Terça-feira, 20 de novembro. Chegamos dez minutos antes da hora marcada. São 18h2o e à porta do restaurante Alma, na discreta Rua da Anchieta, no Chiado, encontramos o chef Henrique Sá Pessoa ao telefone, de passo irrequieto. Cabisbaixo, ora avança, ora recua. Discurso curto, num tom quase inaudível. Sem querer, percebemos o seu teor: ainda não entrámos no restaurante que anda nas bocas do mundo e já a conversa é sobre constelações — quem ganha e quem perde as estrelas Michelin. Não sabemos que respostas chegam do outro lado da linha, mas desconfiamos dos prognósticos. Faltam aproximadamente 24 horas para a gala mais estrelada da gastronomia, a primeira realizada em Portugal, na qual o Alma receberá a tão cobiçada segunda estrela em três anos de vida. Com o Belcanto ali tão perto, questionamo-nos que tipo de movimento terá esta rua daqui a para a frente.
“Como ganhámos há dois anos, acho demasiado rápido a atribuição de uma segunda estrela em tão pouco tempo, seria [um feito] quase histórico. Há pessoas que dizem que sim, outras que não. Amanhã pelas 19h30 já saberemos”, diz-nos Henrique Sá Pessoa já no interior do restaurante que, desde outubro de 2015, ocupa um antigo armazém da Bertrand, talvez a livraria mais antiga do mundo. Está vestido “à paisana” (vai colocar a jaleca no fim da entrevista para efeitos de fotografia) e tem o muito reputado chef Sergi Arola à espera dele no bar — depois da conversa, os dois vão seguir para um jantar de chefs, os mesmos que estão encarregues da refeição que se segue à gala das estrelas Michelin, com José Avillez no comando das operações. Curiosamente, Sá Pessoa acabou de vir de um briefing para afinar os últimos detalhes: há dois meses que estão a preparar o jantar para 500 pessoas (300 chefs incluídos, sem descurar “todos os três estrelas de Espanha”), altura em que criaram um grupo no Whatsapp para discutir o tema.
Sá Pessoa saca do smartphone e mostra-nos o grupo, faz scroll para cima e para baixo, para confirmar que o mesmo se chama apenas “Gala Michelin Lisboa” — confessamos, estávamos à espera de algo mais descontraído. Os sete chefs que vão cozinhar esta quarta-feira são todos amigos, além de colegas de profissão, e em algum momento a conversa assume contornos de competição. “Estamos todos empenhados para que este evento seja, como se diz em Espanha, ‘la hostia’! [como quem diz que a gala vai ser “do caraças”].”
A noite de quarta-feira é definitivamente marcada pela surpresa e pelo suspense. Sá Pessoa não nega o nervosismo — “É como estarmos nomeados para um Óscar sem sabermos se vamos ou não ganhar” –, mas tenta não dar muito peso à estrela que, à data, ainda não sabia que ia chegar. O clima no restaurante é de expetativa, as conversas dos clientes têm insistido no tema e o chef confessa-se atento ao que se diz e ao que se escreve, muito embora o discurso seja diplomático: “Se vier claro que vamos festejar e ficamos alegres, mas [de qualquer das formas] temos noção de que evoluímos muito desde que ganhámos a primeira. Evoluímos no sentido da experiência: temos mais vinhos disponíveis, começámos com sete cozinheiros e agora temos 13, os menus são mais longos, têm mais momentos, e a cozinha é muito mais pormenorizada”, assegura.
O Alma original, o primeiro restaurante de assinatura do chef, abriu em 2009 em Santos para fechar em 2014 — tempo suficiente para captar o interesse do reputado guia. No último ano antes de abandonar Santos, o Alma estava previsto figurar no guia enquanto restaurante referenciado. O chef e a equipa foram logo avisados: assim que abrissem o novo espaço iriam ser rapidamente visitados pelos inspetores. Onze meses depois da reabertura venceram a primeira estrela, em novembro de 2016, numa gala que se revelou “mágica” para o panorama da gastronomia nacional.
Sá Pessoa garante que não projeta restaurantes a pensar nas estrelas Michelin — cujo impacto mediático e monetário associado à distinção é extremamente visível –, embora admita que a linha de cozinha praticada no Alma vai no sentido do guia. Cozinha de base clássica, como quem diz francesa, toques modernos e influência portuguesa, consistência e relação preço-qualidade, enumera, para depois admitir: “Pusemo-nos a jeito”. Este Alma que reapareceu de cara lavada em 2015 com a ajuda da empresa Multifood tem o mesmo DNA do seu antecessor: os cozinheiros Daniel Costa e José Resende estão com Sá Pessoa há 15 e 10 anos, respetivamente, e não há nenhum serviço no restaurante que não tenha um dos três presente.
Os elementos-chave em cada uma das estações, na cozinha, também estão por cá há mais de dois anos. “A rotatividade de pessoal no Alma é baixíssima”, garante Sá Pessoa, que já abriu um total de sete restaurantes (Cais da Pedra em 2013, Balcão no Mercado da Ribeira em 2014, Alma em 2015, Tapisco, Atelier e Balcão no El Corte Inglés em 2017 e Tapisco, agora no Porto, em 2018). Sá Pessoa faz uma gestão “tipo bombeiro” e desdobra-se entre os espaços consoante a necessidade. São mais de 10 as viagens por ano para comunicar o restaurante e, mesmo assim, tenta fazer 5 a 7 serviços semanais no Alma.
— Algas? Alface do mar?! Obrigadão! – a entrevista é interrompida por momentos, assim que alguém se dirige ao balcão com uma encomenda entre mãos. O entusiasmo de Sá Pessoa é evidente. O homem vestido com uma farda familiar abana afirmativamente a cabeça em resposta. — “Vem na quinta-feira, a gente repõe. O Daniel pensava que tinha e depois foi ver…” –, exclama o chef.
— Algo em falta? –, perguntamos.
— Sim. Temos a sorte de ter vizinhos… — brinca Sá Pessoa. A alface do mar que o head chef descobriu ter em falta veio, constatamos, do Belcanto.
Ainda terça-feira, 18h50. Como de costume, Manuel Santos e Silva, diretor do restaurante, reúne a equipa de sala e faz o briefing antes do jantar. São 10 minutos de conversa, nem um minuto a mais nem a menos, com o serviço a arrancar imperativamente às 19h — no Alma, a pontualidade é um assunto sério. Numa noite atípica como esta, a anteceder a tão aguardada gala, até o discurso dispara em direção às estrelas. “Amanhã é um dia muito importante para nós. Eu vou estar na gala com o Daniel [head chef], o Rui e a Margarida [ambos da Multifood]. O Nelson [sommelier] vai estar presente nos vinhos. Vamos estar todos calmos e eu vou ser o primeiro a ligar-vos”, enfatiza Manuel Santos e Silva, num discurso limpo e pausado. “Se não ganharmos nada, continua tudo igual. Se ganharmos, peço alegria. Podemos festejar, mas não é aos gritos e aos pontapés”. O evento das estrelas Michelin ainda está a horas de distância, mas o aviso já está feito. Mais tarde na noite o diretor vai revelar-nos os planos de celebração: quer ganhem, quer não, o encontro é no Alma e os pontos de paragem previstos são a Rua Cor de Rosa, no Cais do Sodré, e uma discoteca (muito provavelmente o Lux).
Por esta altura já Henrique Sá Pessoa vestiu a jaleca, escapou-se para trás do balcão e olha fixamente para a objetiva do fotógrafo. Nas suas costas estão 5 a 7 cozinheiros indiferentes ao aparato mediático, concentrados e de volta do que falta afinar, não vá a campainha tocar antes do tempo. Dos cliques da câmara até à hora da despedida pouco tempo passa. Henrique Sá Pessoa está de saída com Sergi Arola e a cozinha do chef fica entregue à mestria de José Resende. Limitados a ficar à beira do balcão — a cozinha revela-se pequena para receber jornalistas — observamos a noite desenrolar-se tal qual uma peça de teatro (metáfora de Manuel Santos e Silva).
Os primeiros clientes — um jovem casal e duas turistas — chegam às 19h em ponto. Os pares são sentados lado a lado, embora a desafogada distância entre as mesas seja de assinalar, e da cozinha começam a sair os primeiros snacks, entradas e amuse-bouche (primeiro ato). Esta noite a equipa vai ser servir 38 jantares. A casa está, como de costume, cheia. Para comer no Alma é preciso estar numa lista de espera que ascende a um mês — a taxa de ocupação à hora de almoço ronda os 70 e os 80% e ao jantar fixa-se nos 100%. Overbooking é uma expressão à qual a equipa já está habituada, motivo porque o restaurante revela-se sustentável — de referir que 90% dos clientes são estrangeiros.
À medida que as horas passam, José Resende vai “cantando” os pedidos que vêm das duas salas de refeições — existem 42 lugares sentados, separados por uma parede que é, ao mesmo tempo, uma garrafeira, constituída por cerca de 120 referências, na sua grande maioria portuguesas. Colados à bancada, conseguimos observar que esta é repetidamente limpa para receber os sucessivos empratamentos — até a mais “simples” entrada é montada como se de um puzzle se tratasse, o que deixa a descoberto o trabalho de preparação que é feito nos bastidores.
Os pratos mais pedidos da noite (segundo ato) correspondem também aos dois menus comummente mais solicitados: Alma, que consiste nos clássicos do chef (como o leitão confitado e o foie gras salteado), e Costa a Costa, um menu de degustação relançado em agosto último e que aposta na diversidade gastronómica vinda da costa portuguesa — peixe de galo, arroz de carabineiro e azevia, a título de exemplo (110 e 120 euros, respetivamente). Destes menus fazem parte as seguintes sobremesas: sorbet de manjericão e merengue de lima, texturas de amora e aipo, maracujá e iogurte e mar e citrinos com sorvete de yuzu (fruta cítrica originária do leste asiático). Naturalmente que este é o terceiro ato.
O crepitar do peixe que passa pela brasa, a couve que é picada à velocidade da luz e o arrastar dos pratos e restantes loiças servem de banda sonora da noite. Pouca é a conversa entre cozinheiros, apesar do evidente à vontade que resulta das muitas horas de trabalho em conjunto. Na verdade, não deixam de ser comuns mortais, que o diga o jovem que se queimou num repente e, também num repente, controlou-se para não deixar escapar um impropério — o rosto falou por si, sentimos a sua dor. A cozinha fecha por volta das 11h, como de costume, e marca o descanso dos cozinheiros e dos empregados de mesa que, sem terem de falar, estão visivelmente expectantes. A grande noite está cada vez mais próxima e todos querem festejar — sem “gritos e pontapés”, de preferência. Ficam já os clientes avisados que ficou prometido uma flûte de champanhe em caso de vitória…
“Nós desconfiamos das visitas”, dizia Sá Pessoa ainda durante a tarde. “Mas nunca temos a certeza. Vemos pessoas com comportamentos estranhos, a tirar notas, mas hoje em dia há tantos bloggers, tantos críticos e jornalistas que é melhor não pensar que estás a cozinhar para um inspetor. Digo sempre à equipa: ‘Independentemente de ser ou não um inspetor, fazemos o nosso trabalho sempre igual. A partir daí sabemos que demos o nosso melhor e o que vier, vem”. E não é que veio? Esta quarta-feira, do céu, ou ali do Pavilhão Carlos Lopes, caiu uma segunda estrela.
Fotografias de André Dias Nobre