910kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Alma. Acompanhámos a última refeição antes da segunda estrela Michelin

O Alma de Sá Pessoa recebeu a segunda estrela em três anos de vida. Antes do momento de glória, espreitámos para dentro da cozinha do restaurante na noite que antecedeu mais uma distinção.

Terça-feira, 20 de novembro. Chegamos dez minutos antes da hora marcada. São 18h2o e à porta do restaurante Alma, na discreta Rua da Anchieta, no Chiado, encontramos o chef Henrique Sá Pessoa ao telefone, de passo irrequieto. Cabisbaixo, ora avança, ora recua. Discurso curto, num tom quase inaudível. Sem querer, percebemos o seu teor: ainda não entrámos no restaurante que anda nas bocas do mundo e já a conversa é sobre constelações — quem ganha e quem perde as estrelas Michelin. Não sabemos que respostas chegam do outro lado da linha, mas desconfiamos dos prognósticos. Faltam aproximadamente 24 horas para a gala mais estrelada da gastronomia, a primeira realizada em Portugal, na qual o Alma receberá a tão cobiçada segunda estrela em três anos de vida. Com o Belcanto ali tão perto, questionamo-nos que tipo de movimento terá esta rua daqui a para a frente.

“Como ganhámos há dois anos, acho demasiado rápido a atribuição de uma segunda estrela em tão pouco tempo, seria [um feito] quase histórico. Há pessoas que dizem que sim, outras que não. Amanhã pelas 19h30 já saberemos”, diz-nos Henrique Sá Pessoa já no interior do restaurante que, desde outubro de 2015, ocupa um antigo armazém da Bertrand, talvez a livraria mais antiga do mundo. Está vestido “à paisana” (vai colocar a jaleca no fim da entrevista para efeitos de fotografia) e tem o muito reputado chef Sergi Arola à espera dele no bar — depois da conversa, os dois vão seguir para um jantar de chefs, os mesmos que estão encarregues da refeição que se segue à gala das estrelas Michelin, com José Avillez no comando das operações. Curiosamente, Sá Pessoa acabou de vir de um briefing para afinar os últimos detalhes: há dois meses que estão a preparar o jantar para 500 pessoas (300 chefs incluídos, sem descurar “todos os três estrelas de Espanha”), altura em que criaram um grupo no Whatsapp para discutir o tema.

Sá Pessoa saca do smartphone e mostra-nos o grupo, faz scroll para cima e para baixo, para confirmar que o mesmo se chama apenas “Gala Michelin Lisboa” — confessamos, estávamos à espera de algo mais descontraído. Os sete chefs que vão cozinhar esta quarta-feira são todos amigos, além de colegas de profissão, e em algum momento a conversa assume contornos de competição. “Estamos todos empenhados para que este evento seja, como se diz em Espanha, ‘la hostia’! [como quem diz que a gala vai ser “do caraças”].”

Sá Pessoa tenta fazer 5 a 7 serviços por semana no Alma

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

A noite de quarta-feira é definitivamente marcada pela surpresa e pelo suspense. Sá Pessoa não nega o nervosismo — “É como estarmos nomeados para um Óscar sem sabermos se vamos ou não ganhar” –, mas tenta não dar muito peso à estrela que, à data, ainda não sabia que ia chegar. O clima no restaurante é de expetativa, as conversas dos clientes têm insistido no tema e o chef confessa-se atento ao que se diz e ao que se escreve, muito embora o discurso seja diplomático: “Se vier claro que vamos festejar e ficamos alegres, mas [de qualquer das formas] temos noção de que evoluímos muito desde que ganhámos a primeira. Evoluímos no sentido da experiência: temos mais vinhos disponíveis, começámos com sete cozinheiros e agora temos 13, os menus são mais longos, têm mais momentos, e a cozinha é muito mais pormenorizada”, assegura.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O Alma original, o primeiro restaurante de assinatura do chef, abriu em 2009 em Santos para fechar em 2014 — tempo suficiente para captar o interesse do reputado guia. No último ano antes de abandonar Santos, o Alma estava previsto figurar no guia enquanto restaurante referenciado. O chef e a equipa foram logo avisados: assim que abrissem o novo espaço iriam ser rapidamente visitados pelos inspetores. Onze meses depois da reabertura venceram a primeira estrela, em novembro de 2016, numa gala que se revelou “mágica” para o panorama da gastronomia nacional.

Sá Pessoa garante que não projeta restaurantes a pensar nas estrelas Michelin — cujo impacto mediático e monetário associado à distinção é extremamente visível –, embora admita que a linha de cozinha praticada no Alma vai no sentido do guia. Cozinha de base clássica, como quem diz francesa, toques modernos e influência portuguesa, consistência e relação preço-qualidade, enumera, para depois admitir: “Pusemo-nos a jeito”. Este Alma que reapareceu de cara lavada em 2015 com a ajuda da empresa Multifood tem o mesmo DNA do seu antecessor: os cozinheiros Daniel Costa e José Resende estão com Sá Pessoa há 15 e 10 anos, respetivamente, e não há nenhum serviço no restaurante que não tenha um dos três presente.

Os elementos-chave em cada uma das estações, na cozinha, também estão por cá há mais de dois anos. “A rotatividade de pessoal no Alma é baixíssima”, garante Sá Pessoa, que já abriu um total de sete restaurantes (Cais da Pedra em 2013, Balcão no Mercado da Ribeira em 2014, Alma em 2015, Tapisco, Atelier e Balcão no El Corte Inglés em 2017 e Tapisco, agora no Porto, em 2018). Sá Pessoa faz uma gestão “tipo bombeiro” e desdobra-se entre os espaços consoante a necessidade. São mais de 10 as viagens por ano para comunicar o restaurante e, mesmo assim, tenta fazer 5 a 7 serviços semanais no Alma.

Algas? Alface do mar?! Obrigadão! – a entrevista é interrompida por momentos, assim que alguém se dirige ao balcão com uma encomenda entre mãos. O entusiasmo de Sá Pessoa é evidente. O homem vestido com uma farda familiar abana afirmativamente a cabeça em resposta. — “Vem na quinta-feira, a gente repõe. O Daniel pensava que tinha e depois foi ver…” –, exclama o chef.

— Algo em falta? –, perguntamos.

— Sim. Temos a sorte de ter vizinhos… — brinca Sá Pessoa. A alface do mar que o head chef descobriu ter em falta veio, constatamos, do Belcanto. 

O diretor do restaurante, Manuel Santos e Silva, faz o briefing diário a dez minutos do serviço começar

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Ainda terça-feira, 18h50. Como de costume, Manuel Santos e Silva, diretor do restaurante, reúne a equipa de sala e faz o briefing antes do jantar. São 10 minutos de conversa, nem um minuto a mais nem a menos, com o serviço a arrancar imperativamente às 19h — no Alma, a pontualidade é um assunto sério. Numa noite atípica como esta, a anteceder a tão aguardada gala, até o discurso dispara em direção às estrelas. “Amanhã é um dia muito importante para nós. Eu vou estar na gala com o Daniel [head chef], o Rui e a Margarida  [ambos da Multifood]. O Nelson [sommelier] vai estar presente nos vinhos. Vamos estar todos calmos e eu vou ser o primeiro a ligar-vos”, enfatiza Manuel Santos e Silva, num discurso limpo e pausado. “Se não ganharmos nada, continua tudo igual. Se ganharmos, peço alegria. Podemos festejar, mas não é aos gritos e aos pontapés”. O evento das estrelas Michelin ainda está a horas de distância, mas o aviso já está feito. Mais tarde na noite o diretor vai revelar-nos os planos de celebração: quer ganhem, quer não, o encontro é no Alma e os pontos de paragem previstos são a Rua Cor de Rosa, no Cais do Sodré, e uma discoteca (muito provavelmente o Lux).

Por esta altura já Henrique Sá Pessoa vestiu a jaleca, escapou-se para trás do balcão e olha fixamente para a objetiva do fotógrafo. Nas suas costas estão 5 a 7 cozinheiros indiferentes ao aparato mediático, concentrados e de volta do que falta afinar, não vá a campainha tocar antes do tempo. Dos cliques da câmara até à hora da despedida pouco tempo passa. Henrique Sá Pessoa está de saída com Sergi Arola e a cozinha do chef fica entregue à mestria de José Resende. Limitados a ficar à beira do balcão — a cozinha revela-se pequena para receber jornalistas — observamos a noite desenrolar-se tal qual uma peça de teatro (metáfora de Manuel Santos e Silva).

Os primeiros clientes — um jovem casal e duas turistas — chegam às 19h em ponto. Os pares são sentados lado a lado, embora a desafogada distância entre as mesas seja de assinalar, e da cozinha começam a sair os primeiros snacks, entradas e amuse-bouche (primeiro ato). Esta noite a equipa vai ser servir 38 jantares. A casa está, como de costume, cheia. Para comer no Alma é preciso estar numa lista de espera que ascende a um mês — a taxa de ocupação à hora de almoço ronda os 70 e os 80% e ao jantar fixa-se nos 100%. Overbooking é uma expressão à qual a equipa já está habituada, motivo porque o restaurante revela-se sustentável — de referir que 90% dos clientes são estrangeiros.

Um dos pratos da noite: carabineiro, açorda e alface do mar

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

À medida que as horas passam, José Resende vai “cantando” os pedidos que vêm das duas salas de refeições — existem 42 lugares sentados, separados por uma parede que é, ao mesmo tempo, uma garrafeira, constituída por cerca de 120 referências, na sua grande maioria portuguesas. Colados à bancada, conseguimos observar que esta é repetidamente limpa para receber os sucessivos empratamentos — até a mais “simples” entrada é montada como se de um puzzle se tratasse, o que deixa a descoberto o trabalho de preparação que é feito nos bastidores.

Os pratos mais pedidos da noite (segundo ato) correspondem também aos dois menus comummente mais solicitados: Alma, que consiste nos clássicos do chef (como o leitão confitado e o foie gras salteado), e Costa a Costa, um menu de degustação relançado em agosto último e que aposta na diversidade gastronómica vinda da costa portuguesa — peixe de galo, arroz de carabineiro e azevia, a título de exemplo (110 e 120 euros, respetivamente). Destes menus fazem parte as seguintes sobremesas: sorbet de manjericão e merengue de lima, texturas de amora e aipo, maracujá e iogurte e mar e citrinos com sorvete de yuzu (fruta cítrica originária do leste asiático). Naturalmente que este é o terceiro ato.

O crepitar do peixe que passa pela brasa, a couve que é picada à velocidade da luz e o arrastar dos pratos e restantes loiças servem de banda sonora da noite. Pouca é a conversa entre cozinheiros, apesar do evidente à vontade que resulta das muitas horas de trabalho em conjunto. Na verdade, não deixam de ser comuns mortais, que o diga o jovem que se queimou num repente e, também num repente, controlou-se para não deixar escapar um impropério — o rosto falou por si, sentimos a sua dor. A cozinha fecha por volta das 11h, como de costume, e marca o descanso dos cozinheiros e dos empregados de mesa que, sem terem de falar, estão visivelmente expectantes. A grande noite está cada vez mais próxima e todos querem festejar — sem “gritos e pontapés”, de preferência. Ficam já os clientes avisados que ficou prometido uma flûte de champanhe em caso de vitória…

A camaradagem entre a equipa do Alma é evidente

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

“Nós desconfiamos das visitas”, dizia Sá Pessoa ainda durante a tarde. “Mas nunca temos a certeza. Vemos pessoas com comportamentos estranhos, a tirar notas, mas hoje em dia há tantos bloggers, tantos críticos e jornalistas que é melhor não pensar que estás a cozinhar para um inspetor. Digo sempre à equipa: ‘Independentemente de ser ou não um inspetor, fazemos o nosso trabalho sempre igual. A partir daí sabemos que demos o nosso melhor e o que vier, vem”. E não é que veio? Esta quarta-feira, do céu, ou ali do Pavilhão Carlos Lopes, caiu uma segunda estrela.

Fotografias de André Dias Nobre

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.