“A RTP decidiu renovar as caras que quotidianamente coloca nos nossos pequenos ecrãs”, noticiava o Diário de Lisboa em agosto de 1971. O concurso para novos locutores da televisão era uma das atrações do ano e mobilizava um número inaudito de participantes — 511, dizem alguns registos; 503, segundo outros.
As primeiras provas de seleção decorreram naquele verão e chegados ao outono eram apenas 100 os candidatos à prova, descreveu Vasco Hogan Teves em 2007 no livro RTP – 50 Anos de História. “Iniciaram-se, então, formas de apreciação mais exigentes, com cada concorrente a submeter-se a transmissões em circuito fechado e assim alinhadas: leitura de textos noticiosos, improviso sobre tema dado no momento e condução de uma entrevista.”
Os resultados vêm a ser conhecidos em fevereiro do ano seguinte — há precisamente meio século — e 16 novas caras ganham um lugar na história da TV. “Tinham todas as possibilidades de vir a consagrar-se no pequeno ecrã”, apontou Hogan Teves. “Por um motivo ou outro, por culpa própria ou alheia, houve quem não o aproveitasse, mas o certo é que, deste concurso, saíram nomes que chegaram longe, evidenciando-se como excelentes profissionais de televisão.”
Ana Zanatti, Maria Elisa, Eládio Clímaco e Raul Durão figuram entre os mais populares daquele grupo e ainda agora são referências para gerações de portugueses. Houve mais: Anabela Cunha, Fernanda Andrade, Maria Margarida Gaspar, Maria Amélia Azevedo, Maria Celina Godinho e Maria Teresa Pinto. Nos homens, sobressaíram António Santos, Cândido Pombeiro, Fernando Balsinha, Jorge Schnitzer, Pedro Castelo e Rui Represas. Alguns tinham passado pela rádio, outros vinham do teatro, quase todos sonhavam entrar no mundo do espetáculo.
Eládio Clímaco, nascido na capital em 1941, trabalhava então na Rádio Graça, que pertencia à rede dos Emissores Associados de Lisboa. Tinha estudado no Instituto Superior Técnico e estreara-se já como ator da Casa da Comédia, grupo de teatro a que estiveram ligados Fernando Amado, Almada Negreiros, Fernanda Lapa e Maria do Céu Guerra. “Não acreditava nunca que pudesse vir a ser apresentador ou locutor de televisão”, conta agora ao Observador. “Era um ‘impossible dream’ que eu tinha em mente. O mundo do espetáculo sempre me atraiu desde muito novo, gostava de teatro, de cinema, de rádio. Naquela época, a televisão era um mundo mágico e desconhecido e eu próprio, como tanta gente, pensava que só grandes vedetas é que podiam aparecer. Eram os escolhidos, os inatingíveis.”
De repente, com a iniciativa de há 50 anos, também o jovem Eládio Clímaco passava a pertencer ao “mundo de sonho” que a TV prometia, como o próprio o descrevia. Quem o inscreveu no concurso foram colegas da Rádio Graça, mas os nomes estão perdidos na memória. “Recebi uma carta da RTP em casa e fiquei até desconfiado”, recorda. “Diziam que estava inscrito e podia seguir para as provas. Fiquei todo contente, claro, e ao mesmo tempo cheio de medo. Sou um bocado medroso e nervoso nestas coisas. De resto, os nervos acompanharam-me sempre na minha carreira televisiva.”
“Todos ambicionávamos ser independentes aos 18 anos”
Em 1972, a televisão em Portugal tem apenas 15 anos. As emissões regulares começaram em março de 1957, depois de uma experiência na Feira Popular de Lisboa em setembro de 56, e aos poucos vão fascinando milhões de portugueses, incluindo aqueles que não têm televisor, mas que espreitam os programas em casa de amigos, nos cafés, nas montras, nas casas paroquiais que à noite se abrem ao povo pelo país fora.
É o ano do ataque terrorista nos Jogos Olímpicos de Munique, com a morte de nove atletas israelitas. Nos EUA, dois repórteres do Washington Post revelam o escândalo Watergate, que levará à demissão do presidente Nixon, enquanto as salas de cinema se enchem para ver “O Padrinho”, de Francis Ford Coppola, e os humores do grande público se animam com a estreia de “Garganta Funda”.
Em Portugal, Marcello Caetano chefia o Governo desde há quatro anos e mais de 30% das pessoas trabalham na agricultura. As remessas dos emigrantes e as receitas do turismo dão uma certa prosperidade ao País — como registou em 2009 a História de Portugal de Rui Ramos. No verão o presidente Américo Thomaz é eleito para um terceiro e último mandato. Em dezembro dá-se o Massacre de Wiriyamu, em Moçambique, quando soldados portugueses dizimam centenas de civis, ao mesmo tempo que na capital da metrópole tem lugar um dos mais conhecidos episódios de contestação à Guerra Colonial, com a Vigília da Capela do Rato.
O concurso para novos locutores da RTP terá sido olhado como uma oportunidade imperdível para a geração urbana da classe média. Porém, no caso de Ana Zanatti, a história foi um pouco diferente. Ganhou o concurso em 1972, aos 22 anos, mas antes disso já se tornara presença assídua no ecrã à hora de almoço.
“Quando abandonei o curso de Românicas na Faculdade de Letras para frequentar o curso de Teatro no Conservatório Nacional, a minha intenção era ser apenas atriz”, conta ao Observador. “Esta escolha não foi nada bem vista, em especial pelo meu pai. Quando saí de casa — nessa altura quase todos ambicionávamos ser independentes aos 18 anos —, prometi a mim mesma que assumiria sozinha as consequências da minha decisão e não pediria nada aos meus pais. Por isso, além de teatro, fiz um pouco do que me ia aparecendo: folhetins radiofónicos na Emissora Nacional, no Rádio Clube Português, peças de teatro na RTP, pequenos papéis em filmes.”
Trabalhou também nos Parodiantes de Lisboa, um grupo de comédia que durante décadas foi presença radiofónica de êxito. E assim conheceu Alice Cruz (1940-1994), considerada uma das grandes vozes da telefonia, cujo percurso profissional remontava à adolescência em Angola e que já passara pontualmente pela RTP.
“Um dia apareceu o [radialista] Paulo Morais a convidar-nos às duas para sermos apresentadoras das emissões à hora do almoço que a RTP ia inaugurar. Era uma nova experiência profissional e eu precisava de garantir alguma estabilidade financeira, porque já tinha passado dois anos a comer praticamente postas de pescada congelada, que era o mais barato que havia no supermercado, por não querer faltar à minha promessa de ser independente”, lembra Ana Zanatti.
Passou a frequentar os estúdios do Lumiar, sede da RTP, e só depois é que participou no concurso para novos locutores, o que lhe permitiu abraçar a profissão durante 26 anos. “Nunca me tinha passado pela cabeça”, resume. “Foram anos de aprendizagem e treino em diversas áreas da comunicação televisiva, fiz alguns trabalhos de que gostei muito, outros que pouco ou nada me entusiasmaram, mas aprendi com todos”, acrescenta. “Conheci pessoas como o João Soares Louro, a Alice Cruz, a Maria Leonor, o Henrique Mendes, o Pedro Moutinho, o Zé Fialho Gouveia, o Herlander Peyroteo e alguns mais de quem me tornei amiga, e me deixaram muitas saudades.”
Pelos anos fora, até se afastar da estação pública, por volta de 1996, Ana Zanatti apresentou concursos, festivais e eleições de misses, fez reportagens e entrevistas. “Gostava sobretudo de locuções em off, como Os Velhos Contos do Japão [no fim da década de 70], documentários sobre a natureza, a ciência, a arte. Também gostei muito de apresentar as Noites de Cinema e de ler os Telejornais.” Ganhou popularidade na condução dos Festivais RTP da Canção, ao lado de Eládio Clímaco, que com ela formou um dos pares mais célebres da estação.
“Ele já estava preparado para me passar rasteiras”
O concurso de que agora se assinala meio século tinha um júri presidido pelo major João Baptista Rosa (1925-1982), autodidata do jornalismo, da produção, da realização e da apresentação, que tinha começado como assistente de realização de Lopes Ribeiro no filme O Pai Tirano, em 1940.
Ao Diário de Lisboa, na notícia de 1971, Baptista Rosa explicou que era “elevada a percentagem de universitários, havendo já muitos licenciados” como concorrentes. “Há também muitos que são funcionários bancários”, disse, além de locutores experimentados. “É mais frequente a experiência profissional nos homens do que nas mulheres. Esperávamos também encontrar gente ligada ao teatro e no entanto ninguém apareceu desse setor”, prosseguiu o major.
Eládio Clímaco: “Fiquei sem pai, fiquei sem mãe e, por fim, fiquei sem a televisão”
A informação não se revelaria rigorosa, já que no caso de Ana Zanatti, Eládio Clímaco ou Maria Elisa a passagem pelos palcos já tinha acontecido. Curiosamente, o Diário de Lisboa fez primeira página sobre o tema e escolheu para título uma frase popular: “135 Marias querem ser locutoras da TV”. Nas páginas interiores, manteve o registo: “O Lumiar abriu concurso e só Marias são 135 a quererem trabalhar como locutoras de TV”. Sendo 503 o número total de candidatos (de acordo com o jornal), o foco estava ser apontado ao lote minoritário. O texto terminava com a mesma ideia: “Entretanto, só Marias são 135 e espectadores são quase três milhões. Imaginem!”.
A uma outra publicação Baptista Rosa fez notar que a procura por novas caras não se devia apenas ao alargamento do horário das emissões televisivas, a que se juntara um segundo canal a partir de 1968. “É necessário refrescar e o público quase exige esse refrescamento. Assim, a intenção é esta: arranjar não só locutores para o dia a dia, mas também apresentadores e colaboradores para outros programas”, rematou o presidente júri em 1971 à revista Observador, citada por Hogan Teves no livro de 2007.
A crer na imprensa da época, os “503 que agora roem as unhas nos Estúdios do Lumiar” foram sujeitos a pelo menos duas eliminatórias, uma em agosto e outra em outubro de 71, sendo submetidos a provas relacionadas com a cultura geral — “qual foi o último livro que leu?”, “que personalidade gostaria de entrevistar?” — e também exercícios práticos.
No fim, só 16 entraram para os quadros da RTP, não com o estatuto de funcionários, mas de colaboradores. Ainda o Diário de Lisboa: “A remuneração-base será de 4.200 escudos, acrescida de um subsídio para vestuário, no valor de mil escudos, o que para um trabalho em regime de colaboração não nos parece ser pouco.”
Ana Zanatti não se lembra de ter sentido competição ou rivalidade entre os que se apresentavam no Lumiar, embora acredite que houvesse. “Fui sempre bastante desligada desse género de assuntos, sempre me mantive à margem, só gosto de competir comigo e lembro-me que numa das provas, não sei se era uma reportagem, fiz uma triste figura por estar nervosíssima. É claro que tanto a Alice como eu, tínhamos a vantagem de já estarmos há quase dois anos a trabalhar na RTP e de já conhecerem o nosso trabalho.”
Sobre as provas, a concorrente Maria Elisa Domingues, de 21 anos, declarava à revista Observador em 1971: “Senti tremendas dificuldades. Principalmente no inglês, pois só sei o que aprendi no quinto ano [9º ano]. A improvisação também é difícil dada a impossibilidade de haver um esquema. São temas muito vastos e uma pessoa sente-se desnorteada, sem saber se os deve aprofundar ou não.” Não só veio a ser uma das escolhidas como menos de uma década depois era diretora de programas da estação pública, tendo-se tornado um dos principais nomes na área da informação.
Numa entrevista de 2019 à revista Máxima, já retirada da profissão, Maria Elisa contou que o concurso de novos locutores tinha sido anunciado no telejornal por Henrique Mendes e que foi dessa forma que ela ficou a par da novidade. “Mudou a minha vida e foi uma das razões para abandonar os estudos de medicina e o Conservatório”, disse.
Eládio Clímaco, por sua vez, recorda-se de uma das provas consistir numa entrevista de improviso uma personalidade escolhida — o realizador Alfredo Tropa, conhecido como autor do documentário “Povo que Canta”, em conjunto com o musicólogo Michel Giacommetti. “Ele já estava preparado para me passar rasteiras, para que eu fosse posto à prova. Respondia-me a tudo com ‘sim’ e ‘não. Não há pior coisa para um entrevistador. Tornou-se um pesadelo, mas lá me orientei e consegui terminar”, pormenoriza Eládio Clímaco. “No fundo, ter conseguido passar o concurso significou que saí vencedor de uma etapa da vida, saí vencedor do meu sonho de miúdo, e foi uma alegria imensa.”