Existe uma célebre cena que faz arrancar toda a história do filme de animação Inside Out, da Pixar, e nessa cena, a mãe, o pai e a Riley estão sentamos à mesa, a jantar, quando uma série de interações fazem despertar as emoções que controlam os comportamentos de cada um. É bastante bonita e bem conseguida a forma como os realizadores conseguiram ilustrar, ao longo de 95 minutos de película, um tema tão pertinente nestes dias: o nosso bem-estar emocional e mental. Pertinente na fase adulta, mas especialmente importante durante os primeiros anos de vida de uma criança, visto que quase uma em cada cinco crianças é afetada por um distúrbio emocional ou comportamental, será que temos ao nosso dispor as ferramentas para identificar sinais de alarme? A saúde mental infantil será uma prioridade?
Existem poucas coisas na vida que sejam tão fundamentais para uma vivência feliz e serena como a saúde mental: “é um fator determinadamente da forma como as pessoas pensam, sentem e comportam-se. É um fator essencial para a saúde no seu todo”, refere a pedopsiquiatra, Paula Vilariça. Esta acredita que a saúde mental infantil merece mais protagonismo uma vez que “‘sem saúde mental não há saúde’, como foi dito em 1954 por Brock Crisholm, o primeiro Diretor Geral da Organização Mundial de Saúde”. 68 anos depois, “continuamos a assistir à desvalorização e falta de investimento público e privado na Saúde Mental em geral e especialmente na Saúde Mental Infantil”.
Doença Mental não é uma escolha, em nenhuma idade
Tal como as doenças físicas, um diagnóstico de doença mental não é nunca uma escolha do doente: se não culpamos ninguém por ter o número de batimentos cardíacos mais elevados do que o que é considerado ideal, não é diferente quando se trata de uma doença mental. A pedopsiquiatra portuguesa explica que “tal como as doenças físicas, também as doenças mentais não são uma escolha ou defeito das pessoas, mas sim condições médicas que requerem atenção e tratamento”.
A falta de conhecimento e compreensão relativamente às doenças mentais acelera o estigma, cria terreno fértil para a discriminação, para o preconceito, para o crescimento da dicotomia “eu e o outro”: esta dinâmica que em bom português pode ser considerada uma ‘pescadinha de rabo na boca’ leva, consequentemente, à ausência de tratamento. Atualmente, segundo a médica portuguesa, “assistimos a um aumento exponencial de problemas mentais nas crianças e adolescentes e não há recursos para fazer face a este problema. São necessárias intervenções de prevenção, diagnóstico e tratamento para a saúde mental pediátrica, tal como existem nas outras áreas da saúde materno-infantil”. “A saúde mental nas idades pediátricas deveria ser um pilar nas políticas de saúde”.
É importante intervir precocemente: não desvalorize!
Os sintomas das perturbações mentais são muito variados: segundo a especialista “nas crianças e adolescentes passam por alterações de comportamento, dificuldades de aprendizagem, dificuldades de socialização, alterações emocionais, entre muitos outros”. Dada a abrangência da sintomatologia, é possível que estes quadros clínicos sejam “confundidos com problemas do foro da educação ou reações que são variantes do normal e que estão relacionadas com o desenvolvimento ou adaptação normativa a fatores da vida”, acrescenta. Quando se fala de sintomatologia é importante reter que “nem tudo o que corre mal ou que é problema na vida das pessoas é sintoma de doença mental”, e por isso, na dúvida, procure um especialista – o diagnóstico de qualquer área da saúde mental é da responsabilidade de profissionais habilitados.
Muitas vezes, quando existe uma relação de confiança entre a criança e os seus cuidadores, é a própria que quando atinge alguma maturidade emocional e linguística que observa algumas alterações no seu comportamento e pede ajuda. Contudo, nem sempre é assim.
“Nos casos em que as crianças pedem ajuda ou revelam que se sentem mal, essa informação deve ser muito valorizada pela família e deve ser sempre procurada ajuda”, refere. Vê-se muitas vezes nos filmes, nos livros, nas histórias que ouvimos ou, possivelmente, até o leitor vivenciou algo semelhante, a falta de inteligência emocional para lidar com um pedido de ajuda de uma criança: quando os mais novos verbalizam que se sentem mal, muitas são as vezes que essa confidência é desvalorizada ou até negada. A intervenção precoce é imprescindível: “são situações que inicialmente poderiam ser fáceis de resolver e de bom prognóstico e que se tornam casos graves, com evoluções muito negativas”, comenta Paula Vilariça.
Quais são os sinais de alarme?
Existem sintomas que falam por si e “que basta que apareçam para que os pais devam procurar ajuda”: aqui a médica inclui, por exemplo, tentativas de suicídio e comportamentos auto lesivos. Na eventualidade de reconhecer outro tipo de sintomas nas crianças, como a “oposição, o desafio, a irrequietude, os medos, o insucesso escolar, isolamento social, o que deve ser valorizado são as características desse sintoma”, partilha. Neste segundo caso, é importante que “os pais procurem ajuda se o sintoma tem grande intensidade; se interfere com o funcionamento da pessoa e se constituí uma mudança no padrão habitual de funcionamento da pessoa, como por exemplo uma criança que é sempre obediente e de repente começa a desobedecer”, finaliza, explicando que é importante promover uma boa comunicação com os filhos. Mudanças de sono ou apetite; mudanças de humor; quebra do funcionamento; alterações da sensibilidade a sons, cheiros, toque, alimentos ou estímulos visuais, com reações de evitamento ou sobre estimulação; apatia ou falta de energia e aparecimento de crenças bizarras e comportamentos não habituais e estranhos que não existiam previamente são alguns dos sinais que devem fazer soar as sirenes de alarme dos cuidadores face ao comportamento dos mais pequenos.
Ansiedade, depressão e esquizofrenia infantil: como distinguir?
Estas três patologias são todas muito diferentes entre si, seja na sintomatologia associada, como tratamento ou evolução da condição médica.
Diz-se que a ansiedade é excesso de futuro, mas o que é facto é que é tão mais do que essa designação: trata-se da patologia mental mais frequentemente diagnosticada. No caso das crianças, a especialista refere que podemos ter como exemplo a ansiedade da separação. “Se uma criança não tem qualquer ansiedade de separação, não consegue criar laços de vinculação segura aos seus pais e terá tendência para comportamentos que podem pôr a sua vida em risco”, contudo, “em extremo não permite que a criança se afaste dos pais e interfere com a vida social e escolar, sendo precursora de fobias sociais e escolares”, continua. No caso da depressão segue, segundo a pedopsiquiatra, a mesma lógica das perturbações de ansiedade – “vai desde quadros muito ligeiros até a situações gravemente incapacitantes. Por fim, a esquizofrenia, “é uma doença rara e muito grave”, menciona, “a esquizofrenia de início precoce afeta 0,5% das crianças e tem um prognóstico muito reservado”.
Ao contrário da maioria das doenças físicas não existe um exame ou análise laboratorial que consiga, em tempo recorde, confirmar o diagnóstico: é muito mais complexo do que isto, “depende do nível de desenvolvimento, da cultura, das condições económicas e de várias outras características, como o meio em que está inserida”, comenta. Para um diagnóstico deste tipo é necessário analisar a história clínica, com recurso a exames complementares “tais como a avaliação psicológica, psicopedagógica entre outras, e exames que descartaram quadros orgânicos”.
À disposição os pais têm, dependendo do quadro clínico, das características da criança e da patologia em causa, algumas terapêuticas que constam em guidelines internacionais. “Psicoterapias individuais, intervenções em grupo, terapia familiar, terapia ocupacional, terapia da fala, a psicomotricidade e a medicação, entre outros exemplos, são algumas hipóteses que merecem atenção, explica a médica.
Saúde Mental infantil? É importante fazer mais e agora
Amanhã já é tarde de mais, a “saúde mental pediátrica em Portugal sempre foi um parente pobre da saúde em geral e da própria saúde mental”, admite a especialista em saúde mental infantil. A médica justifica que a pandemia COVID 19, como fator adverso com dimensões globais, veio dificultar o cenário da saúde mental infantil. “A situação já era complicada, com uma grave falta de meios para fazer face às necessidades das populações. Com a pandemia, assistiu-se ao aumento exponencial de problemas de saúde mental nas crianças e adolescentes e ao mesmo tempo a uma diminuição dos recursos disponíveis”, remata.
Sendo a escola uma das áreas mais importantes da vida das crianças e adolescentes, as escolas, segundo Paula, “devem ser um parceiro da rede de saúde mental”. É lá, onde as crianças passam 80% do seu tempo, e por isso “muitas vezes é na escola que surgem os primeiros sintomas de alarme”. É curioso como a escola, quando aliada aos pacientes, aos cuidadores, ao sistema, pode ser imprescindível em grande parte das intervenções terapêuticas.
“É importante ter presente que a escola constitui um dos três pilares da saúde mental das crianças e adolescentes, juntamente com a família e com os serviços de saúde mental”, atalha. É importante também não deixar para amanhã a necessidade que temos de cuidar do bem-estar emocional, independente da idade, da profissão, da nacionalidade. É importante cuidarmos de nós, estarmos atentos aos mais jovens, porque é neles que existe o futuro. Amanhã, já é tarde de mais.
Saiba mais sobre este projeto em: https://observador.pt/seccao/observador-lab/saude-mental-janssen/
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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