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Lembram-se? “Yes, we can”.
Há oito anos, Barack Obama acendia o imaginário dos Estados Unidos com uma mensagem (e uma oratória) de esperança e de mudança. Agora, quase a chegar ao fim do seu mandato, teve de ir a Dallas para mais uma cerimónia em que procurou consolar uma comunidade em luto profundo. Fê-lo pela 11.ª vez no seu mandato — e o pior não foi isso. O pior foi: “O que aconteceu deixou-nos a todos feridos, magoados e zangados. Foi como se uma das mais profundas linhas de ruptura da nossa sociedade tivesse sido exposta, porventura até se tivesse alargado”.
A linha de ruptura de que falava o Presidente dos Estados Unidos era a racial. E esta constatação é quase que um sinal dos limites e da frustração do seu mandato. “Para um Presidente negro cuja eleição deveria ter representado a superação das velhas tensões raciais, o reaparecimento em força dessas tensões só pode ser lido como um sinal de fracasso”, tinha-nos dito na manhã do discurso de Dallas um diplomata acreditado em Washington. Uma leitura que coincide com a de muitos editorialistas americanos que assinalaram os limites do “simbolismo” nos discursos do Presidente — um “simbolismo” bonito na oratória mas pouco eficaz na prática, como mostram algumas sondagens recentes (ver caixa).
“Em Dallas para unir a nação”, pedia-se na terça-feira de manhã nas chamadas da imprensa online. “Em Dallas, Obama procura reconciliar e dar garantias”, titularia o New York Times depois da cerimónia. Só que não é certo que o tenha conseguido, mesmo tendo falado durante 40 minutos e sabido transmitir uma sentida emoção num serviço fúnebre também ele carregado de emoções. Só que nem sempre foi aplaudido: a assistência, formada sobretudo por polícias, batia palmas quando o Presidente lembrava ao povo americano que “pedimos muito aos polícias enquanto pedimos demasiado pouco a nós mesmos”, mas ficava em silêncio quando ele se referia a que “black lives matter” (“a vida dos negros também conta”), pois essa é a referência do movimento que tem organizado muitos dos protestos contra a violência policial.
Menos ou mais divididos?
Mais adiante no seu discurso, Obama procurou transmitir a imagem de uma América menos dividida do que parece. “É difícil não pensar que às vezes o centro não vai conseguir resistir e que as coisas só podem ficar pior. Compreendo que isso suceda. Compreendo o que os americanos sentem. Mas, gente de Dallas, estou hoje aqui para vos dizer que temos de rejeitar esse desespero, estou para insistir que não estamos tão divididos como parece”.
Deveria ser assim. Afinal, ele é o primeiro Presidente negro dos Estados Unidos. Mas os sinais vão em direcção contrária e o próprio Obama não parece ter ajudado a baixar a tensão. A sua primeira reacção à morte de dois negros, Philando Castile em Falcon Heights, no Minnesota, e Alton Sterling, em Baton Rouge, na Louisiana, morte essa que desencadeou a mais recente vaga de protestos, foi para insistir na mensagem de que existe um enorme desequilíbrio na forma como a polícia e a justiça tratam os negros nos Estados Unidos. “Todos nós, americanos, temos de nos sentir perturbados por estas mortes pois não se trata de incidentes isolados”, disse Obama logo a 7 de Julho, quando ainda estava na Polónia a participar numa cimeira da NATO. “Essas mortes são sintomas de um conjunto mais vasto de disparidades raciais que existem no nosso sistema de justiça criminal”.
“”Ambas as comunidades [polícias e minoria negra] se sentem encurraladas e vitimizadas, ambas estão zangadas, e a triste verdade é que existem boas razões para ambas se sentirem dessa forma”
Nesses dias, ainda Dallas não tinha acontecido, os vídeos dos dois negros a serem mortos por polícias sem razão aparente inflamara os espíritos e criara a percepção de que qualquer negro estava em perigo. “Estou a pensar que tenho de telefonar aos meus sobrinhos para lhes pedir que não saiam para a rua”, comentou na altura Serena Williams, que estava a disputar mais uma vitória no torneio de ténis de Wimbledon. “É que se eles saírem e entrarem no seu carro para um simples passeio pode ser a última vez que os veja”, acrescentou a tenista, referindo-se às circunstâncias em que Philando Castile foi morto.
As mortes de Dallas mudariam contudo o sentido do debate. O raide de Micah X. Johnson, de 25 anos, um ex-soldado negro determinado a “matar polícias brancos” – matou cinco e feriu mais nove – mostrou os riscos de uma retórica que coloca sempre o ónus da desconfiança no lado das forças policiais. A verdade, notou Seth Stoughton, um antigo investigador criminal que hoje é professor na Universidade da Califórnia, é que “ambas as comunidades se sentem encurraladas e vitimizadas, ambas estão zangadas, e a triste verdade é que existem boas razões para ambas se sentirem dessa forma”.
É mesmo verdade que os negros são vítimas da polícia?
A divulgação de vídeos perturbantes como os de Falcon Heights e Baton Rouge, depois de outros como os de Ferguson em 2014, é por regra seguida pela referência a estatísticas que mostram que, proporcionalmente, o número de negros vítimas de violência policial é muito maior do que o de membros de outras comunidades e que, na população prisional, a proporção de negros é também muito mais elevada. Têm sido essas estatísticas que suportam movimentos como o Black Lives Matter, que têm desempenhado um papel importante na organização dos protestos que se têm seguindo aos casos mais mediáticos de violência policial. Por regra protestos pacíficos, mas que nalguns casos degeneram em violência, como sucedeu no fim de semana em Baton Rouge, onde um líder do Black Lives Matter acabou por ser detido pela polícia.
E o que nos dizem realmente os números? Depois dos acontecimentos de Ferguson, em Agosto de 2014, onde o adolescente negro foi fatalmente atingido pela política desencadeando uma onda de motins, o Washington Post criou uma base de dados para tratar todos os casos em que incidentes com a polícia resultaram em mortes.
Há mais de 20 anos que as relações raciais não estavam tão más
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69% dos americanos consideram que as relações raciais nos Estados Unidos são, de uma forma geral, más — há um anos apenas 38% tinham essa opinião. Trata-se da percentagem mais elevada de inquiridos a sublinhar a existência de uma discórdia profunda desde o início da Presidência Obama e uma das percentagens mais elevadas desde os motins de 1992 em Los Angeles na sequência do caso Rodney King.
Estes resultados foram divulgados esta quarta-feira pelo New York Times e estão numa sondagem realizada durante o último fim de semana. A mesma sondagem também revelou que mais de metade dos negros e cerca de metade dos brancos não ficaram surpreendidos com o ataque de Dallas que vitimou cinco polícias. Em contrapartida, as opiniões de negros e brancos diverge radicalmente quando se trata de avaliar a actuação da polícia: 66% dos brancos responderam que a raça do suspeito não fazia diferença, enquanto só 18% dos negros partilhou essa perspectiva.
De acordo com uma síntese preparada pelo próprio jornal, o número de casos subiu 6% nos primeiros seis meses de 2016 por comparação com idêntico período de 2015 (491 mortes este ano contra 465 o ano passado), mas o padrão não se modificou muito: metade dos mortos eram brancos, a outra metade pertenciam a minorias étnicas. Porém, comparando a proporção de mortos por comparação com o peso de cada comunidade étnica, verifica-se que a probabilidade de um negro ser morto é 2,5 vezes maior do que a de um branco.
Por outro lado, do total de casos registados, menos de 10% envolveram pessoas que não estavam armadas. Em idênticos períodos, morreram 16 polícias em 2015 e 20 em 2016 (antes dos acontecimentos de Dallas).
Em 2014 registaram-se 6.095 negros mortos por homicídio, contra 5.397 mortes em todas as restantes comunidades combinadas. A quase totalidade desses negros morreu vítima de outros negros.
De todos estes números, o indicador que movimentos como o Black Lives Matter mais cita é o da proporção mais elevada de negros, mas esta é uma leitura contestada por académicos como Heather Mac Donald, do Manhattan Institute de Nova Iorque, que contrapõe que a proporção de negros vítimas da polícia até é reduzida se tivermos em consideração que as taxas de crimes violentos são muito mais elevadas entre os negros. Recorrendo aos últimos dados disponíveis, de 2014, sublinha que nesse ano houve 6.095 negros mortos por homicídio, contra 5.397 mortes em todas as restantes comunidades combinadas. A quase totalidade desses negros morreu vítima de outros negros.
Por outro lado, de acordo com dados recolhidos do FBI, na última década 40% dos casos em que polícias foram mortos em recontros violentos os homicidas eram negros, quando a minoria negra representa apenas 13% da população. Mais: de acordo com um outro estudo citado por Heather Mac Donald, nos 75 maiores condados dos Estados Unidos 57% dos assassinatos registados em 2009 foram realizados por negros apesar de estes representarem, nesses condados, apenas 15% da população.
Ou seja: a criminalidade é muito mais elevada entre a comunidade afro-americana, pelo que é de esperar muito mais recontros violentos com a polícia, facto que contribui para explicar porque é mais elevada a proporção de negros que morre nessas ocorrências.
A surpresa dos estudos mais recentes
Mas há mais dados e mais recentes, já que, depois de os acontecimentos de Ferguson terem chamado a atenção para as tensões existentes entre a polícia e muitas comunidades negras, alguns trabalhos académicos procuraram aprofundar o problema. O New York Times divulgou um deles esta semana, realizado por Roland G. Fryer Jr, um economista afro-americano de Harvard, que estudou mais de mil incidentes e não encontrou diferenças de tratamento entre negros e membros de outras comunidades no que respeita a casos mortais. O jornal de Nova Iorque considerou por isso o estudo “surpreendente”, mesmo sendo verdade que, no que respeita a outro tipo de práticas agressivas por parte da polícia, esse estudo revelar que aí os negros já tinham alguma razão de queixa.
Um relatório de 2015 do Departamento de Justiça sobre a polícia de Filadélfia revela que, entre os membros daquela força, eram os negros e os de origem hispânica os que mais depressa disparavam contra civis negros na suposição, por vezes errada, de que estes estavam armados. Os polícias brancos tinham mais cuidado.
Uma outra investigação académica, esta de Lois James, da Washington State University, testou a forma como polícias e cidadãos comuns reagiam instintivamente a ameaças, tendo concluído que os primeiros têm mais cuidado a disparar quando a ameaça vem de um negro, passando-se exactamente o contrário no outro universo estudado. Este trabalho justifica esta diferença de comportamento pelo treino que as forças policiais recebem, que as leva a ter mais cuidado na relação com as minorias.
De resto, está longe de ser um adquirido que o preconceito racista se manifeste sobretudo entre os brancos. Um relatório de 2015 do Departamento de Justiça sobre a polícia de Filadélfia revela que, entre os membros daquela força, eram os negros e os de origem hispânica os que mais depressa disparavam contra civis negros na suposição, por vezes errada, de que estes estavam armados. Os polícias brancos tinham mais cuidado. Talvez não por acaso, o protagonista de uma das mortes dos últimos dias é um polícia de origem hispânica.
O exemplo de Washington
Eckington é um bairro sossegado de Washington mas que fica “por trás do Capitólio”. No início da década de 1990, quando estive pela primeira vez nos Estados Unidos e Bill Clinton acabara de tomar posse, esta era uma zona onde um branco dificilmente se aventurava. Até porque os espíritos andavam inflamados: em Los Angeles estava a decorrer o segundo julgamento dos polícias que tinham agredido Rodney King, um caso famoso à época e que já suscitara violentos motins.
Nessa altura (princípio de 1993) a única vez que então passei para a metade oriental da capital dos Estados Unidos foi num grupo que distribuía comida aos sem-abrigo, que então se encontravam por todo o lado. Recordo-me, por exemplo, de Nell, uma jovem negra de cara muito magra e olhos brilhantes que, enroscada junto a um respirador do metropolitano em busca de um pouco de calor para vencer o frio cortante dessa noite de Inverno, segurava nas mãos um cartaz com apenas três palavras: “Hungry, please help”. Assim como me lembro da casa-abrigo que acolhia uma dúzia de mulheres como Nell, algumas com filhos mas sem casa nem quaisquer meios de subsistência.
Mais de 20 anos passados quase não encontramos desvalidos embrulhados em cobertores rotos nas ruas de Washington – e bairros como Eckington passaram a ser bairros mistos e acolhedores. Foi aqui que aluguei um pequeno apartamento para estes dias de contactos com o “establishment” e isso não surpreendeu o meu amigo Mark, dirigente de um influente think tank. “Os meus filhos também moram em bairros onde nessa altura nem me atrevia a entrar”, revela-nos. “Mudou muito”.
E mudou porque Washington, uma cidade onde a maioria dos habitantes é afro-americana (a elite que aqui trabalha vive sobretudo nos bairros dos subúrbios), foi uma das cidades que mais beneficiou com as reformas da década de 1990 do século passado. A sua taxa de criminalidade e de mortes violentas era então das mais elevadas do país, mas caiu dramaticamente na sequência de reformas como a da segurança social, promovida pela administração Clinton, que procurou combater os efeitos indesejados das políticas de combate à pobreza, e da introdução de novos métodos de intervenção policial, seguindo as políticas de “tolerância zero” primeiro introduzidas em Nova Iorque pelo mayor Rudolph Guliani.
Houve também esforços noutras áreas, como a da educação – há por exemplo uma “charter school” [escolas que recebem financiamento público mas funcionam de forma independente, atraindo alunos de famílias pobres e oferecendo-lhes uma educação alternativa] a poucas dezenas de metros do apartamento que aluguei. Mesmo assim, há quem receie um retrocesso pois as taxas de criminalidade, por exemplo, voltaram a aumentar. Pouco, mas aumentaram.
David O. Brown, o polícia que viu o filho matar um polícia e ser morto pela polícia
Mas não foi só em Washington que a situação mudou. Há mais cidades onde as reformas foram profundas e uma delas é precisamente Dallas, onde agora tudo se passou. Sendo que poucos protagonizarão melhor os novos tempos do que o seu comandante da polícia, David O. Brown, também ele um afro-americano que se tornou uma referência de serenidade — e seriedade — ao longo destes dias.
A sua vida não foi fácil nem isenta de duras provas. Há apenas seis anos, no Dia do Pai de 2010, pouco tempo depois de ter sido promovido a chefe da polícia de um subúrbio de Dallas, o filho de David O. Brown, então com 27 anos e que sofria de problemas psicológicos, matou um polícia e um outro homem antes de ele próprio ser morto no tiroteio que se seguiu. Na altura teve de fazer o luto pelo seu filho e pelo seu companheiro, mas os que então o acompanharam recordam-se de que fez questão de ir pessoalmente pedir desculpa às famílias das duas vítimas.
À frente da polícia de Dallas, tornou-se um dos rostos de uma profunda reforma destinada a aumentar a confiança nas relações com comunidades como aquela de que ele próprio vinha, tendo claro que muito caminho já foi percorrido e ainda há mais por percorrer. “Cresci no Texas, faz parte da minha vida perceber que esta sociedade tem uma longa história de tensões raciais”, comentou já depois das cinco mortes da semana passada. “Mas estamos hoje muito melhor do que estávamos quando eu era jovem [tem 55 anos], mesmo que ainda haja muito por fazer, especialmente na minha profissão”.
David O. Brown decidiu tornar-se polícia depois de assistir à destruição que a epidemia do “crack”, a droga dos anos 1980, provocou na sua comunidade.
Por isso ele, que decidiu tornar-se polícia quando, nas décadas de 1970 e 1980, assistiu à destruição da sua comunidade pela epidemia do “crack”, a droga da época, fez esta semana um apelo que de alguma forma contrasta com as palavras de Obama em Dallas, ao dirigir-se assim aos manifestantes convocados por movimentos como o Black Lives Matter: “Não sejam parte do problema. Nós estamos a contratar mais polícias. Deixem os protestos e inscrevam-se. Nós colocá-los-emos a patrulhar o vosso bairro”.
O dedo apontado a Obama
Mas isto é em Dallas. Noutras cidades há indicações de que a percepção de que a polícia actua de forma racista tem levado as forças policiais a procurar evitar situações problemáticas, evitando exactamente os patrulhamentos nos bairros das minorias. Ora isso, sublinha Myrion Magnet, do Manhattan Institute, é fazer exactamente o contrário do que deve ser feito – do que foi feito no tempo de Guliani em Nova Iorque e que mudou radicalmente a cidade:
“Eles tiveram de começar por restaurar a lei e a ordem nos bairros transformados em guetos, pois só assim poderiam abrir espaço para uma vida normal. Antes a polícia ignorava o que se passava nesses guetos, seguindo a máxima de que, se queriam matar-se uns aos outros, que se matassem, desde que não saíssem dos seus guetos. Depois isso mudou, e todas as vítimas passaram a merecer a atenção da justiça, independentemente da sua raça, todos os bairros passaram a ter protecção policial, fosse qual fosse a comunidade que neles vivesse. Isso mudou tudo porque permitiu que aqueles que aí estavam a nascer e a crescer passassem a conhecer um mundo diferente, que não era apenas o dos gangs”.
A crítica que agora muitos fazem a Obama é que contribuiu para a reversão de muitas destas políticas e que os seus discursos acentuaram o ressentimento e a vitimização, o mesmo sucedendo com as políticas do seu Departamento de Justiça. Outros, como Michele Stingley, alguém que cresceu no Mississípi no tempo do movimento pelos direitos civis e falou em Dallas a um repórter do Wall Street Journal, criticam-no por ter feito demasiado pouco pelos negros: “Não tenho a certeza se ele foi tão firme na defesa dos direitos civis como foi na defesa dos direitos dos homossexuais”, comentou enquanto esperava por ver passar a comitiva presidencial nas ruas de Dallas.
O tempo no entanto escasseia. A poucos meses do fim do seu mandato, o primeiro Presidente negro dos Estados Unidos enfrenta tensões raciais que fazem com que alguns, como o historiador Gail Collins, colaborador do New York Times, não hesite em estabelecer paralelismos com 1968, ano de motins, assassinatos (Luther King, Robert Kennedy), subida da desconfiança nas instituições e aparecimento de políticos populistas. Ou seja, um tempo com muitas similitudes com o actual.
A poucos dias das convenções que escolherão os candidatos republicano e democrata, este paralelo obriga a reflectir. Até porque é já na segunda-feira que se iniciará, em Cleveland, o que todos antecipam como sendo uma dividida e polémica coroação de Donald Trump como cabeça do ticket republicano.
(O Observador está em Washington com o apoio da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento).