Ao fim de tantos anos, ter paciência compensou. João Lourenço, o homem que alguns definem como “misterioso”, que tem um discurso “plástico”; e outros como “uma das melhores coisas” que restam no MPLA, prepara-se para subir à cadeira mais alta da política angolana: a de Presidente, que é ocupada há 38 anos por José Eduardo dos Santos. Com 97,8% dos votos contados, a Comissão Nacional Eleitoral deu esta sexta-feira 61,1% dos votos ao MPLA.
Este é o desfecho de uma história improvável para o rapaz que nasceu em Lobito, na província de Benguela. João Lourenço é filho de Sequeira João Lourenço, enfermeiro que nos tempos coloniais esteve preso três anos por atividade política clandestina, e de Josefa Lourenço, costureira. Tanto o pai como a mãe já morreram, mas desses tempos sobra ainda o relato de Flora Mukete, que viveu naquela casa por ser afilhada da matriarca. Em troco de aprender com Josefa o ofício da costura, tomava conta dos filhos da família. Entre estes, João Lourenço era o mais bem comportado. Daí a alcunha de “mimoso”, como contou à agência Lusa. “Não sei se ele se recorda desse nome, mas era muito calmo, não queria confusão. Não saía do quintal.”
Porém, aos poucos, João Lourenço foi mesmo saindo do quintal. Em agosto de 1974, pouco depois da revolução de 25 de abril ter derrubado o Estado Novo, João Lourenço juntou-se à luta armada que viria a marcar a vida de Angola até a morte de Jonas Savimbi, líder da UNITA. Quando aquele dia chegou, acompanhado de imagens do corpo do líder rebelde, João Lourenço disse: “Jonas Savimbi teve o fim que escolheu”.
Pelo meio, João Lourenço combateu nas fileiras das FAPLA, o braço armado do MPLA. Em 1978, imitando o percurso dos quadros mais jovens e promissores do partido, como já tinha sido o exemplo de José Eduardo dos Santos, foi estudar para a União Soviética. Mais propriamente para a Academia Superior Lenine, onde teve formação militar e em Ciências Históricas. Regressado a Angola em 1982, voltou à luta armada, no centro do país.
Pouco demorou até João Lourenço começar a desempenhar cargos menos militares e mais políticos. Entre 1984 e 1987 foi governador da província do Moxico e nos três anos que se seguiram desempenhou o mesmo cargo em Benguela. Também foi deputado, liderou a informação do MPLA e a sua bancada parlamentar. Em 1998, no IV Congresso do MPLA, tornou-se uma figura cimeira do partido, que José Eduardo dos Santos procurava moldar cada vez mais à sua imagem. Ao mesmo tempo que foram reduzidos à condição de militante de base ex-primeiros-ministros como Lopo do Nascimento, Marcolino Moco e França Van-Dúnem, João Lourenço subia ao cargo de secretário-geral do MPLA.
De Zedú a JLo, uma peça em dois atos
João Lourenço era, na prática, o número dois de José Eduardo dos Santos. Em 2001, a um ano do fim da guerra civil, o Presidente angolano fez um anúncio que espantou alguns: ia sair de cena. “Quer as eleições se realizem em 2002 ou 2003, teremos um ano e meio ou dois anos e meio para que o partido possa preparar o seu candidato para a batalha eleitoral e é claro que esse candidato desta vez não se chamará José Eduardo dos Santos”, disse.
João Lourenço não tardou em ver aqui a deixa para subir ao poder, por mais incertos que fossem os termos da declaração de José Eduardo dos Santos — mas, afinal, as eleições seguintes acabaram por ser apenas em 2008, e só 16 anos depois é que ele anunciaria, de forma clara e rotunda, a sua saída de cena.
Em 2003, depois de ser claro que José Eduardo dos Santos não estava perto do fim, João Lourenço foi afastado para a segunda linha do partido. Nos 11 anos que se seguiram, foi vice-presidente da Assembleia Nacional e general de três estrelas na reserva. Um cargo de pano de fundo para um homem que convinha meter na prateleira? Talvez. Mas, da mesma forma que José Eduardo dos Santos não é eterno, também esse calvário político teria de acabar um dia.
O regresso de João Lourenço à ribalta deu-se de forma rápida e irreversível. Em 2014, num gesto de confiança renovada, José Eduardo dos Santos nomeou-o ministro da Defesa. Aos poucos, o “mimoso” de Lobito entrou na lista de possíveis sucessores de José Eduardo dos Santos. Mesmo ao lado de Manuel Vicente, vice-Presidente da República, e de José Filomeno dos Santos, diretor do Fundo Soberano de Angola e filho de José Eduardo dos Santos. Os dois últimos, porém, deixaram de ser escolhas possíveis por razões diferentes. Manuel Vicente, o “senhor Sonangol”, caiu em desgraça depois de ser afastado da liderança da petrolífera — que passou a ser chefiada por Isabel dos Santos, a filha mais velha do Presidente — e foi acusado de alegadamente ter corrompido um procurador em Portugal. José Filomeno dos Santos também não reunia consenso dentro do MPLA. Ciente de que as fraturas no partido nunca tinham sido tão grandes desde o fim da guerra civil, o Presidente abriu mão da sucessão dinástica.
Em fevereiro de 2017, o anúncio que já todos esperavam foi então feito: João Lourenço seria o candidato do MPLA nas eleições desta quarta-feira, cabendo-lhe a tarefa de, pela primeira vez, levar o partido a eleições sem o nome de José Eduardo dos Santos no topo da lista. “É um desafio grande que, embora difícil, não é impossível”, disse João Lourenço, quando aceitou a nomeação do MPLA. Foi, portanto, mais expansivo do que José Eduardo dos Santos fora em 1979, quando assumiu funções depois da morte de Agostinho Neto, primeiro Presidente de Angola após a independência. Nessa altura, enquanto o estudante João Lourenço estaria algures em Moscovo, José Eduardo dos Santos disse: “Não é uma substituição fácil, nem tão pouco me parece uma substituição possível. É apenas uma substituição necessária”.
João Lourenço prepara-se “de há um tempo para cá”. Mas para quê?
Também quando aceitou a nomeação do seu partido, João Lourenço disse que já estava a preparar-se “de há um tempo para cá”. Porém, de todas as conversas com analistas e especialistas que o Observador teve, restam mais dúvidas do que certezas no que diz respeito àquilo que o general na reserva tem preparado.
“Eu acho que muito pouca gente conhece e sabe porque é que João Lourenço foi escolhido”, diz ao Observador Carlos Rosado de Carvalho, economista, jornalista e diretor do jornal angolano Expansão. “Ele faz parte daquelas pessoas que não levantam muitas ondas, o que faz parte do percurso do MPLA. Em rigor, muito poucas pessoas sabem o que João Lourenço pensa.”
Em campanha, João Lourenço não destoa daquilo que era conhecido de José Eduardo dos Santos. À semelhança de Zédu, como é popularmente conhecido o Presidente, também João Lourenço não foi abençoado pelo dom da oratória. Os discursos nos comícios — onde o candidato do MPLA costuma ser acompanhado pela mulher, Ana Dias Lourenço, ex-ministra do Planeamento e governadora do Banco Mundial em Angola — soam de forma vaga, deixando pouca margem a interpretações claras. Ainda assim, a máquina do MPLA continua a ser eficaz a transmitir o slogan de campanha. Depois do “Crescer mais e distribuir melhor” de 2012, em 2017 João Lourenço promete “Melhorar o que está bem e corrigir o que está mal”. E também já tem uma alcunha de rua: JLo.
Ainda assim, slogans e alcunhas à parte, Carlos Rosado Carvalho sublinha o vazio em torno de João Lourenço. “Não sabemos o que pensa da economia, do papel do Estado… É tudo muito plástico, o que ele diz.”
Paulo Inglês, investigador angolano da Universidade de Munique, descreve João Lourenço como um homem “misterioso”. “Eu lembro-me de ser adolescente quando ele era governador de Benguela, que é de onde eu sou”, refere numa entrevista por telefone ao Observador. “Ele sempre foi uma pessoa misteriosa, porque não é de falar muito, não é um homem de discursos nem de massas.”
Já para Marcolino Moco, primeiro-ministro entre 1991 e 1996 pelo MPLA, e militante de base crítico em relação ao legado de José Eduardo dos Santos, a escolha de João Lourenço é uma “boa notícia” e “francamente aceitável”. “De todos aqueles que estão na cúpula do MPLA hoje, porque muitas pessoas foram afastadas ou afastaram-se, João Lourenço ainda é das melhores coisas que lá ficaram”, diz numa entrevista por telefone.
“Tem uma grande maturidade, memória e grande experiência política e organizativa. Encontrou-se uma figura militar, que nos regimes africanos quer dizer alguma coisa, para garantir alguma aparência de estabilização”, refere o ex-primeiro-ministro e antigo secretário-executivo da CPLP, que ainda assim prefere guardar para si o seu sentido de voto nesta quarta-feira. “Mas sublinho que não há homens perfeitos, nem pouco mais ou menos. Não haverá Mandelas nos próximos tempos por aqui, na África lusófona.”
O slogan de João Lourenço e do MPLA nestas eleições é, já sabemos, “Melhorar o que está bem e corrigir o que está mal”. No programa de Governo está prevista a redução da taxa de pobreza de 36% para 25%, mudar o índice de concentração da riqueza de 42,7 para 38 e criar um Rendimento Social Mínimo. Além disso, o MPLA promete diminuir a taxa de mortalidade no nascimento e em crianças até aos cinco anos — ambos indicadores onde Angola é considerado o pior país do mundo.
Existe, porém, outro tema que João Lourenço tem trazido amiúde para a campanha: a corrupção e o seu combate.
Dá para corrigir a corrupção?
“Um dos lemas desta nossa campanha é ‘Melhorar o que está bem e corrigir o que está mal’. Então, vamos identificar o que é que está mal e ter a coragem de corrigir o que está mal. Eu diria que o que está mal até já está identificado. Nós sabemos o que é que está mal. Às vezes, falta-nos é a coragem para corrigir.”
Foi com essas palavras que João Lourenço se dirigiu aos seus apoiantes num comício em Benguela, no último dia de campanha. Muito dificilmente o candidato do MPLA estaria a falar de outro tema que não corrupção — onde, de resto, Angola figura na cauda dos rankings.
Houve, porém, outra ocasião em que João Lourenço foi ainda mais claro. Numa entrevista ao Washington Post, em maio, o jornalista perguntou-lhe diretamente como é que a sua governação seria diferente da de José Eduardo dos Santos. A resposta foi francamente direta: “Vamos fazer todos os esforços para ter uma administração transparente. Vamos combater a corrupção e vamos sublinhar o facto de querermos que os investidores privados sejam uma grande parte da nossa economia”.
Para Ricardo Soares de Oliveira, professor na Universidade de Oxford e autor do livro Magnífica e Miserável — Angola Desde a Guerra Civil (Tinta-da-China, 2015), não existe nenhuma garantia de que João Lourenço vá promover um combate à corrupção nítido. “Algumas das suas afirmações recentes sobre a corrupção e sobre o papel dos empresários angolanos são positivas. Mas não é líquido que isto vá além de um desejo de evolução na continuidade, e que João Lourenço tenha uma visão desenvolvimentista que rompa com o passado”, diz ao Observador numa entrevista por telefone.
Até porque, acrescenta, não é garantido que lhe seja “permitido implementar ideias ambiciosas, mesmo que ele e os seus próximos as tenham”.
A transição na presidência de Angola não foi propriamente pensada de véspera. Nos últimos anos, com uma aceleração verificada nos últimos meses, José Eduardo dos Santos tem agido de forma a garantir que, mesmo depois de ser Presidente, ele e os seus continuam a ter controlo sobre várias esferas de Angola. Petróleo, banca, diamantes, comunicação e segurança — um pouco por todas estas áreas, José Eduardo dos Santos tratou de colocar pessoas próximas, em grande parte família, e fazer nomeações que vão ter efeito nos próximos anos. É como se, na hora de fechar a porta, José Eduardo dos Santos a deixasse encostada.
Ricardo Soares de Oliveira diz que João Lourenço “está numa posição muito pouco invejável”, contando com constrangimentos que partem até daqueles que ele tem mais perto de si. “Os próprios aliados de João Lourenço não estão a apoiá-lo para que ele seja o novo José Eduardo dos Santos. Eles desejam um sucessor menos poderoso e não querem que Lourenço tenha acesso ao poder discricionário característico do sistema angolano. Essas pessoas também colocarão entraves na transformação que Lourenço possa querer operar na sociedade angolana”, diz o académico de Oxford.
Para Jon Schubert, antropólogo político da Universidade de Genebra e especialista em Angola, será “interessante” ver até que ponto é que João Lourenço estará “trancado” pelas escolhas que José Eduardo dos Santos fez. “Sente-se que há um descontentamento enorme dentro da bancada do MPLA e do público em relação a, por exemplo, Isabel dos Santos”, refere. “A reputação que ela tem de ser a melhor empresária do país é baseada numa fonte de dinheiro mágica, não sabemos se é tudo devido às capacidades que ela tem.” Em junho, o analista da consultora Capital Economics para Angola disse à Lusa que “a Sonangol é uma caixa preta” e sublinhou a necessidade de esta ter uma gestão “profissional e o mais transparente possível”.
Marcolino Moco prefere esperar para ver o que João Lourenço pode ou não fazer a médio prazo. Mas, para já, prefere não ter ilusões: “Ele não pode, nesta fase, descolar-se de José Eduardo dos Santos. Não lhe passo um cheque em branco. Mas vamos dar-lhe o benefício da dúvida”.