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O livro “História Social Contemporânea: Portugal 1808-2000” procura refletir sobre as “transformações” e as “continuidades” na sociedade portuguesa — como as evoluções sociais resultaram do impacto das mudanças políticas. São cinco capítulos, associados a períodos temporais específicos, da Revolução Liberal à Primeira República, passando pelo Estado Novo e pela Revolução de 1974.
Nuno Gonçalo Monteiro (organizador da obra, em conjunto com António Costa Pinto), Jorge M. Pedreira, António José Telo, Álvaro Garrido e António Barreto são os autores dos capítulos. O Observador publica um excerto deste último capítulo, em que António Barreto se debruça sobre as transformações registadas em Portugal entre os anos 1960 e 2000.
Todos estes fenómenos [o Estado Social, a educação e a saúde, os níveis de vida e o bem estar] são conhecidos e ocorreram noutros países. Com eles, nasceu a sociedade de consumo de massas e desenvolveram-se as classes médias. Ao mesmo tempo, alargaram-se as desigualdades sociais. Segundo os dados do Eurostat, Portugal é o país onde as desigualdades sociais e económicas são mais marcadas; é também aquele em que o maior número de famílias se situa abaixo da “linha de pobreza”, isto é, menos de 50% do rendimento médio nacional. Todos os grupos sociais conheceram progressos e aumentos de rendimento indiscutíveis, mas a distância entre os rendimentos superiores e os inferiores aumentou. É possível que a modernização rápida tenha esses efeitos. Mas também é provável que, em cada sociedade, fatores institucionais, políticos, culturais e outros influenciem a distribuição social de rendimento, de tal modo que a maior ou menor desigualdade não dependa apenas do nível de rendimento. Utilizando os coeficientes de Gini, usados pelo Eurostat (serviço de estatística da União Europeia), verifica-se que um país com menor rendimento por habitante do que Portugal (a Grécia) tem índices de desigualdade inferiores, enquanto outros países muito mais desenvolvidos (como o Reino Unido) têm índices semelhantes aos portugueses. Sem falar nos Estados Unidos, muito mais desenvolvidos e muito mais desiguais.
Com exceção de três anos até à crise (1975, 1984 e 1993 e 2009) e todos depois disso, os portugueses conheceram um aumento consistente do produto nacional e do rendimento por habitante. A preços constantes, o rendimento nacional per capita aumentou, de 1960 a 2009, mais de cinco vezes. As remunerações do trabalho aumentaram quase na mesma proporção. As taxas de variação anual do produto nacional e do produto nacional per capita tiveram oscilações, registando, com exceção dos três anos negativos citados, valores muito altos no período que vai de 1962 a 1972. Período de crescimento sólido, apesar de inferior àquele, foi também o de 1986 a 1992. As taxas de variação anual das remunerações do trabalho per capita confirmam esta evolução: o mais consistente crescimento é o do período que vai de 1961 a 1974, com valores superiores aos do crescimento do produto. São oito os anos em que é negativa a sua evolução: 1976 a 1979, 1983 a 1985 e 1994. Depois de 1974, são poucos os anos em que o crescimento, por habitante, das remunerações do trabalho, é superior ao do produto: 1974, 1981, 1982, 1989, 1991, 1992 e 1993. Os valores máximos de crescimento são os seguintes: produto nacional, 10,5% em 1971; remunerações do trabalho, 14,3% em 1974; produto por habitante, 11% em 1971; remunerações do trabalho por habitante, 11,9% em 1970.
A percentagem dos ordenados e salários no rendimento disponível (por outros termos, a parte do trabalho no rendimento nacional) conheceu também oscilações previsíveis não só de acordo com a evolução da conjuntura económica mas também em função da situação política. Os valores do final da década de 1990 situam-se à volta dos 46%, muito semelhantes aos do início da década de 1960 (47%). De 1960 a 1974, a tendência foi de subida gradual, com uma aceleração brusca em 1974, altura em que a taxa chegou aos 60,1%. As consequências imediatas da revolução política e social podem ver-se nesta drástica mutação na distribuição do rendimento. O seu valor máximo foi atingido em 1975 (62,3%), para depois decrescer de modo consistente até 1987. A partir de então, voltou a assistir-se a uma lenta recuperação, mas ainda longe dos níveis anteriores. Esta curva acompanha, previsivelmente, a evolução política e social do país. E não deixa de ser digno de nota o facto de a percentagem do trabalho ser, em 1999, praticamente igual ao que era em 1960.
O salário mínimo nacional para a indústria e serviços, instituído em 1974, revela uma interessante evolução. A preços correntes, passou de 3300 escudos para cerca de 60 000 em 1999. Mas é a preços constantes que se observa uma realidade nem sempre visível: é, na primeira década do século XXI, inferior ao que era em 1974, sendo que durante mais de 30 anos se situou a níveis inferiores aos do início desta medida em 1974. O valor deste indicador está hoje ligeiramente abaixo do que estava na década de 1970. Subiu de forma gradual até 1980, desceu de modo drástico até 1984 (uma quebra superior a 25%), para depois recomeçar uma evolução ascendente, muito lenta, até ao fim desta década. Durante alguns anos, registou uma tendência permanente para a subida, mas sempre abaixo dos valores da década de 1970. Depois da crise financeira, da recessão de 2008 e anos seguintes, o valor real deste salário mínimo voltou a decrescer.
Rendimentos
A evolução, de 1981 a 1995, das receitas dos agregados familiares mostra, a preços constantes, uma subida consistente, proporcional à do produto. Todavia, a observação da sua repartição por categoria socioeconómica revela diferenças importantes. Apesar do crescimento real de todas, algumas cresceram muito menos, e outras distanciaram-se mais dos valores nacionais. As famílias de produtores agrícolas e de assalariados rurais estão, em 1995, mais longe da média nacional. As famílias operárias (das indústrias de transformação), que em 1981 se encontravam acima da média nacional, estão agora ligeiramente abaixo. Também viram piorar a sua situação, em relação à média nacional o pessoal administrativo (125% da média nacional contra 130%) e as profissões liberais (208% da média nacional contra 242%). Conheceram um melhoramento real e relativo os quadros técnicos, científicos e de direção, assim como os empresários não agrícolas. Entre 1995 e 2005, estas tendências confirmaram-se. O rendimento médio de todas as famílias, a preços constantes e em poder de compra real, aumentou sempre, dando todavia sinais de abrandamento desde 2003 até à atualidade.
Quanto à proveniência das receitas dos agregados familiares, sublinhe-se que o trabalho por conta de outrem está em ligeira diminuição; tal como o trabalho por conta própria, o rendimento de propriedades e as remessas dos emigrantes; em crescimento relativo estão a segurança social, os seguros e as receitas em natureza.
Os valores das remunerações e dos ganhos mostram oscilações, refletindo a conjuntura económica e a situação social e política. A evolução dos ganhos médios mensais por setor de atividade, por exemplo, revela que, entra os quatro grandes setores de atividade, só a “banca e seguros” está nitidamente acima da média nacional e não cessou de aumentar a sua distância relativamente aos outros setores. Abaixo da média nacional, encontram-se a agricultura e pesca, a indústria transformadora e o comércio. Entre estes, a agricultura desce também em termos relativos, a indústria estabiliza, e o comércio tem uma ligeira melhoria.
Se prestarmos atenção aos níveis de qualificação, verifica-se que foram os quadros superiores e os quadros médios que mais viram aumentar, em termos absolutos e relativos, os seus ganhos médios mensais e que os profissionais qualificados e não qualificados foram os que sentiram menores melhoramentos. Uma vez mais, foi na banca, nos seguros e no comércio que os ganhos mais subiram, em todos os níveis de qualificação, e na agricultura e na indústria que menos subiram.
Os ganhos médios mensais das mulheres, segundo o setor de atividade e os níveis de qualificação, revelam que a sua situação registou aumentos absolutos a preços constantes e ligeiras melhorias, na última década, relativamente às médias nacionais e aos homens. A percentagem dos ganhos médios mensais das mulheres (em todos os setores de atividade e em todos os níveis de qualificação) era, em 1986, de 80% da média nacional (homens e mulheres incluídos), 79% em 1991 e 82% em 1996. Até meados da primeira década do século xxi, esta diferença entre os ganhos das mulheres e os dos homens manteve-se.
Produtos nacionais comparados
As comparações com os restantes catorze países da União Europeia permitem observações interessantes. No final da década de 1990, o produto por habitante, em Portugal, ainda é apenas de três quartos (75,3%) da média europeia. Mas era, na década de 1960, de menos de metade (45,2%). Em 1960, e até grande parte da década de 1980, Portugal era, no que diz respeito ao produto por habitante, o último país. Até ao princípio dos anos 2000, Portugal estava a diminuir a sua distância em relação à Europa. A aproximação da Europa, um dos objetivos políticos mais proclamados por quase todos os partidos, foi sendo feita de forma gradual: em quarenta anos, foram recuperados, na exclusiva perspetiva do produto por habitante, cerca de trinta pontos percentuais, num atraso que se mediria antes em 55%. No entanto, ao longo da presente década, Portugal viu de novo aumentar a distância que o separa das médias europeias.
Num período de quarenta anos (1960–2000), Portugal registou, entre os quinze primeiros membros da Comunidade ou da União, a segunda mais elevada taxa de crescimento do PIB por habitante (a seguir à Irlanda). Se considerarmos apenas as três primeiras décadas (1960 a 1990), então Portugal ocupa o primeiro lugar. Nas décadas de 1960 a 1980, Portugal registou médias anuais de crescimento do produto superiores às da Europa dos quinze. Na década de 1990, houve dois anos em que o crescimento português foi inferior: 1993 e 1994. Na mesma década, as taxas de crescimento anual em Portugal, tal como em quase toda a Europa dos quinze, abrandaram nitidamente. Para Portugal, anuncia-se mesmo, para os anos que vão de 2000 a 2008 para o triénio de 2000 a 2002, uma taxa inferior à europeia. Neste período, a grande exceção é a da Irlanda, com elevadas taxas de crescimento (superior a 10% em 1997), duas a três vezes superiores às de Portugal e três a quatro vezes superiores às da União Europeia.
No consumo privado por habitante (em PPC), Portugal detinha, em 1960, o último lugar (46,3% da Europa dos quinze), seguido da Grécia (57,3%) e da Espanha (63,4%). A evolução, até 1999, é paralela à do produto, passando Portugal a 74,4%. Apesar disto, mantém o último lugar, dado que na Grécia o consumo privado representa 77,5% do da União e em Espanha 79,2%.
A sociedade global
As mudanças mais socioeconómicas foram acompanhadas de transformações em todas as outras áreas: políticas, jurídicas, culturais, etc. Assistiu-se ao incremento da formalização jurídica das relações sociais. A integração da população ativa, o crescimento económico, a consolidação do capitalismo e o desenvolvimento do mercado tornaram cada vez mais necessários o direito em geral e os contratos em particular. O regime democrático e a escolarização ajudaram os cidadãos a tomar consciência dos seus direitos e a procurar formas legais de os defender e garantir. Assim, verificou-se um enorme crescimento da litigância entre 1960 e 2000, mas sobretudo entre 1975 e 2000. O número de processos iniciados anualmente aumentou cerca de três vezes. Os números de magistrados judiciais e de magistrados do Ministério Público por habitante aumentaram, cada um, cerca de 4,5 vezes; o de advogados aumentou oito vezes. Os números de processos iniciados e findos, anualmente, por magistrado, passaram aproximadamente para metade (1000 para 500), mas o de processos pendentes por magistrado manteve-se a níveis semelhantes. Na última década do século xx e na primeira do século XXI, assistiu-se ao desenvolvimento de uma permanente “crise da justiça”. A procura aumentou muito, mas o sistema não se adaptou facilmente. Um complexo sistema de poderes corporativos parece estar a impedir que a justiça portuguesa se modernize e atinja níveis de eficácia mais razoáveis. Os atrasos da justiça (a duração excessiva dos processos) tornaram-se um facto reconhecido por todos e, de resto, frequentemente condenados pelo Tribunal Europeu. Por outro lado, têm-se sucedido casos de corrupção, ou, pelo menos, tem-se desenvolvido a denúncia de casos de corrupção, perante os quais a justiça parece algo ineficiente. Eis uma situação que tem contribuído para agravar a alegada “crise da justiça”.
A nova configuração da cidadania, em resultado da fundação do Estado democrático, implica as liberdades públicas, a afirmação dos direitos individuais e respetivas garantias e a entrada em vigor dos direitos políticos. Abriu-se a possibilidade à participação política, social e cívica. Pela primeira vez na sua história, todos os portugueses, homens e mulheres, civis ou militares, letrados ou analfabetos, profissionais ou desempregados, podem eleger o chefe de Estado, os representantes no Parlamento nacional, os dirigentes locais e as assembleias autárquicas representativas.
Com as liberdades e sob a influência de uma sociedade cada vez mais aberta ao mundo, liberalizaram-se os costumes, progrediu a permissividade e afirmou-se a laicização da sociedade e dos comportamentos. A Igreja, as Forças Armadas e os grandes corpos de Estado têm hoje menos influência na sociedade. Ou, antes, a sua influência é hoje partilhada e discutida, eventualmente contestada. Não só a Igreja vive numa sociedade diferente como ela própria mudou. O Concílio Ecuménico Vaticano II teve indiscutíveis repercussões na Igreja portuguesa. Esta, até meados dos anos de 1960, vivia em muito estreita ligação com o governo. Depois do Concílio, muitos católicos portugueses sentiram-se estimulados a debater as questões sociais, políticas e coloniais, como raramente o fizeram antes.
Uma sociedade aberta e plural
A sociedade conheceu um processo de diversificação cultural, étnica e religiosa, acompanhado do estabelecimento do pluralismo político. Pela primeira vez, desde há vários séculos, a Igreja Católica vive em coexistência (e competição) com outras igrejas, outros cultos e outras religiões. As religiões islâmicas hindu e animista têm atualmente milhares de adeptos, e as suas formas de culto são livres e públicas. As igrejas protestantes e reformadas estabelecidas abriram as suas portas, sem receios nem olhares indiscretos. Outras formas de culto cristãs (incluindo as vulgarmente designadas “seitas”, com origem nos Estados Unidos e na América Latina) conheceram, em duas décadas, um êxito seguro, reclamam dezenas de milhar de fiéis, adquiriram edifícios de culto e realizam as suas reuniões em locais públicos. Nas ruas das cidades e até nas explorações agrícolas e nas pequenas vilas, ouve-se falar uma grande variedade de línguas (latinas, crioulas, africanas, eslavas, etc.), o que é uma novidade na história recente do país. Este clima de pluralismo linguístico e religioso, em grande parte resultado da descolonização e da imigração, acompanha a abertura política efetuada e a diversidade partidária inaugurada em meados dos anos de 1970. Ao mesmo tempo, as influências da cultura de massas de uma sociedade da era da globalização exercem-se quotidianamente e sem entraves através da televisão, do cinema, da música, das escolas, da imprensa, das férias no estrangeiro ou nas férias de estrangeiros em Portugal, da Internet, etc. Pertencem ao passado os tempos da sociedade fechada, homogénea, de informação controlada, de cultura tradicional e de etnia única.
O novo clima democrático, estabelecido depois de 1974, e ultrapassado que foi um agitado período revolucionário, teve consequências em todos os planos da sociedade: alteraram-se as relações sociais e funcionais nas empresas, nas organizações e nas instituições. Pretendeu-se, ora com candura ora com malícia, que toda a sociedade se regesse por princípios, regras e métodos democráticos (eventualmente colegiais) de decisão. Despertaram-se direitos e criaram-se hábitos de participação e consulta, por vezes de modo pacífico, por vezes em conflito. Em muitas instituições públicas, como as escolas, as universidades, os hospitais e outras, adotaram-se sistemas destinados a promover a participação e a consulta dos cidadãos e dos utentes. Desenvolveram-se gradualmente as relações sociais contratuais e negociadas. Assistiu-se ao declínio dos princípios da autoridade indiscutível do Estado e dos poderes constituídos, não sem que, muitas vezes, haja quem pense que mesmo a autoridade democrática é posta em causa. A reverência e a subserviência, que, por atavismo ou medo, estiveram tão presentes durante mais de metade do século XX, deram pouco a pouco lugar a uma sociedade, não necessariamente de igualdade de oportunidades, mas de condições iguais.
A partir dos anos de 1970, sobretudo depois de instaurada a democracia, tornou-se visível o crescimento das ações, dos mecanismos e das instituições de defesa de direitos e de representação: sindicalismo, defesa do consumidor, proteção dos utentes, defesa de interesses específicos, etc. Assinale-se que, depois de um crescimento muito significativo do sindicalismo (em número de associados, em atividades e em importância política), se assistiu, a partir do final dos anos de 1980, a um real declínio deste movimento. O que não é muito diferente do que vai acontecendo noutros países europeus e está relacionado com o desemprego crónico, a imigração, o emprego precário, os métodos da “economia paralela”, a diversificação das classes trabalhadoras e a diminuição de importância da população operária industrial tradicional. Após um período de grande conflitualidade social e política (durante os anos da revolução e nos que se seguiram imediatamente), a concertação social e a negociação coletiva têm-se imposto como métodos predominantes. As greves e outros conflitos laborais tornaram-se raros, fenómeno a que não deve ser estranho o declínio do recrutamento sindical. Além disso, os principais conflitos laborais ocorrem atualmente no setor público ou no que dele resta (transportes e Administração Pública, designadamente). Aliás, um indicador do ambiente de concertação é, por certo, o clima relativamente pacífico em que se processou a reprivatização das empresas e do setor público. A um setor público muito vasto e que já era do Estado antes da revolução, veio acrescentar-se, entre 1974 e 1976, um enorme volume de empresas que constituíam o mais importante da economia do país.
A quase totalidade da banca, uma grande parte dos seguros, os transportes públicos (rodoviários, aéreos, marítimos, ferroviários), a produção e a distribuição de eletricidade, as telecomunicações, a siderurgia, a fundição, o cimento, os adubos, os petróleos, o gás, a televisão, a rádio, os principais jornais, uma parte importante da metalo-mecânica, uma fração considerável da construção e da reparação naval, etc. Ora, a partir do final da década de 1980, iniciou-se um vasto programa de reprivatização de empresas e de abertura ao capital privado de setores anteriormente em monopólio estatal, o que foi levado a cabo pelos governos de dois partidos diferentes, sem que tal processo, mau grado polémicas intensas, tenha criado conflitos políticos ou aberto ruturas sociais. A reprivatização da economia e das empresas só foi possível depois de revista a Constituição, que a interditava. A revisão foi feita na segunda parte da década de 1980, graças à colaboração dos dois maiores partidos, um da esquerda e um da direita: o PSD (Partido Social Democrata), então no governo, e o PS (Partido Socialista), na oposição. As medidas práticas que tornaram a privatização efetiva foram iniciadas pelo PSD, de 1989 a 1995; e continuadas, sem quebra de ritmo, pelo PS, de 1995 a 2002. Este clima de relativo equilíbrio, baixa conflitualidade e de um razoável crescimento virá a ser posto em crise a partir do fim da primeira década do século XXI, com as dificuldades económicas e financeiras internacionais.
Aquele clima e os dispositivos acima referidos não são, todavia, fonte de participação cívica e política. Pelo menos não parecem responder às expectativas que o legislador e as autoridades neles depositavam. É muito difícil obter a participação dos pais nas escolas básicas e secundárias. A associação das empresas e de outros interesses à condução da vida universitária é muito débil. A participação das autarquias e das associações privadas nos conselhos “consultivos” e “gerais” de várias instituições públicas (como os grandes hospitais, por exemplo) é praticamente inexistente, apesar de estarem preenchidas as condições legais para tal fim. A associação dos consumidores e dos utentes a toda a espécie de serviços públicos é, quando existe, rara e frágil. A abstenção eleitoral é talvez um indicador do clima geral de participação. Depois de, nas décadas de 1970 e 1980, se terem registado em Portugal altíssimas taxas de participação eleitoral, a abstenção tem vindo a crescer significativamente: de modo mais rápido, aliás, do que em todos os outros países-membros da União Europeia. Nas eleições mais competitivas, as legislativas e as municipais, a abstenção atingiu, nos últimos anos, os 40%. Nas presidenciais e nas europeias, situa-se, respetivamente, perto dos 50% e dos 60%.
Com a fundação do Estado democrático, exerceram-se pressões em toda a sociedade para que a democratização fosse real em todas as atividades coletivas e não apenas na vida política. Com relativa rapidez, as formas de paternalismo, de despotismo burocrático, de secretismo da Administração Pública, de segregação social e de favoritismo foram sendo reduzidas. A consciência dos direitos de cada um e a certeza da igualdade perante a lei foram sendo reais. Comparando a situação de hoje com a de há quarenta anos, é fácil concluir que a participação política, cívica e social aumentou muito consideravelmente. Mas tal facto dever-se-á sobretudo aos efeitos da fundação do regime democrático. Se se olhar para um período mais recente, dez a vinte anos, então as conclusões deverão ser diferentes. Na verdade, tem-se assistido a um declínio muito marcado da participação social e cívica, designadamente nos clubes e associações locais e de bairro, incluindo agremiações culturais, de entreajuda e desportivas, assim como no associativismo profissional. A nova cultura de massas, o crescimento dos aglomerados suburbanos, a separação e o afastamento dos locais de trabalho e residência, a expansão da televisão e outros fatores terão, em grande parte, destruído um velho tecido associativo. Por outras palavras, comparando a atualidade com os tempos de há quarenta anos, assistiu-se a dois processos aparentemente contraditórios: um aumento da participação e das respetivas instituições e associações nas atividades e nos setores relacionados com a vida política, a defesa de interesses profissionais e económicos, o sindicalismo e o associativismo patronal; e uma diminuição visível das formas de participação social e cultural, de caráter voluntário, repousando em tradições locais.
Certas formas de participação cívica e social regridem igualmente, sendo o exemplo do sindicalismo o mais evidente. Pelo que se sabe hoje, a taxa de filiação sindical é muito menor do que no final dos anos de 1970. A capacidade de mobilização e de recrutamento dos sindicatos não tem cessado de baixar. Entre outros fenómenos que estarão na origem desta tendência, haverá a mencionar a privatização de empresas e setores públicos, que terá constituído fator de desmobilização sindical. Há uma correlação estatística, pelo menos: as mais enérgicas ações sindicais, incluindo greves, têm lugar no setor público. Além disso, o muito considerável fluxo de imigrantes causou, como em muitos outros países, uma relativa retração sindical. Os mercados paralelos de força de trabalho e os empregos precários influenciam no mesmo sentido.
Outras formas de participação cívica e social, incluindo religiosa, tanto no plano nacional como local, têm tido uma evolução diferenciada. São vários os domínios em que são nítidos os progressos do associativismo e das consequentes intervenção, tentativa de influência e defesa de interesses: certas formas de voluntariado, ajuda internacional, ecologia e ambiente, expressão cultural, defesa do consumidor e do utente, etc. É conhecida a dependência de muitas novas organizações e associações dos financiamentos do Estado e da União Europeia. Como estas entidades, Estado nacional e União Europeia, pretendem ver legitimada a sua atuação, estabeleceram múltiplos mecanismos destinados a promover o associativismo e a participação. Os subsídios e o financiamento de projetos são as vias mais frequentes.
De igual modo, é também conhecida a crescente dependência das associações desportivas dos financiamentos oficiais. O mecanismo é idêntico: o Estado, à procura de legitimação (eventualmente de apoio eleitoral), criou uma rede densa de apoios financeiros aos clubes desportivos e às suas atividades associativas e federativas, o que por vezes envolve também atividades comerciais, económicas e imobiliárias. Mas muitas associações antigas viram terminar a sua vida. Nas cidades com alguma história e nos bairros antigos, a maior parte das associações está de portas fechadas, e é difícil, aos últimos “resistentes”, conseguir colaboração ou mesmo associados. A “cultura de massas” arrefeceu o ânimo associativo de muitas pessoas.