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A política e as suspeitas de corrupção sempre andaram de mãos dadas. Não por acaso, o nome da famosa operação judicial Mani pulite (“Mãos limpas”), em Itália, tornou-se sinónimo um pouco por tudo o mundo de investigações judiciais sobre políticos — suspeitos de receber subornos, manter conflitos de interesses ou promover relações de nepotismo.
De Itália vem também um nome de um chefe de governo envolvido em vários processos judiciais, Silvio Berlusconi, que acabou mesmo por ser condenado por corrupção. E, como ele, há muitos outros líderes mundiais acusados e até julgados e condenados por crimes semelhantes, de Nicolas Sarkozy a Cristina Kirchner, de Jacob Zuma a Imran Khan, passando pelos últimos anos em que os processos judiciais de figuras como Jair Bolsonaro e Donald Trump (bem como o caso anulado de Lula da Silva) dominaram as manchetes.
A grande maioria destas figuras, porém, só se viu envolvida nestes processos meses ou até anos depois de ter abandonado o cargo. Situações como a que se registou em Portugal esta terça-feira — em que um primeiro-ministro em funções se demite por investigações a membros do seu governo e onde ele próprio é alvo de investigação — são mais raras. O que não significa, contudo, que não existam.
O Observador recolheu alguns dos casos mais semelhantes nos últimos anos em que primeiros-ministros e Presidentes acabaram por se demitir ou serem demitidos por causa de suspeitas de corrupção e investigações judiciais em curso. As relações pessoais dos chefes de governo (uma amante que era também chefe de gabinete e uma melhor amiga que controlava questões políticas) foram, em alguns dos casos, determinantes. Noutros — seja pela gestão das suas finanças pessoais ou pelo que se encontra em mensagens de WhatsApp —, tudo se deveu ao comportamento dos próprios líderes.
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Bertie Ahern. O primeiro-ministro com finanças pessoais “caóticas”
Bertie Ahern era um dos primeiros-ministros mais populares de toda a História da Irlanda. Figura-chave no processo de paz da Irlanda do Norte, conseguiu resultados económicos extremamente positivos ao longo de mais de uma década como Taoiseach.
As suspeitas de corrupção que envolviam o político já eram conhecidas há ano e meio. Tudo remontava à década de 1990, altura em que Ahern recebera uma série de pagamentos em dinheiro por parte de vários empresários. Ahern negava, porém, qualquer ilegalidade e garantia terem sido apenas ajudas de amigos numa altura mais difícil da sua vida, após o divórcio. Naquela quarta-feira, não tinha acontecido nada em específico que fizesse alguém adivinhar o que se iria seguir.
Bertie Ahern teve uma reunião de Conselho de Ministros, realizada como era habitual todas as semanas, ao pequeno-almoço. O encontro seguiu o rumo esperado, com os assuntos da agenda do dia. No final da reunião, porém, Ahern declarou aos seus ministros que iria apresentar a demissão e convidou-os a juntarem-se a si numa conferência de imprensa, à saída. “Houve um silêncio de choque em toda a sala. As pessoas não estavam mesmo à espera”, confessaria depois a ministra da Educação, Mary Hanafin, segundo a Associated Press.
Num discurso de 12 minutos em que falou visivelmente emocionado, o Taoiseach anunciou ao país a sua demissão. “Nunca, em todo o tempo em que estive na vida pública, coloquei os meus interesses pessoais à frente do bem comum”, garantiu. “Nunca recebi um pagamento corrupto e nunca fiz nada para desonrar qualquer cargo que tenha tido. Sei, no fundo do meu coração, que não fiz nada de mal nem prejudiquei ninguém.”
A decisão, porém, foi tomada por sentir que as suspeitas que pairavam sobre si estavam a prejudicar o país, esclareceu. “O governo não pode estar sempre a ser distraído com as minudências da minha vida, do meu estilo de vida e das minhas finanças”, declarou.
Nos anos seguintes, com a continuação do julgamento Mahon (não uma investigação judicial, mas um inquérito político independente), seriam conhecidos mais detalhes sobre a vida financeira de Bertie Ahern. O primeiro-ministro terá recebido pagamentos no valor de mais de 200 mil euros ao longo dos anos em que esteve em governos. “Muitas das explicações fornecidas pelo senhor Ahern como sendo a fonte dos seus fundos substanciais (…) foram consideradas inverdades por este tribunal”, pode ler-se no relatório final. O documento, contudo, não concluiu que Ahern fosse corrupto, por não conseguir comprovar que este terá atuado com contrapartidas a esses pagamentos.
Quatro anos depois da sua demissão, Ahern voltaria a falar em público sobre o caso. Admitiu que as suas finanças pessoais eram “caóticas”, resultado do período turbulento após o divórcio, mas reforçou a sua inocência. “Nunca fiz nada de errado ou ilegal. Mas tenho dito que se pudesse voltar atrás e fazer as coisas de forma diferente, fá-lo-ia.”
Petr Necas. A chefe de gabinete que era amante, a espionagem à mulher e o suborno aos deputados incómodos
Petr Necas foi eleito, em parte, pela sua agenda de combate à corrupção, que lhe chegou a valer a alcunha de “Senhor Mãos Limpas” na República Checa.
Mas, ao fim de apenas três anos como primeiro-ministro, Necas viu-se envolvido num escândalo tão grave que acabou por resultar na sua demissão. E tudo por causa das suspeitas que recaíam sobre a sua chefe de gabinete, Jana Nagyova, que era afinal também sua amante.
Em junho de 2013, a polícia checa levou a cabo uma série de buscas a várias figuras ligadas ao governo, numa megaoperação por suspeitas de corrupção. Dois ex-deputados, um antigo ministro e líderes dos serviços de informações militares foram detidos; mais de 150 milhões de korunas (cerca de oito milhões de euros, em valores atuais) em dinheiro vivo e dez quilos de ouro foram apreendidos.
E, em poucos dias, as autoridades judiciais esclareceram as suspeitas que pairavam sobre Nagyova: como chefe de gabinete de Necas, a mulher teria proposto a três deputados da oposição cargos bem pagos em empresas públicas a troco da sua demissão. Teria também ordenado aos serviços secretos militares que espiassem três pessoas: uma delas a mulher do primeiro-ministro, com quem Nagyova mantinha um relacionamento.
Seguiu-se uma semana de crise política, com a oposição a pedir a cabeça de Necas e o primeiro-ministro a negar ter conhecimento daquelas ações. Até que, a 16 de junho, o chefe do governo checo decidiu apresentar a sua demissão ao Presidente, num encontro que durou apenas dois minutos. À saída, reafirmou ao país que não estava a par das ações da sua chefe de gabinete, mas deixou um reconhecimento: “Tenho completa noção de como as voltas e reviravoltas da minha vida privada estão a pressionar a cena política checa”.
Necas divorciou-se pouco tempo depois. E, em setembro, menos de dois meses depois de o escândalo ter rebentado, casou-se com a sua chefe de gabinete. Um detalhe irrelevante da vida pessoal do antigo primeiro-ministro? Não exatamente. A lei da República Checa diz que ninguém pode ser obrigado a testemunhar contra um membro da sua família. E, assim, o antigo primeiro-ministro evitava ser chamado a tribunal para testemunhar contra a ex-chefe de gabinete.
Isso não impediu as autoridades checas de acusarem formalmente Necas, no ano seguinte, por suspeitas de estar ligado ao processo de suborno dos três deputados. Acabaria por ser condenado, juntamente com Nagyova, a uma pena de prisão suspensa, já este ano. Ambos ficaram impedidos de exercerem cargos públicos por dez anos.
Sigmundur Davíð Gunnlaugsson. Uma empresa vendida por um dólar à mulher e o conflito de interesses revelado pelos Panama Papers
O caso de Sigmundur Gunnlaugsson foi praticamente acompanhado em direto pelas televisões de todo o mundo. Ou, pelo menos, deu nas vistas quando o primeiro-ministro da Islândia abandonou uma entrevista com a cadeia de televisão sueca SVT — e as imagens correram o mundo.
Em causa estavam as suspeitas levantadas pelos Panama Papers e a documentação da empresa de advocacia Mossack Fonseca. A investigação revelara que Gunnlaugsson e a mulher compararam uma empresa, a Wintris, em 2007. O primeiro-ministro não a declarou quando se tornou deputado, dois anos depois. E, ao fim de apenas oito meses, vendeu a sua parte à mulher pelo valor de apenas um dólar.
O caso tornou-se particularmente grave porque a Wintris era uma empresa que comprara títulos financeiros a bancos islandeses. E, quando o setor financeiros do país colapsou na sequência da crise financeira de 2008, a Wintris tornou-se credora desses bancos. Isto significa que, na prática, a mulher do primeiro-ministro era credora desses bancos. E o conflito de interesses tornava-se mais claro pela postura política de Gunnlaugsson. É que o primeiro-ministro havia-se destacado politicamente por defender que credores como a Wintris eram fundos “abutre” e que o governo islandês deveria proteger os islandeses deles.
Perante tudo isto, com a revelação dos Panama Papers e o abandono súbito daquela entrevista quando é confrontado com isto, os islandeses saíram à rua em massa. Bastou um dia de protestos para que Gunnlaugsson apresentasse a sua demissão. “O primeiro-ministro disse ao grupo parlamentar que vai demitir-se de primeiro-ministro e eu irei ocupar o seu lugar”, anunciou o vice-líder do partido e ministro da Agricultura, Sigurdur Ingi Johannsson.
Park Geun-hye. A “solidão” que levou ao domínio total de uma amiga e extorquiu milhões à Samsung
Outro caso que gerou grandes manifestações populares a pedir a demissão de um líder aconteceu na Coreia do Sul, em 2017. Milhares saíram às ruas a pedir o afastamento da Presidente Park Guen-hye e o Parlamento concordou: 234 deputados votaram a favor do impeachment (apenas 56 votos contra), decisão confirmada depois pelo Tribunal Constitucional.
O caso de corrupção que envolvia Guen-hye era tão grave que, com o levantamento da imunidade, a ex-Presidente acabou mesmo julgada e condenada a 24 anos de prisão. O tribunal concluiu que Guen-hye e a sua melhor amiga, Choi Soon-sil, pressionaram empresas como a Samsung a dar milhões a fundações geridas por Choi que foram depois absorvidos pela mulher para seu uso pessoal.
A Presidente justificou as suas ações em vários pedidos de desculpa públicos, onde disse ter cedido à pressão da amiga por “solidão”. “Vivendo sozinha, não tinha ninguém que me ajudasse com os muitos assuntos privados que tinha de tratar e virei-me para a Choi Soon-sil, que conheço há muito tempo, para pedir ajuda”, disse.
Ao longo de todo o processo, os media sul-coreanos revelaram o grau de influência que Soon-sil tinha sobre a Presidente do país. Filha do líder de um culto chamado “Igreja da Vida Eterna”, que apoiou a família de Guen-hye quando o pai desta foi assassinado, as duas mulheres aproximaram-se ainda em jovens. Com a chegada ao poder da Presidente, Soon-sil tornou-se uma conselheira sem nomeação: dava ordens à equipa da Presidente, tinha cópias dos itinerários das viagens de trabalho dela e escolhia as roupas que ela devia usar em funções públicas. “A senhora Choi na prática dizia à Presidente para fazer isto e aquilo”, confessou uma antiga funcionária de uma das fundações de Soon-sil ao jornal coreano Hankyoreh.
Durante o julgamento, a ex-Presidente garantiu ter-se afastado da amiga e responsabilizou-a pelas decisões criminosas. Em 2022, o Presidente Moon Jae-in decidiu conceder um perdão presidencial a Park Guen-hye.
Jüri Ratas. Um primeiro-ministro demitido por causa de um parque de estacionamento
O esclarecimento de Jüri Ratas foi publicado no Facebook. Em janeiro de 2021, o primeiro-ministro da Estónia anunciou assim publicamente a sua demissão do cargo, na sequência de uma investigação da Procuradoria Geral ao seu partido, o Partido do Centro.
Em causa estavam suspeitas de corrupção em torno da autorização para construir um parque de estacionamento no condomínio Porto Franco. Em concreto, os investigadores acreditavam que o empresário responsável pelo projeto teria aceitado fazer um donativo no valor de um milhão de euros ao Partido, em troca da autorização para incluir o parque de estacionamento. Para além disso, havia também suspeitas sobre o crédito que lhe foi concedido por uma agência estatal. E as suspeitas principais recaíam sobre o líder do Partido do Centro, Mikhail Korb, e a conselheira do ministro das Finanças, Kersti Kraht.
Apesar de não haver ligações diretas aparentes ao primeiro-ministro, Jüri Ratas decidiu apresentar a demissão por uma questão de “responsabilidade política”, disse no Facebook.
“Isto não significa que alguém é definitivamente culpado, mas lança uma sombra grave sobre os partidos envolvidos”, escreveu o primeiro-ministro. “Numa situação destas, ao apresentar a minha demissão, dou a possibilidade de trazer à luz todas as circunstâncias.”
Permanecendo à frente de um governo de gestão, Jüri Ratas acabaria por sair definitivamente de cena com o novo acordo para formar uma coligação de governo, liderada por Kaja Kallas. E, apesar de Kallas fazer parte de outro partido, a nova primeira-ministra fez uma coligação com o Partido do Centro.
Sebastian Kurz. As mensagens de WhatsApp e a comissão de inquérito na Áustria (não em Portugal)
Sebastian Kurz surgiu como a nova coqueluche das forças mais radicais quando, em 2017, formou uma coligação com o histórico partido de extrema-direita austríaco FPÖ. Esse governo, porém, durou pouco mais de um ano. Seria derrubado por um escândalo que ficou conhecido como Ibizagate, quando surgiu um vídeo que mostrava a conversa de dois membros séniores do FPÖ a equacionarem aceitar a proposta de a filha de um oligarca russo de atribuir contratos públicos à sua empresa em troca de cobertura mediática favorável.
Mas não foi esse o escândalo de corrupção que levaria à demissão de Kurz. Na verdade, o chanceler até reforçou a sua posição com as eleições que se seguiram à queda do governo e, desta vez, fez uma coligação com os Verdes. Tudo aconteceria por causa de uma comissão de inquérito e de umas mensagens de WhatsApp — pormenores semelhantes aos de um caso em Portugal, mas que aqui envolvem diretamente o chanceler.
Em outubro de 2019, os Verdes ameaçaram bater com a porta se Kurz não fosse substituído, depois de as autoridades judiciais anunciarem que tinham aberto uma investigação contra ele e outras nove pessoas próximas dele. O Presidente austríaco, Alexander Van der Bellen, deu a Kurz o empurrão que faltava, ao declarar que “a Áustria não se pode dar ao luxo de ter egoístas neste momento”.
“Admito que este não é um passo fácil para mim”, disse Sebastian Kurz numa conferência de imprensa no dia seguinte. “Mas o meu país é mais importante do que a minha pessoa.”
Em causa estava a acusação de que Kurz teria prestado declarações falsas numa comissão de inquérito parlamentar em 2020, na sequência do Ibizagate. E o caso assumiu proporções ainda maiores com a divulgação de mensagens no WhatsApp que podem comprovar a mentira.
Na comissão de inquérito, o à altura chanceler garantiu que a nomeação de Thomas Schmid, aliado político de Kurz, para uma empresa estatal não tinha passado por si. Mas as mensagens encontradas pelos investigadores incluem uma conversa onde o chanceler diz a Schmid “Tu consegues sempre o que queres, de qualquer maneira” e este responde “Estou tão feliz :-))) Adoro o meu chanceler”.
A ligação a Schmid trouxe outros amargos de boca a Kurz. Mais recentemente, já depois da sua demissão, a procuradoria abriu outra investigação por suspeitas de que o chanceler terá desviado dinheiro público para financiar sondagens enviesadas a seu favor e para pagar a órgãos de comunicação que as divulgassem. Uma vez mais, as mensagens de Schmid no WhatsApp podem servir de prova, como aquela em que o aliado político fala em ter dado ordens concretas neste sentido. “É um investimento brilhante”, comenta.