é esta, mas que me faz muita falta ouvi-los, faz. E não estou só a falar dos fadistas, estou a falar também dos músicos. Fui o tipo de fadista que aprendeu tudo com os músicos, que gostavam imenso de me ouvir cantar mesmo quando não sabia cantar. O Fontes Rocha, o Paquito, achavam que era muito original e surpreendente musicalmente, pela maneira como resolvia os temas. Lembro-me de abordar um fado tradicional que é o “Fado Alexandrino”, de Joaquim Campos, e o Fontes uma vez disse-me assim: anda cá, arranjei um desenho para te acompanhar na corda de mi, que é a que serve melhor o teu timbre. Fica-se com um laço na cabeça para toda a vida. Um senhor que já tinha acompanhado a Amália toda a vida, foi ele que criou e adaptou as músicas do Alain Oulman para a guitarra no [disco] Com Que Voz — estamos a falar deste nível. De repente está ali no Sr. Vinho muito entusiasmado à procura do acompanhamento para servir melhor o meu canto? Para mim, uma miúda que chegou ali e mal sabe cantar? Opá…
Esta capa do disco mostra-a com 21 anos. Quando chegou ao fado, sentiu que a vida que teve antes e as experiências pelas quais passou tiveram influência na inclinação e gosto que veio a ter para o fado quando o descobriu?
Não diretamente. Acho que consegui criar uma personalidade e um legado próprio e acho que não há outra Aldina nos fados. Penso que consegui criar um lugar próprio, há quem goste e quem não goste mas as pessoas reconhecem essa singularidade. E acho que isso tem a ver com o facto de ter tido um percurso até bastante diferente do que é comum nos fadistas da minha idade ou mais novos: não conhecia fados [antes dessa idade]. A referência inicial que tive foi a minha primeira infância até ao 25 de abril [aconteceu quando Aldina Duarte tinha 6 anos], até aí de facto só se ouvia na rádio música ligeira e fados. O fado aí era a música do povo, era impossível quem ouvia rádio não ficar com alguma marca disso, mas isso só terá ficado em mim a um nível inconsciente — porque depois na adolescência a minha música é outra, vou para o punk, vou para o rock e para o jazz…
Mas é precisamente isso que queira perceber: chegando até aos 21 anos com esse gosto, porque é que acha que depois o fado a comove e encanta quando o começa a conhecer melhor?
Acho que tinha a ver com o facto de na altura já ser bastante sensível aos intérpretes, mais do que às bandas. A mim fascinavam-me o Jacques Brel, a Nina Simone, o Frank Sinatra, aqueles intérpretes que tinham uma personalidade profunda e vincada no que faziam, que tinham a coragem de se expor. Se pensarmos bem, expuseram-se de uma maneira muito corajosa porque até eles [aparecerem] não existia ninguém como eles. E isso no fado acontece também assim: até ao João Ferreira-Rosa cantar, não havia nenhum João Ferreira-Rosa, aquilo era completamente novo.
Fascinaram-me sempre aquelas pessoas que chegam a uma arte e são tão autênticas e têm um amor tão grande pelo que estão a fazer que de repente arriscam que ninguém goste de ouvir ou que ninguém aceite, pelo facto de o que fazem ser estranho, diferente. O Charles Aznavour andou 18 anos a cantar em bares e ninguém gostava de o ouvir, até aparecer a Edith Piáf e dizer: meus senhores, deixem de ser surdos, este homem é um talento raro e uma voz única. Diziam que a voz era desagradável, mas o que me impressiona é que ele não experimentou fazer de outra maneira e não tentou ser outra coisa que não ele, mesmo com esse preço que pagava. O intérprete é alguém que me fascina por isso, é uma espécie de raça à parte, que chega e fica sozinho perante a multidão e pode-lhe acontecer tudo. Esse fascínio já tinha, por esse tipo de cantor, e o fado é exatamente aí que bate.
O fascínio que tinha era também com o “drama” no canto? No sentido nobre da palavra.
Sim. Quanto mais velha, mais alegre e feliz sou, mas descobri muito tarde a alegria. Era uma miúda revoltada, zangada, triste. Acho que se percebe nessa capa, pelos meus olhos. Quando olho para essa capa, nos meus olhos vejo tristeza — mas também vejo uma força qualquer para o futuro, de quem acredita no futuro.
O fado não é um bocadinho isso?
É. É aí que acho que sou uma fadista de toda a maneira e feitio, mesmo que não cantasse. O fado tem isso, há uma coragem na dor, não se foge da dor, enfrenta-se. O verdadeiro fadista sabe que não há nada importante na vida que não passe pela dor. A maior alegria do mundo para os pais é o nascimento de uma criança: implica dor. Aprender uma arte, ter com ela um prazer incrível, chegar à realização profissional… mas o que causa o erro e a incapacidade enquanto não se sabe? Dor. Nós, os fadistas, temos essa humildade perante o que fazemos.
Não embelezam o que não é ligeiro?
É. Não se embeleza, porque o trabalho de fadista aprende-se fazendo e fazem-se logo as asneiras à frente de toda a gente. Tem de se ter uma certa coragem, de facto. Não estamos aqui a falar de coragem, coragem — isso é ir para a guerra e fazer reportagens de guerra, por exemplo. Não podemos exagerar, mas do ponto de vista artístico o fado exige exposição e exige encarar de frente coisas mais obscuras.
Muito obrigado, Aldina.
Obrigada.
Com Ana Filipa Rosa