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Considerada uma das maiores especialistas do Ministério Público (MP) no combate ao desvio de fundos europeus, Ana Carla Almeida é a dinamizadora do think tank da Procuradoria-Geral da República (PGR) criado para acompanhar os riscos de fraude dos recursos financeiros da União Europeia.
A procuradora-geral adjunta não tem dúvidas em afirmar no programa “Justiça Cega” da Rádio Observador que a “proximidade ao poder político de um candidato a fundos europeus é um fator de risco de corrupção”. Sem responder diretamente ao caso que envolveu o marido da ministra Ana Abrunhosa, Almeida afirma que, termos abstratos, tal proximidade pode ser decisiva.
A magistrada explica ainda a sua saída do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), argumentando que saiu por duas razões: por criticar o Governo por não financiar os recursos que o MP necessita e devido a uma alegada falta de estratégia do MP no combate à criminalidade económico-financeira.
Por sua iniciativa, saiu do DCIAP e pediu transferência para o Tribunal da Relação de Évora. Porquê?
Houve duas ordens de razão. Uma é porque acredito que a permanência durante muito tempo nas mesmas funções não beneficiam nem as pessoas nem as instituições. Estive no DCIAP cerca de dez anos — o que é demasiado.
Há outras razões que são mais profundas às quais não vou fugir. A partir de determinada altura, apercebi-me que estava impossibilitada de implementar o modelo de investigação que entendi seguir nos processos dos fundos europeus. Isso impediu-me de responder com a eficácia, qualidade e celeridade, muito por uma completa falta de recursos. Olhando para o médio e longo prazo, apercebi-me que as coisas não iriam melhorar e que a situação se iria perpetuar. Era como se eu estivesse a correr contra uma parede.
Não quero com isto dizer que a minha saída se deve só à falta de recursos — que é real, verdadeira e que, diria mesmo, pode colocar em causa a independência do MP na intervenção da área económico-financeira, nomeadamente a investigação dos desvios de fundos e da corrupção.
Há uma insatisfação clara da sua parte com a falta dos recursos.
É uma incapacidade de levar a bom porto as minhas funções. Mas não há apenas uma ausência de recursos. Há também uma ausência de reflexão interna dentro do MP. Falo na área da criminalidade económico-financeira.
A ausência de recursos pode ser uma desculpabilização da parte do MP?
Não porque a falta de recursos é verdadeira. É verdade que há problemas graves com as perícias e com a cooperação internacional, entre outros. Isso não é falacioso: esses recursos não existem. A questão é que o MP também tem de olhar para as suas próprias metodologias.
Depende de o Governo disponibilizar esses recursos."
Essa ausência de reflexão é responsabilidade de alguém em particular?
Não. É de todos. É evidente que, se nós subirmos na hierarquia, as responsabilidades serão mais acrescidas. Eu não me demito das minhas enquanto responsável por investigações. Mas também preciso de um apoio institucional — que não existe. E esse apoio não depende da senhora procuradora-geral da República.
Depende de quem?
Depende de o Governo atribuir esses recursos. Não é competência da senhora procuradora-geral da República definir esses recursos porque depende sempre do orçamento que tiver à sua disposição.
O orçamento da PGR, da qual o DCIAP faz parte, depende do Ministério da Justiça.
Evidentemente. Mas a identificação desses recursos deve ser antecipada por uma reflexão acerca disso e isso não é feito. O que vejo é que o MP tem uma resposta reativa e casuística. Por exemplo, há um determinado processo importante e constitui-se uma equipa multidisciplinar mas ninguém sabe, de forma transparente, dos critérios que levaram à constituição da mesma, quanto é que custou, o que resultou mal. Essas questões são importantes, não para responsabilizar, mas sim para melhorarmos o nosso trabalho. Porque se continuarmos a agir de forma casuística, não chegaremos a lado nenhum.
Candidatou-se ao lugar de procurador europeu atribuído a Portugal. Depois de ter sido selecionada por um painel da União Europeia, o Governo de António Costa não aceitou a escolha e impôs o nome de José Guerra, que tinha sido escolhido pelo Conselho Superior Ministério Público. Este é um tema fechado e encerrado para si?
Em termos pessoais, esse assunto está ultrapassado. Na altura, o tema teve o impacto que teve. Tomei a posição que entendi que devia ter tomado e avancei. Agora há uma coisa que não passou nem posso deixar passar: a defesa do exercício autónomo desta função [procuradora da República] e da Procuradoria Europeia.
É absolutamente inadmissível que o Governo [português] tenha tido uma interferência como aquela que teve na nomeação do procurador europeu.
“A proximidade ao poder político de um candidato a fundos europeus é um fator de risco de corrupção”
Falando de fundos europeus. O Governo tem tido nos últimos tempos vários casos de incompatibilidades e conflitos de interesses. Um deles é o caso do marido da ministra Ana Abrunhosa, que recebeu várias centenas de milhares de euros. Os conflitos de interesse e as incompatibilidades dos decisores têm sido acauteladas na gestão dos fundos estruturais?
Respondendo em termos abstratos, sim. Isso está garantido do ponto de vista formal. Agora se me pergunta se, de facto, isso está acautelado, eu tenho visto que pode não estar. Recordo-me que fizemos uma reflexão no think tank da PGR, com pessoas fora da estrutura dos fundos e outras que fazem parte da governação dos fundos, sobre fraudes mais recorrentes e perfis de infratores — e toda a gente referiu a situação dos conflitos de interesse.
A proximidade de um candidato a fundos europeus a um decisor político (ou a outro poder público) é um fator de risco importante de fraude ou de corrupção?
Claro que é. Em abstrato, chamo a atenção para o seguinte: as estruturas de governação dos fundos têm um pendor… não sei se devo dizer politizado ou mesmo partidarizado. E que resulta desta circunstância: o presidente da Comissão Diretiva das comissões de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR) é, por inerência, o gestor dos programas operacionais.
O que está a dizer é que os gestores dos programas operacionais dos fundos europeus são titulares de cargos de nomeação política?
Sim. Se juntarmos a isso a pressão constante — e aí é do partido A, do partido B e do partido C — para a execução, para a execução, para a execução… Não estou a dizer que a má execução é sempre fraude. Mas uma má execução também pode ser o desvio dos fundos fora do âmbito das políticas públicas aos quais se destinavam. Isso até coloca problemas em termos de concorrência desleal na própria economia.
Independentemente do partido governamental, a politização que estava a referir faz lembrar um pouco os anos 80 e 90. Parece que é uma realidade que não mudou.
É fundamental que existam regras claras, pré-existentes e que toda a gente as compreenda. O que não pode acontecer é o que tem acontecido: avanços e recuos face às regras que estão estipuladas. Isso aumenta a desconfiança dos cidadãos face aos poderes públicos e alimentam os discursos populistas. Isso ninguém quer. Nós queremos que os cidadãos confiem nas decisores políticos. Se criamos uma ‘maionese de dúvidas’, vamos levar a essas situações. E depois dizem: ‘se as regras forem muito apertadas, depois ninguém quer vir para a política’. Pelo contrário: se as regras forem claras, protegem as pessoas e as instituições.
Talvez tenhamos de ser mais rigorosos nas regras da transparência e da probidade, de forma a que possamos vir a ser menos exigentes no futuro.
Há irregularidades frequentes sobre a gestão de fundos europeus detetadas por essas auditorias às estruturas de gestão dos fundos europeus?
Sim, há. Mas não tantas como eu estaria à espera. Muito devido ao facto de as auditorias não realizarem trabalho de campo.
“A pressa em executar é sempre sinónimo de aumento de risco de fraude e de corrupção”
Os últimos dados conhecidos da execução do PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] apontam para uma fraca execução, cerca de 4,9% quando já passou 24% do tempo que temos para executar. A culpa desta fraca execução é só do excesso de burocracia?
A burocracia é sempre um malefício para os decisores públicos em geral porque pode potenciar situações corruptivas. Uma das ideias que surgiram no think thank foi criar um pequeno grupo que tem como objetivo propor soluções para simplificar a linguagem e o acesso transparente à informação.
O sistema de gestão dos fundos em Portugal tem uma característica peculiar: há uma estrutura pública de gestão de fundos, há os candidatos e, no meio, há uns intermediários que são empresas de consultadoria que prometem aprovar subsídios. Esses intermediários promovem a transparência ou são um obstáculo?
Não gosto de me pronunciar sobre os diferentes operadores económicos. É como em todos os setores: há os bons e há os maus. Neste último caso, até chegam a garantir a aprovação, o que é bizarro. Há dias, no âmbito de uma reunião do think-tank, foi sugerido [em jeito de pergunta]: porque é que a estrutura de governação dos fundos não cria uma entidade que exerça uma função de consultoria juntos dos beneficiários? É uma ideia em que vale a pena pensar.
O progrma “Portugal 2020” termina em 2023 e ainda falta executar 6,2 mil milhões de euros. A pergunta vale para o Portugal 2020 e para as restantes linhas de financiamento: a pressa em executar pode aumentar os riscos de fraude e corrupção?
Não tenho dúvidas de que a pressa em executar é sempre sinónimo do aumento do risco de fraude e de corrupção. As estruturas estão mais pressionadas do que nunca e há um risco elevado de os fundos não serem corretamente atribuídos.
“Temos de estar vigilantes em relação aos sistemas de controlo interno”
O MP, a PJ e os tribunais estão hoje mais capacitados para investigar os desvios de fundos estruturais do que estavam nos anos 80 e 90? Portugal vai receber cerca de 50 mil milhões de euros até 2030.
Sim. Acontece que os indivíduos que praticam esses crimes também estão muito mais capacitados.
Estão à frente das autoridades?
Isso estão sempre. Neste jogo do gato e do rato, eles estão sempre à frente, nomeadamente nesta área dos fundos europeus. Apesar de tudo, foi feito um esforço de formação das autoridades. O MP fez mais do que a PJ — que teve um problema acrescido de recursos e de uma rotatividade das suas equipas.
Por outro lado, há uma complexidade “em cima” da própria complexidade de qualquer investigação económico-financeira: a estrutura da governação dos fundos europeus.
Não é fácil conhecer essa estrutura.
Depois há ainda uma segunda questão: é preciso conhecer o vocabulário, o léxico. Se ouvirmos alguém ligado à governação dos fundos a falar daquela realidade entre eles, nós até podemos compreender as palavras mas não percebemos o resultado.
É pior do que ouvir juristas a falar entre si sobre o Direito? (risos)
É pior, acredite. E quem domine esse conhecimento, tem muito poder. Para o bem e para o mal. Depois o interlocutor destas estruturas de governação dos fundos é Bruxelas [a Comissão Europeia], o que faz com que ela feche ainda mais a informação sobre si própria. E o que é acontece quando nos confrontamos com uma realidade que não conhecemos?
Não sabemos interpretar?
Sim. Afastamo-nos.
As entidades gestoras dos fundos têm estruturas e meios para prevenir as fraudes com fundos estruturais? Num relatório de janeiro de 2022, o think tank da PGR afirmou que “existem insuficiências na política antifraude” implementada por essas entidades.
Há um discurso oficial de que o sistema de controlo interno existe e é uma grande sindicância à atribuição dos fundos. Isso é verdade.
Há uma vontade própria do Governo português ou isso é determinado por Bruxelas?
Não, não. Há regras europeias muito apertadas sobre isso. Os próprios tratados europeus estabelecem a obrigatoriedade dessas regras de controlo nacionais para a defesa dos interesses financeiros da União e que o respetivo de sistema de controlo é capaz de diagnosticar e detetar conflitos de interesse, desvios de fundos, corrupção, etc.
O nosso sistema de controlo interno é capaz disso?
Em Portugal, é a Inspeção-Geral de Finanças (IGF) que é a autoridade de auditoria do nosso sistema de controlo interno. É a IGF quem tem garantido que o nosso sistema de controlo de interno funciona — e até diz, com todo o crédito, que tem um contrato de confiança com a Comissão Europeia. O sistema de controlo interno é fiável e é auditado. Podemos estar descansados quanto a isso.
A questão é que nenhum sistema de controlo interno é infalível. Acresce que nenhum sistema de controlo interno esteve sujeito à pressão que este está por termos em execução diversos programas de financiamento, ao mesmo tempo que o PRR é uma realidade que não tínhamos anteriormente. Há aqui riscos acrescidos. Portanto, temos de estar vigilantes.
O PRR vai disponibilizar quase 20 mil milhões de euros. Assinou um relatório em abril de 2020 em que detetou vários problemas na Comissão de Acompanhamento e Controlo do PRR. Essa comissão está efetivamente a escrutinar e a prevenir as fraudes?
Cada vez que há um pedido de desembolso a Portugal no âmbito do PRR, o MP emite um relatório de acompanhamento relativo aos seis meses anteriores no âmbito da Comissão de Auditoria e Controle. Neste momento, estamos a realizar o segundo relatório e não quero estar a antecipar nada sobre isso. Quero dizer que muitas das coisas que o MP referiu nesse primeiro relatório foram acolhidas. Uma delas era a nossa preocupação sobre o duplo financiamento.
O que é o duplo financiamento?
É quando o mesmo projeto é apoiado em duplicado por programas e linhas de apoio diferentes. Houve uma melhoria mas ainda é possível melhorar ainda mais. Mais: a IGF continua a dizer, no entanto, que o sistema de controlo interno ainda não está completamente instalado na estrutura de missão “Recuperar Portugal”. Ora isso continua a preocupar-me. Porque, se o sistema de controlo interno ainda não está implementado quando os diferentes programas já estão a ser executados, isso é um fator de risco de fraudes.
A história de “De olhos bem fechados”
No Justiça Cega queremos sempre ouvir histórias que tenham marcado a carreira do nosso convidado para o “Testemunho” desta semana. “De olhos bem fechados”, que história nos traz?
Isto aconteceu no primeiro caso relevante de desvio de subsídios. Organizámos com a Polícia Judiciária uma série de buscas judiciais para procurarmos um conjunto de dossiês, nomeadamente em domicílios. Na última casa, onde esperávamos encontrar a referida documentação, abrimos a porta e percebemos que não havia nada: nem uma cadeira, era como se ninguém ali vivesse.
“Bem”, pensei eu, “este senhor não mora aqui. Vamos embora”. Contudo, um inspetor da PJ, que passou a ser para mim uma referência, perguntou ao dono da casa: “Então, e as garagens?”. Eu pensei que só havia uma garagem. O dono da casa respondeu: “As garagens são lá em baixo.” Descemos e o senhor começa a abrir uma, duas, três, quatro, cinco portas de garagens e estavam lá todos os dossiês!
Era um espécie de escritório, de gruta secreta.
Sim. Eu fiquei admiradíssima por ver um escritório tão sofisticado e organizado naquelas garagens! Essa história é uma referência para mim que explica que um magistrado é um magistrado e um polícia é um polícia — e, na minha visão, este é um ensinamento de humildade.
O programa “Justiça Cega” vai para o ar todas segundas-feiras na Rádio Observador, a seguir ao noticiário das 13h. Pode ouvi-lo aqui.