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Protests Are Held In The Istanbul In Support Of Ukraine After Russian Invasion
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Psiquiatra Vítor Amorim Rodrigues rejeita a ideia de que Putin possa estar numa situação de psicose. "Parece-me, pelo contrário, que está a perseguir objetivos que têm que ver com esse seu objetivo de deixar a sua marca no mundo"

dia images via Getty Images

Psiquiatra Vítor Amorim Rodrigues rejeita a ideia de que Putin possa estar numa situação de psicose. "Parece-me, pelo contrário, que está a perseguir objetivos que têm que ver com esse seu objetivo de deixar a sua marca no mundo"

dia images via Getty Images

Anti-social, narcísico, megalómano e incapaz de sentir empatia, sim, mas louco Putin não está. Psiquiatras analisam presidente russo

Inúmeros políticos têm questionado a sua sanidade mental, mas especialistas dizem que Putin não está louco. Terá uma patologia de personalidade e o facto de estar a chegar aos 70 não será acessório.

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“Já me encontrei com ele muitas vezes, e este é um Putin diferente. Sempre foi frio e calculista, mas isto é diferente. Parece errático.”
— Condoleeza Rice, ex-secretária de Estado norte-americana

“Tudo isto me dá a ideia de que, de alguma forma, ele saiu dos eixos.”
— Robert Gates, ex-secretário da Defesa e ex-director da CIA

“Observei e ouvi Putin durante mais de trinta anos. Ele mudou. Parece completamente desligado da realidade. Parece desequilibrado.”
— Michael McFaul, embaixador dos EUA na Rússia durante a administração Obama

“Quem me dera poder partilhar mais, mas por agora posso dizer que é bastante óbvio para muita gente que algo está errado com Putin. Sempre foi um assassino, mas agora tem um problema diferente e significativo. Seria um erro assumir que este Putin reagiria da mesma forma que há 5 anos.”
— Marco Rubio, senador republicano da Flórida e vice-presidente do Comité de Inteligência do Senado

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“Penso que este tipo perdeu o contacto com as realidades, na verdade. Com as realidades americanas, as realidades da Europa Ocidental, as realidades ucranianas e até com as realidades russas.”
— Bernard Guetta, eurodeputado

“Um louco tem de ser isolado.”
— Miloš Zeman, presidente da República Checa

“Algumas pessoas dizem que ele tem cancro e algumas dizem que é nevoeiro cerebral provocado pela Covid. Outras pensam apenas que ele é um ‘bully’. Seja o que for, o povo da Ucrânia está a pagar um preço por isso. A sua saúde mental costuma ser tema de conversa nas cimeiras dos líderes mundiais.”
— Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos

“Pelo menos não nos tornemos uma nação de pessoas silenciosas e assustadas. De cobardes que fingem não reparar na guerra agressiva contra a Ucrânia desencadeada pelo nosso obviamente louco czar.”
— Alexey Navalny, opositor de Vladimir Putin

Só tem variado a forma. Nos últimos dias, o que não têm faltado, por parte de líderes políticos de todo o mundo, são declarações públicas sobre a saúde mental de Vladimir Putin e a pretensa “loucura” que o terá impelido a invadir a Ucrânia e a ignorar os apelos feitos tanto pelos líderes do chamado mundo livre como pelos próprios cidadãos russos — cujos protestos mandou aliás silenciar com ordens de prisão sumária.

Nos Estados Unidos, as agências de inteligência estão a fazer da “compreensão do estado de espírito de Vladimir Putin uma prioridade máxima”, escreveu esta terça-feira a CNN. O objetivo é perceber de que forma estará a saúde mental de Putin a determinar as decisões que tem tomado na guerra contra a Ucrânia — e perceber também o que pode ser feito para o travar.

Explicaram agentes não identificados àquele canal — sem nunca proferir a palavra “loucura” —, que, apesar de não existirem evidências de que tenha havido uma “mudança específica” recente no estado de saúde do presidente russo, tudo aponta para que algumas das ações de Putin “não pareçam fazer sentido”, tendo em conta o seu historial. Alguns agentes referem o caráter “altamente preocupante e imprevisível” das suas mais recentes decisões, outros salientam a “raiva extrema” com que reagiu às sanções internacionais impostas em consequência da invasão.

Ouça aqui o episódio de “A História do Dia” sobre Vladimir Putin

Quem é Vladimir Putin e até onde irá?

Na última segunda-feira, quatro dias depois do início da guerra na Ucrânia, numa reunião secreta com os legisladores, Avril Haines, diretora da Agência Central de Inteligência americana, admitiu mesmo que os agentes não têm “boas indicações sobre o estado mental” de Putin. Mas não foi revelado qualquer diagnóstico, como aconteceu em 2008 quando especialistas em saúde mental a trabalhar para o Pentágono chegaram a aventar que o líder russo sofreria de uma “desordem do espetro do autismo que afetaria todas as suas decisões” —  sete anos mais tarde, quando o USA Today teve acesso ao estudo que determinava que Putin teria síndrome de Asperger, estalou a polémica, com uma série de psiquiatras e psicólogos a caírem em cima dos colegas e a garantirem que, sem um exame cerebral, a teoria era simplesmente impossível de comprovar.

“Tem patologia da personalidade, tem uma perturbação da personalidade narcísica, isso sim. O termo loucura, para um psiquiatra, não tem significado específico, mas se me pergunta se está numa situação de psicose ou algo do género, isso não me parece. Parece-me, pelo contrário, que está a perseguir objetivos que têm que ver com esse seu objetivo de deixar a sua marca no mundo”
Vítor Amorim Rodrigues, psiquiatra

Questionado pelo Observador, Vítor Amorim Rodrigues, médico psiquiatra, com estágio feito na Clínica de Perturbações da Personalidade no Mount Sinai Hospital e no Personality Disorders Institute em Nova Iorque, e um doutoramento em psicologia, concorda: tal diagnóstico nunca poderia ter sido feito assim, sem contacto e avaliação direta do paciente.

Bem distinto será aquilo que as agências de informação internacionais, com todo o acesso de que dispõem a informações biográficas de Vladimir Putin, poderão fazer. “Podem perfeitamente estabelecer um perfil e perceber o que se passa ao nível da sua personalidade, por um lado, e, por outro, em termos da sua saúde mental”, explica o também professor do ISPA – Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida, em Lisboa.

Não tendo acesso privilegiado a tanta informação, o próprio arrisca traçar o perfil do presidente russo que, garante, “louco, no sentido de psicótico, não está”. “Tem patologia da personalidade, tem uma perturbação da personalidade narcísica, isso sim. O termo loucura, para um psiquiatra, não tem significado específico, mas se me pergunta se está numa situação de psicose ou algo do género, isso não me parece. Parece-me, pelo contrário, que está a perseguir objetivos que têm que ver com esse seu objetivo de deixar a sua marca no mundo”, diz o especialista.

Acessos de raiva, atitudes de humilhação e delírios de grandeza, eis alguns traços do transtorno que afetará Putin

O transtorno de personalidade narcísica é um problema descrito no Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais que afeta menos de 1% da população, é mais frequente nos homens (50% a 75%) e é caracterizado essencialmente “por um padrão generalizado de grandiosidade, necessidade de adulação e falta de empatia”.

Diz Vítor Amorim Rodrigues, tal como acontecia com Donald Trump, também no caso de Vladimir Putin há traços que tornam bastante evidente não apenas a existência de uma personalidade narcísica, mas de uma personalidade narcísica patológica. “Quando o narcisismo é claramente patológico, o que me parece ser o caso, a pessoa é mais ou menos indiferente ao sofrimento que possa causar porque despreza os fracos, digamos assim”, diz o psiquiatra.

De acordo com o psiquiatra Vítor Amorim Rodrigues, Donald Trump e Vladimir Putin sofrem ambos de um distúrbio de personalidade narcísica

MIKHAIL KLIMENTYEV/SPUTNIK/KREML/EPA

“Há dois ou três anos, Putin deu uma entrevista em que ele fala um pouco sobre si e diz precisamente que esta vida é transitória e que o que é importante é a pessoa pensar naquilo que conseguiu realizar e na marca que deixa no mundo. Também escreveu um artigo histórico em que se identifica com a união dos povos eslavos a partir da Rússia. Ele vê-se como um líder desse movimento — que vai muito para além dele — e considera que a Ucrânia faz parte dessa grande tradição”, descreve o especialista, garantindo que, nas ações recentes do presidente russo, não há qualquer alteração substancial à postura que vem demonstrando nos últimos anos. “Os narcísicos têm muita necessidade da admiração dos outros e neste caso o objetivo de Putin será ficar na história como o reunificador do antigo poderio russo. E isso não é de agora.”

Este passo rumo à guerra e à concretização desta “missão”, assegura por seu turno Pedro Afonso, psiquiatra e professor auxiliar da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, também não pode ser visto como um sinal de loucura.

“Isto é um sinal de calculismo absoluto e de psicopatia, no sentido clássico do termo. Uma personalidade anti-social, com características claramente narcísicas, megalómanas, que toma a decisão de reconstruir um império”, começa por enquadrar o especialista. “Isto é calculado fria e racionalmente, não dá sinais de loucura. Nós, pessoas mentalmente saudáveis, vemos estes atos como bárbaros e incompreensíveis, mas para uma pessoa que tem características megalómanas, narcísicas e que aparenta ter também uma componente de psicopatia isto é perfeitamente expectável, é uma repetição da história de outros líderes que fizeram exatamente o mesmo”, continua, citando exemplos como os de Hitler e de Stalin.

“O narcisismo de Putin ficou muito evidente quando, há uns anos, se sentou, no Monte Athos, na cadeira do antigo imperador bizantino, que era precisamente o campeão na altura da ortodoxia e de uma vastíssima região que depois se dividiu”, recorda Vítor Amorim Rodrigues, estabelecendo outra comparação. “Os padres da Grécia convidaram-no a fazê-lo e ele sentou-se na cadeira — podia ter declinado. Isto é um gesto de identificação com o poder máximo.”

"Isto é calculado fria e racionalmente, não dá sinais de loucura. Nós, pessoas mentalmente saudáveis, vemos estes atos como bárbaros e incompreensíveis, mas para uma pessoa que tem características megalómanas, narcísicas e que aparenta ter também uma componente de psicopatia isto é perfeitamente expectável, é uma repetição da história de outros líderes que fizeram exatamente o mesmo”
Pedro Afonso, psiquiatra

De acordo com o psiquiatra, todos os sinais deste transtorno de personalidade estão em Putin. A forma como destratou, ao vivo na televisão russa e numa sala repleta de ministros e responsáveis militares, Sergei Naryshkin, o diretor dos serviços de informação externos, no mesmo dia em que reconheceu a independência das repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk, no leste da Ucrânia, e deu uma espécie de aula revisionista e alternativa sobre a história da URSS e da Ucrânia, é um deles. Quando, questionado sobre se apoiava ou não essa tomada de decisão, Naryshkin hesitou. Putin, de dedos a tamborilar de impaciência no tampo da mesa, gritou com ele: “Fale diretamente!”. Como o diretor dos serviços de informação externos continuava a balbuciar e a responder ao lado, o presidente russo voltou a exaltar-se: “Não é isso que está a ser discutido. Sim ou não!”.

“É muito típico do narcísico”, diz Vítor Amorim Rodrigues. “O narcísico não gosta de ser contrariado e tem uma relação com os outros que é o de achar que, pelo seu estatuto especial, o outro está ali apenas como instrumento da sua vontade. O narcísico humilha os outros, sobretudo em situações de poder — mesmo que pequeno. Estou a falar, por exemplo, do chefe narcísico que humilha os funcionários pelo simples prazer de mostrar a sua importância”, continua o psiquiatra.

Há milhares de pessoas a morrer, tanto de um lado como de outro, mais de um milhão de deslocados e Putin continua indiferente aos pedidos de cessar-fogo da comunidade internacional? “Quando o narcisismo é claramente patológico é mais ou menos indiferente ao sofrimento que possa causar porque despreza os fracos”, continua a explicar o médico psiquiatra.

epa09781646 Russian President Vladimir Putin (R) chairs a meeting with Russian businessmen at the Kremlin in Moscow, Russia, 24 February 2022. In the early hours of 24 February, President Putin announced his decision to launch a special military operation on Ukraine. Against this background, the Russian Ruble weakened against the US dollar and the euro to a six-year low, the Russian stock market fell by 11 percent, trading on the Moscow and St. Petersburg stock exchanges were suspended. The prices of oil and precious metals are rising on world markets.  EPA/ALEKSEY NIKOLSKYI/SPUTNIK/KREMLIN / POOL

No dia em que reconheceu as repúblicas de Donetsk e Lugansk, o presidente russo exaltou-se em público com o diretor dos serviços de informação externos

ALEKSEY NIKOLSKYI/SPUTNIK/KREMLIN / POOL/EPA

O presidente russo reagiu, como apontaram os analistas americanos, com “raiva extrema” às sanções com que inúmeros países, incluindo EUA e União Europeia, retaliaram a sua declaração de guerra ao país vizinho? “É natural que esteja muito mais instável emocionalmente. O narcísico fica muito instável, e até explosivo, quando as coisas não estão a correr de acordo com a sua vontade. Acessos de raiva, gritos, ordens dadas sob o calor da situação — tudo são reações correntes de um narcísico descontente”, explica o psiquiatra e professor do ISPA.

“Esta ideia de que Putin se transfigurou e se transformou numa outra pessoa não colhe”

Na verdade, nada disto é novo. Já em 2014, quando a Rússia invadiu a Crimeia, a pergunta ecoou por todo o mundo. Na altura, colocada perante a interrogação, a jornalista russo-americana Masha Gessen, autora da biografia política The Man Without a Face, The Unlikely Rise of Vladimir Putin, não teve pejo em responder: “Louco? De modo nenhum”.

“Penso que Putin tem uma visão do mundo muito consistente. Ele pensa que o que está a fazer é correto”, disse em março desse ano em entrevista à NPR. “O que o motiva é ter descoberto recentemente que tem uma missão civilizacional. Ele quer uma Rússia que se torne a capital dos valores tradicionais do mundo, que impeça a invasão ocidental, que é o que ele vê a acontecer na Ucrânia. Ele está a levar a cabo a sua missão histórica”, explicou a biógrafa.

Por acreditar que aquilo que está a acontecer agora, com a invasão da Ucrânia, faz parte de um meticuloso plano arquitetado por Vladimir Putin ao longo de anos, o psiquiatra Pedro Afonso rejeita que o presidente russo esteja efetivamente “diferente”, como tantos atores políticos internacionais têm alvitrado.

“Esta ideia de que Putin se transfigurou e se transformou numa outra pessoa, para mim, não o conhecendo, não colhe. Porque, de facto, ele sempre mentiu, sempre criou estratégias para alcançar o poder e o que se está a passar agora trata-se de uma consequência disso, planeada, um gesto de guerra planeado, racional, frio, calculista e sem qualquer tipo de compaixão para com as vítimas que está a criar — incluindo os próprios soldados do seu país”
Pedro Afonso, psiquiatra

“Esta pessoa é um ex-agente do KGB, foi treinado para dissimular. Estas pessoas não dizem aquilo que pensam e geralmente mentem e criam personagens. Ainda há pouco tempo li uma biografia da chanceler Merkel, que foi a pessoa que o conheceu melhor e que lidou com ele durante 16 anos e que comunicava diretamente com ele em russo, e de facto ela própria tinha a noção de que ele habitualmente mentia”, fundamenta o especialista.

“Esta ideia de que Putin se transfigurou e se transformou numa outra pessoa, para mim, não o conhecendo, não colhe. Porque, de facto, ele sempre mentiu, sempre criou estratégias para alcançar o poder e o que se está a passar agora trata-se de uma consequência disso, planeada, um gesto de guerra planeado, racional, frio, calculista e sem qualquer tipo de compaixão para com as vítimas que está a criar — incluindo os próprios soldados do seu país”, defende o especialista, depois de explicar que é da empatia que nasce a compaixão e que esse processo se desenvolve todo ao nível de neurónios localizados no córtex frontal inferior.

“Por definição, os psicopatas, ou melhor dizendo, as pessoas que sofrem de perturbações da personalidade anti-social, não têm empatia. Tem a ver com a ativação dos neurónios espelho, hoje sabemos que existem alterações neurobiológicas por parte destas pessoas”, diz Pedro Afonso. “Em Putin, estas imagens que nos têm chegado não têm a mesma ressonância afetiva e empática que têm em pessoas normais, por isso é que isso não o demove”, explica o psiquiatra.

Russia-Ukraine peace talks begin

Putin garantiu que não ia negociar com governo de "viciados em droga e neonazis". Três dias mais tarde, Rússia e Ucrânia juntaram-se à mesa em Gomel, na Bielorrússia

Anadolu Agency via Getty Images

Por outro lado, e por muito que lhe apontem incoerências e desmentidos — como o que aconteceu com a questão das negociações com o governo ucraniano, que em poucos dias passou de um “gangue de viciados em drogas e de neonazis” com quem nunca aceitaria sentar-se à mesa a uma delegação com quem os seus emissários reuniram não uma mas já duas vezes (vem aí uma terceira) e sem sequer aceder ao pedido de rendição que também tinha exigido —, não é como se não fizesse parte do modus operandi de Vladimir Putin dizer uma coisa e pouco tempo depois o seu contrário.

Um exemplo rápido, recordado pela CNN: em 2014, quando soldados sem insígnias ocuparam o território da Crimeia, no sul da Ucrânia, o presidente russo negou repetidamente que fizessem parte das forças armadas do seu país; depois, um ano mais tarde, passou a vangloriar-se disso mesmo.

E agora só mais outro: depois de um ano a recusar qualquer interferência nas eleições presidenciais americanas de 2016, que deram a vitória a Donald Trump, Putin sentou-se com o realizador de cinema Oliver Stone e admitiu exatamente o contrário.

Dos perfumes e dos calendários estilo oficina ao regresso à Rússia imperial

Se este plano de devolver à Rússia o seu poderio imperial não é de agora, tal como não são novas estas dúvidas sobre a saúde mental do presidente russo, há outros aspetos que são inéditos — e poderão encerrar a justificação para esta escalada ter acontecido justamente agora, diz Vítor Amorim Rodrigues.

Um dos traços da perturbação de personalidade narcísica é a necessidade de admiração, o que também bate certo com o perfil de Putin, que ao longo dos anos que passou no poder desenvolveu um verdadeiro culto de personalidade, expresso em calendários estilo oficina em que surge invariavelmente em poses másculas e frequentemente em tronco nu, ou até no lançamento de uma fragrância para homem inspirada em si — “Leaders Number One” foi o nome que lhe deu Vladislav Rekunov, o bielorruso que desenvolveu o perfume em 2015.

“Este ano, daqui a uns meses, vai fazer 70 anos e embora já tenha assegurado o seu prolongamento do ponto de vista político, estas são alturas em que as pessoas fazem balanços e percebem que podem eventualmente já ter pouco tempo para alcançar aquilo que querem”
Vítor Amorim Rodrigues, psiquiatra

Desde o final de 2021, primeiro graças ao aumento dos casos de Covid-19 no país, depois com a condenação de Alexey Navalny a três anos e meio de prisão, as taxas de aprovação do presidente russo têm vindo a cair ligeiramente — ou de forma mais substancial entre as faixas etárias mais novas, em que as sondagens registaram uma quebra de 17%, para os 51%. “Parece-me que a necessidade de reconhecimento e de admiração que ele tem e que estava de certo modo a perder representa aqui uma parte importante”, assinala o psiquiatra.

Mas há mais, salienta Vítor Amorim Rodrigues: “Este ano, daqui a uns meses, vai fazer 70 anos e embora já tenha assegurado o seu prolongamento no poder do ponto de vista político, estas são alturas em que as pessoas fazem balanços e percebem que podem eventualmente já ter pouco tempo para alcançar aquilo que querem”.

A pandemia atirou a esperança média de vida dos homens russos para os 71 anos e no dia 7 de outubro de 2022 Vladimir Putin vai chegar às sete décadas de vida. Também a hipocondria é um distúrbio psiquiátrico e, ao que tudo indica, o presidente russo, que no final do ano passado admitiu publicamente ser testado todos os dias não apenas para a Covid-19 mas para “todo o tipo de infeções”, também padecerá dele.

Segundo o El Mundo, que cita o biógrafo Mark Galeotti, autor de “We Need To Talk About Putin” (título a piscar o olho a um livro que em 2011 foi transformado em filme, sobre um jovem que desde criança deu mostras de um comportamento psicótico e que quando chegou aos 15 anos fez um massacre na própria escola), o receio que tem de ficar doente é tal que Putin chega a obrigar os colaboradores a passar por um túnel de ultravioletas e por aspersores com desinfetante antes de se encontrarem com ele.

Russian President Vladimir Putin

Um dos traços da perturbação de personalidade narcísica, explicam os especialistas, é a necessidade de admiração

Getty Images

De acordo com o jornal espanhol, também não é incomum que o presidente lhes exija “amostras fecais” ou isolamentos de duas semanas antes de aceitar encontrar-se cara a cara com eles. Quando isso acontece, regra geral, as reuniões dão-se em mesas bem compridas, como aquela a que se sentou com Emmanuel Macron, um em cada ponta, observando uma distância de segurança provavelmente tão grande como a sua mania das doenças.

Como faz questão de lembrar Vítor Amorim Rodrigues, as questões de “natureza pessoal” estão geralmente arredadas das análises políticas e históricas mas, em casos como este, em que “o poder está tão concentrado numa pessoa”, valerá a pena prestar-lhes atenção. “Embora depois tenham sido desmentidas, em 2021 saíram notícias a dizer que Putin estava doente e que até tinha sido operado a um cancro abdominal. Até que ponto as suas considerações sobre a sua própria saúde e sobre o tempo que lhe resta para deixar a sua marca definitiva na história não podem estar também a pesar muito?”, questiona o psiquiatra.

"Dizem que ele não sai há muito tempo. O Stalin também se isolava muito, estas pessoas acabam por fazê-lo até por medo de atentados e de questões de segurança. Evidentemente que isso acaba por influenciar, as pessoas ficam com traços mais paranóides"
Vítor Amorim Rodrigues, psiquiatra

“Dizem que ele não sai há muito tempo. O Stalin também se isolava muito, estas pessoas acabam por fazê-lo até por medo de atentados e de questões de segurança”, compara o especialista — Putin está no poder desde 1999 e já tratou de alterar a legislação russa para lá poder permanecer até 2036, Josef Stalin liderou a URSS durante 29 anos e só saiu do cargo quando morreu.

“Evidentemente que isso acaba por influenciar, as pessoas ficam com traços mais paranóides — embora eu não ache que Putin tenha uma personalidade paranóide igual à do Stalin, que mandava eliminar as pessoas pela simples suspeita de que podiam estar a conspirar contra ele, tem uma personalidade narcísica. E as personalidades narcísicas têm tendência a ter crises pessoais com a idade, com o facto de começarem a perder capacidades.”

A hipótese Covid-19 e a mais simples de todas: “Há homens bons e homens maus”

Outra das hipóteses que têm sido avançadas imputa a uma alegada infeção pelo SARS-CoV-2 — que aliás Vladimir Putin sempre negou — a responsabilidade pelo seu comportamento nas últimas semanas.

Citado pelo El Mundo, Hussan Abdeh, diretor clínico do portal Medicine Direct, lembrou que a Covid-19 pode causar efeitos a longo prazo que vão para além da fadiga muscular e do cansaço generalizado, tal como uma espécie de “nevoeiro mental que prejudica as funções cognitivas, incluindo delírio, confusão ou agitação extrema” de que falou Nançy Pelosi também numa entrevista à MSNBC.

Para lá de Putin, situação de guerra inspira outras preocupações ao nível da saúde mental

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Diz o psiquiatra Pedro Afonso, para lá da saúde mental de Vladimir Putin, o que não faltam são motivos de preocupação neste âmbito, dadas as atuais circunstâncias de guerra. Ao Observador, o especialista deixa três alertas:

  • Insensibilização por parte das tropas é expectável — e as consequências serão sofridas pela população

“Neste momento os soldados ainda estão formatados para terem algum padrão moral e ético e conseguirem travar ímpetos como os que já vimos, em que os tanques pararam quando pessoas se puseram à frente deles. Mas é só uma questão de semanas até se dessensibilizarem, entrarem na loucura da guerra e fazerem assassínios em massa de inocentes. É uma questão de sobrevivência dos próprios soldados. As pessoas vão ser mesmo pisadas pelos tanques.”

  • Com o prolongamento da guerra, empatia poderá dar lugar à anestesia

“Temo que haja um fenómeno de alguma anestesia em relação aos espetadores com o passar do tempo. Este é um fenómeno de empatia, feito através dos chamados neurónios espelho, que faz com que quando visualizamos uma imagem de guerra, um bombardeamento, uma criança a ser ferida, haja da nossa parte um sentir daquilo que o outro sente. Esse sentimento impele-nos a ter uma atitude de defesa dos mais fracos e de tentativa de auxiliar as vítimas, a ter compaixão, que é o que faz com que haja ação. É por isso que os jornalistas têm partilhado as imagens, que a sociedade civil tem enviado alimentos e que os políticos têm tomado medidas firmes. Mas com o passar do tempo este fenómeno também se atenua.”

  • Depressão, perturbação de stress pós-traumático, psicose, consumo de álcool e drogas — tudo vai aumentar

“Para além de provocar um aumento da depressão, como é óbvio, porque as pessoas perdem as suas casas e as suas vidas, a guerra faz emergir com frequência duas outras patologias, tanto na população como nos soldados: a perturbação de stress pós-traumático, que deixa marcas para toda a vida; e os casos de psicoses, porque, de facto, a determinada altura a pressão é tão grande que, como se diz popularmente, a pessoa enlouquece. Também é expectável que aumente o consumo de álcool e drogas, principalmente pelos soldados, que ao fim de algum tempo também vão procurar uma certa anestesia para aquilo por que estão a passar.”

Ao mesmo jornal, Ian Robertson, neurocientista do Trinity College, em Dublin, arrisca outra hipótese e diz que a infeção pode ter exacerbado uma outra condição psiquiátrica que atribui a Putin, a “síndrome de húbris”, também conhecida como a “doença do poder”. “Quando a síndrome se enraíza no cérebro, a identidade pessoal e a nacional fundem-se numa só, ao ponto de o líder acreditar que o seu destino e o da nação são um e o mesmo”, disse o especialista.

Apesar de não utilizar o termo, Vítor Amorim Rodrigues descreve um cenário semelhante e explica por que motivos acredita que, por trás das mais recentes ações de Vladimir Putin, está mais do que a perturbação que lhe identifica. “Ele já era muito admirado e temido na Rússia, onde é uma espécie de soberano absoluto. É mais do que isso: é provavelmente um balanço que está a fazer entre a transitoriedade da vida e aquilo que está a conseguir cumprir. Para um narcísico, para ele em particular, pode não ser suficiente ter sido o presidente da Federação Russa; pode ser preciso deixar a sua marca (como deixaram antigos czares, como Pedro, o Grande, ou Catarina, a Grande), identificar-se com este projeto da Rússia Imperial e ficar na história de uma maneira definitiva”, diz o especialista.

Sem qualquer hipótese de sentar Putin num consultório e de lhe fazer uma entrevista clínica — “o melhor método de recolha de dados em termos de psicopatologia”, diz Vítor Amorim Rodrigues — não haverá nunca forma de comprovar o que se passa ao certo com o presidente russo, que no passado dia 24 de fevereiro, há apenas uma semana, deu ordem ao seu exército para entrar na Ucrânia e desde então já deixou o mundo a tremer com uma ameaça velada de recurso ao nuclear.

“O Putin tem uma coisa, ninguém sabe o que ele pensa; uma das características dele é ser imprevisível. Claro, ele está a fazer mal à humanidade, está a cometer crimes, é condenável, mas não é caso para meter num asilo psiquiátrico. Há homens bons e homens maus"
José Luís Pio Abreu, psiquiatra

No limite, todas as hipóteses são válidas, até as mais simples, como a que sugere José Luís Pio Abreu, psiquiatra com cinco décadas de atividade, professor da Universidade de Coimbra e autor de uma série de livros sobre o tema, incluindo o bestseller “Como Tornar-se Doente Mental”.

“O Putin tem uma coisa, ninguém sabe o que ele pensa; uma das características dele é ser imprevisível. Claro, ele está a fazer mal à humanidade, está a cometer crimes, é condenável, mas não é caso para meter num asilo psiquiátrico”, diz o especialista ao telefone com o Observador. “A imprevisibilidade não tem nada a ver com doença mental, pelo contrário. Os doentes mentais são muito mais previsíveis naquilo que fazem”, explica, para depois garantir que o facto de alguém escolher o caminho da guerra não tem necessariamente nada a ver com sanidade mental — nem com a ausência dela.

“Um combatente combate pelos seus ideais, cada um tem os seus e há ideais de vários tipos. As pessoas lutam pela pátria, lutam por Deus… Imagina que as guerras santas eram feitas por psicopatas?”, questiona, para logo a seguir dar a resposta. “Há homens bons e homens maus. E homens bons que se transformam em maus e homens maus que se transformam em bons. Isso acontece.”

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