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© Ana Moreira/Grafismo

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"Andamos a correr atrás do quê?" Em 2022, quer ser especial ou feliz?

Um psiquiatra, uma psicóloga, um sociólogo e um neurocientista refletem sobre o sentido da vida, a importância da motivação e a gratidão, num país de cidadãos "moderadamente felizes".

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A procura incessante pelo sucesso pode distrair-nos do essencial, da felicidade nas coisas banais do dia-a-dia. A conquista de metas atrás de metas, numa tentativa de construir e/ou deixar legado, tem potencial para hipotecar relações e roubar-nos de momentos simples, embora irrepetíveis. Tanto que, em plena pandemia, um artigo da publicação The Atlantic colocava a pergunta: “Quer ser especial ou feliz”. A provocação é um convite à reflexão sobre modos de vida numa sociedade agitada, marcada por ritmos velozes e estímulos múltiplos — um psiquiatra, uma psicóloga, um sociólogo e um neurocientista tentam, cada um à sua maneira, dar uma resposta. Não que o sucesso não possa andar de mãos dadas com a felicidade, mas porque a viragem de mais um ano motiva e quase obriga ao exercício.

A psicóloga: “Andamos a correr atrás do quê?”

“Há cada vez mais sinais de que as pessoas estão à procura de uma maior realização, de um propósito, que pode não vir e pode não estar associado ao sucesso”, diz Helena Águeda Marujo, coordenadora da formação pós-graduada de Psicologia Positiva Aplicada no ISCSP-ULisboa. Se até agora a realização pessoal provinha muito do trabalho, estando associada ao reconhecimento social e a algum estatuto profissional, indicadores recentes parecem sugerir que a pandemia veio mudar maneiras de estar na vida. Citando dados dos EUA e de França, comenta como há pessoas a despedirem-se dos seus empregos. “Estão à procura de uma outra forma de viver, que considero cada vez mais ligada a um propósito de vida.”

Já antes se tinha chegado à conclusão que níveis elevados de materialismo não se traduzem necessariamente em felicidade, isto porque “adaptamo-nos muito facilmente às metas materiais que atingimos, queremos sempre mais”. E antes das máscaras faciais e dos distanciamentos sociais, a doutorada em Psicologia já detetava a procura “por uma vida que vale a pena ser vivida”. A crise sanitária acentuou esse sentimento, trouxe tempo para reflexão e para responder a perguntas como esta: “Andamos a correr atrás do quê?”. Foi uma “chamada de atenção”.

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Sem vilipendiar o sucesso — até porque uma pessoa bem-sucedida pode ser feliz —, Helena Marujo explica que todos precisamos de metas. O problema recai sobre uma sociedade que, nas últimas décadas, tem reforçado um modelo competitivo, “onde há progressiva pressão para as pessoas estarem em lugares de relevo”. “Há um conjunto de valores associados ao modelo capitalista atual que reforçaram esta dimensão e que não tinham a mesma relevância no tempo dos meus avós”, diz. As redes sociais também têm o seu papel nisto. Afinal, as vidas de sucesso são bastante mais visíveis.

Para a académica, é óbvia a relação profunda entre felicidade e gratidão, que contraria o sentimento de que há sempre algo em falta. “A gratidão passa por celebrar riquezas pessoais: o que tenho já me preenche, já me completa. É um mindset de abundância e não de déficit.”

"Há cada vez mais sinais de que as pessoas estão à procura de uma maior realização, de um propósito, que pode não vir e pode não estar associado ao sucesso."
Helena Águeda Marujo, coordenadora da formação pós-graduada de Psicologia Positiva Aplicada no ISCSP-ULisboa

O psiquiatra: da fetichização do sucesso à glamorização da vulnerabilidade

O médico psiquiatra e psicoterapeuta Vítor Cotovio costuma dizer que vivemos numa sociedade 5C, de consumo, concorrência, competição, cosmética e caos, e 5 V, de muito volume (ao nível da informação), de muita volatilidade, voracidade (no sentido do consumo) e vacuidade (vazio de ideias). São conceitos que ditam um ritmo acelerado que nos pode deixar em piloto automático, sem tempo para refletir sobre a verdadeira identidade. Para responder à pergunta colocada, Cotovio fala ainda de uma sociedade polarizada, muito identitária, onde impera o marketing existencial — corremos o risco de transformar valores em produtos — e a fetichização do sucesso e do poder.

“O ser humano é ser à procura de sentido”, comenta Cotovio. O problema é a mensagem de que essa procura apenas pode passar pelo sucesso. Uma visão que não deixa de ser útil a uma sociedade de mercado, de consumo, servindo os seus interesses. Porque uma coisa natural é percebermos humildemente que precisamos de reconhecimento, diz, “outra é depender dele” e usar o sucesso (e o trabalho que ele implica) como uma identidade.

Ao mesmo tempo que isto acontece, assiste-se à glamorização da vulnerabilidade. Empatia e resiliência entraram no vocabulário corrente, correndo o risco de serem transformadas, também elas, em valores de mercado. Cotovio fala no marketing que dita estilos devida: “De repente, todos temos de ser otimistas e felizes de uma determinada maneira. Isso gera frustração porque a vida não é isso em permanência”.

Reforçando a ideia de que é um erro radicalizar e polarizar conceitos, o psiquiatra afiança que as frustrações fazem parte daquilo que nos dá mais musculação.”Fazem parte do processo de aproximação do bem-estar, resulta de adiar a gratificação (como por exemplo, a compra de um carro novo) e resistir às frustrações. Se eu não souber adiar a gratificação não consigo alimentar a capacidade de sonhar e de desejar.” Ser feliz, diz, está mais do lado da satisfação, enquanto o sentirmo-nos especiais pode ser transitório. “O que me aproxima mais do ser feliz é a capacidade de gratificação e a aceitação — mas não digo a aceitação resignada.”

"De repente, todos temos de ser otimistas e felizes de uma determinada maneira. Isso gera frustração porque a vida não é isso em permanência". 
Vítor Cotovio, médico psiquiatra e psicoterapeuta

O sociólogo: “Os portugueses são moderadamente felizes”

Rui Brites, investigador do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia – CIES/ISCTE, remete a resposta para a “muito robusta” base de dados que é o Inquérito Social Europeu, um projeto focado nas atitudes e níveis de bem-estar dos cidadãos do velho continente para argumentar que o que oscila não é a felicidade, mas sim a satisfação. “A felicidade é uma perspetiva estrutural com pequenas oscilações ao longo do tempo, ao contrário da satisfação, que é uma perspetiva conjuntural”, isto é, está dependente das circunstâncias.

De acordo com os dados compilados ao longo dos últimos 20 anos, a felicidade dos portugueses ocupa uma posição à volta de 6,6% numa escala de 1 a 10. “Só chegou aos 7 quando António Costa ganhou as primeiras eleições, as pessoas estavam muito desiludidas com o Governo anterior. Mas, depois, voltou a baixar.” A posição dos portugueses face à felicidade é moderada, nunca há uma aproximação ao topo — é como responder “Assim, assim” à pergunta “Como vai?”. Ainda falando em percentagens, 15% dos portugueses são infelizes.

Depois de isolar uma base de dados específica, o também professor universitário confirma uma correlação positiva entre sucesso e felicidade, no entanto, não é mais elevada quando em causa está quem não procura sucesso.

"A felicidade é uma perspetiva estrutural com pequenas oscilações ao longo do tempo, ao contrário da satisfação, que é uma perspetiva conjuntural."
Rui Brites, sociólogo e professor universitário no Iscte - Instituto Universitário de Lisboa

O neurocientista: “A adição é uma monocultura, é quando algo controla a vida”

Num artigo da publicação The Atlantic é referido que para muitas pessoas o sucesso pode ter propriedades aditivas até porque o elogio estimula o neurotransmissor da dopamina, o qual está implicado nos comportamentos aditivos. Zachary Mainen, diretor do Programa de Neurociências da Fundação Champalimaud, diz que o argumento de que o sucesso poder ser aditivo é muito simplista. “Podemos pensar na dopamina como um sistema de recompensa. Não diria que o sucesso é diferente de outros prazeres entre os quais escolhemos. As coisas simples também vão ativar o sistema da dopamina: acho que não ajuda a diferenciar o sucesso.”

A dopamina está associada ao vício, mas também está associada a qualquer coisa que estimule o interesse e a aprenizagem. A dopamina não é má. Longe disso, é uma parte de como regulamos todo o nosso comportamento normal.”

Para o investigador, o problema surge quando as pessoas se tornam excessivamente motivadas apenas por um fator da vida, o que acontece, por vezes, no trabalho. A chave, diz, passa por cultivar motivações várias e equilibradas. “A adição é uma monocultura, é quando algo controla a vida.” Mainen questiona ainda o uso de métricas para definir o sucesso. Fazer depender o sucesso do números de seguidores nas redes sociais, por exemplo, “reduz a complexidade de uma carreira, quando esta devia ser um balanço de várias coisas”. A isso acrescenta que sem motivação não há vida.

"Podemos pensar na dopamina como um sistema de recompensa. Não diria que o sucesso é diferente de outros prazeres entre os quais escolhemos. As coisas simples também vão ativar o sistema da dopamina."
Zachary Mainen, diretor do Programa de Neurociências da Fundação Champalimaud

Os testemunhos: “Foi difícil enquanto não encontrei o meu lugar”

A morte do irmão mais velho quando tinha apenas 16 anos fê-la desde logo repensar o propósito de vida e já em adolescente sabia que queria ser missionária. Margarida Costa, hoje com 33, ainda chegou a trabalhar na área em que se licenciou — turismo —, mas depressa juntar-se-ia a uma comunidade religiosa (Canção Nova) que a levaria a trabalhar em diferentes países, incluindo Brasil, França e Israel, onde atualmente vive. “Embora seja legítimo cada estilo de vida, quero dar sentido à minha vida, oferecendo-a assim. Não só para evangelizar, mas para ajudar. Sinto que sou mais feliz. Foi difícil enquanto não encontrei o meu lugar. Sei que quero gastar a minha vida e energia numa causa nobre.”

Bastante diferente é a visão de Jorge Vicente, de 41 anos, que saiu de Portugal em 2012 por causa da crise financeira e sempre com a ambição de ter uma vida melhor. “Aos 35 anos já tinha atingido a meta financeira para ter uma família. Mas enquanto a carreira depende mais de nós, uma relação familiar depende também de terceiros. Passei tanto tempo sozinho e focado na carreira que tive algumas dificuldades para alcançar isso, até hoje ainda não aconteceu”, diz. Depois de anos de trabalho intenso na Accenture, com viagens todas as semanas, Jorge decidiu fazer mudanças, para ter “qualidade de vida” e abraçar um “desafio mais excitante”, e assentou. Atualmente é o diretor geral de uma consultora com 100 colaboradores no Dubai. Não tem chefe, reduziu o salário em 15% e tomou a decisão em 2020, quando começaram a surgir algumas dores de costas, mas não só. “A minha mãe teve cancro pela segunda vez, já recuperou, mas fez-me pensar que temos de cuidar de nós.”

Há nove anos a perceção de Ana Peixoto Almeida não era tão clara. Tanto que não tinha um plano quando deixou para trás o cargo que tinha na Optimus (ainda apanhou a fusão com a ZON). Foi um salto de fé. “Na altura não se falava tanto em qualidade de vida, de deixar o certo pelo incerto. Eu estava a trabalhar em telecomunicações há bastantes anos, mas a minha vida era vazia de propósito. Agora consigo chamar-lhe isto, na altura não tinha esta visão.” Da vontade de fazer algo com as “mãos, cabeça e coração”, mas também de uma oportunidade, nasce a marca de roupas Grace Baby & Child. Quase uma década depois a vida mudou e Ana assegura que a procura pelo equilíbrio é constante. “Quem muda de vida e diz que é tudo um mar de rosas está a mentir, porque não é. Para ser dono do seu próprio negócio, é preciso ter muito estômago”, diz. Ainda assim, garante: “Não voltaria atrás apesar dos desafios”.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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