“O Governador” é o um testemunho de Carlos Costa, líder do Banco de Portugal entre 2010 e 2020, sobre os pontos mais marcantes dos seus dois mandatos. Com prefácio de Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu, e baseado em mais de 30 horas de conversa com Carlos Costa, Luís Rosa (que é redator principal do Observador) revela factos até agora desconhecidos sobre a intervenção da troika, o caso Banco Espírito Santo e a resolução do BANIF, entre outros temas.
Alternando o registo narrativa entre a reportagem e a entrevista, o livro dá a conhecer ao pormenor as relações tensas com José Sócrates, António Costa e Mário Centeno e as guerras com Ricardo Salgado e a família Espírito Santo. O livro, editado pela Dom Quixote, será apresentado na Fundação Calouste Gulbenkian na próxima terça-feira, dia 15 de novembro, às 17h30.
O capítulo que o Observador pré-publica retrata precisamente um dos maiores choques que Carlos Costa teve com o primeiro-ministro: a retirada de Isabel dos Santos da administração do BIC e a pressão de António Costa para que isso não sucedesse.
«Se a sra. engenheira continua a falar nesse tom, a reunião termina de imediato e sem mais discussão!» Habitualmente sereno e calmo, Carlos Costa teve de cortar o mal pela raiz por duas vezes durante aquela conversa que ocorreu a 12 de abril de 2016.
O governador acabara de informar a poderosa Isabel dos Santos, a maior acionista do BIC, e Fernando Teles, sócio da filha mais velha do presidente de Angola, com uma participação de 20% no mesmo banco, de que tinham de se afastar do Conselho de Administração para que o mercado compreendesse que o banco nada tinha a ver com o BIC Angola nem estava exposto aos problemas, nomeadamente reputacionais, que tal poderia implicar — exatamente com os mesmos acionistas maioritários. Era essencial que Isabel dos Santos e Fernando Teles fossem substituídos por administradores efetivamente independentes dos acionistas. Isto, explicou o governador, para dar credibilidade ao reforço que o Banco de Portugal impunha aos mecanismos de controlo interno do BIC Portugal relativos às regras europeias contra o branqueamento de capitais que o nosso país aplicava desde o início na década de 2000.
Isabel dos Santos não gostou da recomendação do governador. Habituada desde sempre à veneração das autoridades angolanas, a filha mais velha de José Eduardo dos Santos estava no auge do seu poder (a poucos meses de ser indigitada pelo pai como presidente da Sonangol). Optou pelo confronto direto e começou por dizer que não havia nada na legislação portuguesa que a impedisse de ser administradora do BIC.
Como as respostas não lhe agradavam, a agressividade — característica habitual em Isabel dos Santos quando as coisas não lhe corriam de feição — começou a subir de tom, tendo surgido o primeiro aviso de Carlos Costa.
A reunião (…) tinha dois contextos particulares.
O primeiro relacionava-se com a lista apresentada pelos acionistas do BIC para os órgãos sociais do banco no mandato 2016/2019. Jaime Pereira, então vice-presidente do BIC, fora aprovado em fevereiro para suceder a Mira Amaral. Contudo, após a avaliação de idoneidade imposta pelas regras europeias do «Fit & Proper», o departamento de supervisão prudencial tinha chumbado este nome. Uma auditoria realizada em 2015 pelo Banco de Portugal ao BIC identificara diversos problemas nos mecanismos de prevenção de branqueamento de capitais, uma área sob tutela de Jaime Pereira, e imposto trinta correções.
Pelo meio, surgiu uma acusação criminal por branqueamento de capitais contra vários diretores do BIC que agravaram as suspeitas do Banco de Portugal sobre os fracos mecanismos de prevenção daquela instituição bancária.
Em nome da prudência, o Banco de Portugal queria também afastar Isabel dos Santos e Fernando Teles da administração. A primeira era uma pessoa politicamente exposta por ser filha do presidente de Angola e por existirem fortes indícios de que fora favorecida pela plutocracia do MPLA, que governava Angola desde a independência em 1975, sendo a acionista de referência de várias das principais empresas do país, como a Unitel (telecomunicações), o BIC Angola, o Banco Fomento e outros ativos valiosos. (…)
Um segundo contexto particular tinha a ver com as sucessivas denúncias que Ana Gomes, juntamente com outros eurodeputados, tinha enviado nos últimos anos para as instituições europeias, nomeadamente o Banco Central Europeu e a Autoridade Bancária Europeia. (…)
Apesar de não ter aberto nenhum processo de infração a Portugal, a Autoridade Bancária Europeia (conhecida pelo acrónimo inglês EBA — European Banking Autorithy) tinha enviado várias missivas ao Banco de Portugal para avisar que estava atenta à matéria. Contudo, a instituição europeia não trouxe nada de novo. A missiva era apenas uma espécie de prova aos eurodeputados de que a EBA tinha feito algo.
A reação do Banco de Portugal prendeu-se única e exclusivamente com as informações que os bancos começaram a passar ao supervisor e à Unidade de Informação da Polícia Judiciária e ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) sobre transferências suspeitas de Isabel dos Santos, dos seus irmãos e de outros representantes da plutocracia de Luanda.
Por exemplo, Isabel dos Santos era visada em 17 inquéritos criminais abertos no DCIAP e que estão a ser investigados pelo procurador Rosário Teixeira (à data de julho de 2022).
Desde que começou a ser uma player relevante na economia portuguesa, Isabel dos Santos sempre ignorou propositadamente a existência das regras europeias contra o branqueamento de capitais, tentando convencer a opinião pública portuguesa e europeia de que o facto de ser filha do presidente de Angola nada tinha a ver com a origem da sua fortuna. Angola já tinha deixado de ser um regime marxista-leninista desde os anos 1990, mas Isabel dos Santos insistia nesta pequena utopia.
Na reunião com Carlos Costa, chegou mesmo a levantar a voz para insistir que nenhuma lei portuguesa a podia impedir de ser administradora de uma empresa sua e que estava a ser discriminada por ser angolana. O governador e Carlos Albuquerque, então diretor do departamento de supervisão prudencial, estavam estupefactos, pois só faltava Isabel dos Santos acusar o Banco de Portugal de racismo.
Carlos Costa avisou-a pela segunda vez, como se de uma birra se tratasse, de que a reunião ficaria por ali de imediato e sem mais discussão caso persistisse naquela atitude. (…)
Angola não era Portugal. E a influência da plutocracia que reinava em Luanda não chegava ao Banco de Portugal. Era essa conclusão que Carlos Costa queria que ficasse clara.
“Não podemos tratar mal a filha do Presidente de um país amigo”
Isabel dos Santos não ficou obviamente quieta, puxou da sua agenda telefónica e, com a ajuda dos seus conselheiros mais próximos (como o gestor Mário Leite da Silva e o advogado Jorge Brito Pereira), acionou todos os canais de comunicação com o poder político para denunciar o que entendia ser uma ilegalidade e uma discriminação do Banco de Portugal.
Uma das pessoas que recebeu as queixas contra Carlos Costa foi o primeiro-ministro [António Costa], não se sabe se por interposta pessoa ou diretamente. Certo é que o chefe do Governo não ignorou os recados de Isabel dos Santos e decidiu contactar o governador do Banco de Portugal.
António Costa tanto pode ser sibilino como pode cortar simplesmente a direito quando quer ser assertivo com o seu interlocutor. Na conversa com o governador, ciente de que o poder era exclusivamente do Banco de Portugal, optou pela primeira táctica e resumiu a sua ideia numa frase: «Não se pode tratar mal a filha do Presidente de um país amigo de Portugal», disse o primeiro-ministro.
O «tratar mal» era obviamente o entendimento do Banco de Portugal de que Isabel dos Santos tinha de sair da administração do BIC. Além da ironia da saída da empresária angolana ter algo a ver com uma queixa de uma eurodeputada do PS, a reação de Costa também indicia que o primeiro-ministro era a favor da sua continuidade na administração do banco.
Houve movimentações de desagrado da senhora junto dos poderes políticos portugueses relativamente à atitude do governador, queixando-se de eu a ter impedido de fazer parte do Conselho de Administração. Há um acionista de um banco angolano que diz à boca cheia que está à espera da saída do governador para concretizar o seu plano para o banco em questão. Não foi certamente a fase mais fácil da minha vida e que me fez temer pela minha segurança«, afirma Carlos Costa.
Isabel dos Santos tinha passado claramente uma linha vermelha. A sua atitude poderia ser admissível em Luanda, mas era claramente intolerável em Portugal, um Estado-membro da União Europeia.
Por isso mesmo, foi tornado público pela comunicação social que a lista de administradores apresentada pelo BIC Portugal fora reprovada pelo Banco de Portugal e que a avaliação da própria Isabel dos Santos estava sujeita a confirmação. O sinal do Banco de Portugal não poderia ser mais claro.
A tentativa de pressão de António Costa junto de Carlos Costa, contudo, também não pode ser dissociada de um outro dossiê: a venda da participação de Isabel dos Santos no BPI aos catalães do La Caixa.
Dois dias antes de Carlos Costa chamar Isabel dos Santos e Fernando Teles ao Banco de Portugal, tinha sido anunciado ao mercado pelo La Caixa um acordo de venda da participação de 18,6% que a angolana detinha no BPI. Ao mesmo tempo, o BPI vendia a sua posição de 51,6% do Banco Fomento Angola a Isabel dos Santos, cumprindo assim uma imposição do Banco Central Europeu, que exigira uma redução da exposição da instituição liderada por Fernando Ulrich a Angola.
Este acordo só fora possível com a «ajuda» do Governo de António Costa: uma alteração legislativa que acabava com a blindagem dos estatutos dos bancos. Apesar de se aplicar a seis instituições de crédito, nomeadamente ao BCP, a lei ficou conhecida como o «decreto BPI», pois fora publicada em cima do momento do negócio entre o La Caixa e Isabel dos Santos. Era uma espécie de desbloqueador de um acordo, mas também favorecia claramente a posição negocial dos catalães e «obrigava» Isabel dos Santos a vender. (…)
Certo é que nem a pressão de António Costa, nem a de outros protagonistas da vida política portuguesa resultaram. Carlos Costa manteve a sua rota e Isabel dos Santos e Fernando Teles foram mesmo substituídos, tendo os acionistas do BIC apresentado, em maio de 2016, o nome de Fernando Teixeira dos Santos, ex-ministro das Finanças, para novo CEO do banco.
“Os órgãos societários do BIC indicaram o nome do professor Teixeira dos Santos. A sua idoneidade para o exercício das funções de CEO do banco foi avaliada pelo Mecanismo Único de Supervisão — isto é, pelo Banco de Portugal e pelo Banco Central Europeu. Não houve qualquer espécie de contacto prévio e muito menos intervenção da minha parte no processo. A equipa proposta foi selecionada e proposta pelos acionistas do BIC, em observância do quadro normativo aplicável”, afirma Carlos Costa.
Igualmente certo é que António Costa deu mostras do seu pragmatismo político ao pressionar o governador do Banco de Portugal, invocando precisamente o bem superior que eram (e são), na perspetiva do primeiro-ministro, as relações entre Portugal e Angola.
Mais tarde, e após o Ministério Público ter acusado formalmente Manuel Vicente (ex-presidente da Sonangol, ex-vice-presidente de Angola e aliado político de João Lourenço) de ter corrompido um procurador português, António Costa repetiu a mesma estratégia, classificando a acusação como «irritante» e que perturbava as relações entre Portugal e Angola. (…)
Já Isabel dos Santos caiu em desgraça com o caso Luanda Leaks, em janeiro de 2020, que retratou a forma como a filha de José Eduardo dos Santos terá alegadamente desviado cerca de 100 milhões de euros dos cofres públicos do seu país. Nos últimos dias de 2019, a justiça de Luanda tinha decidido congelar todos os seus bens em Angola.
O Banco de Portugal reagiu de imediato ao Luanda Leaks, até porque uma das muitas operações sob suspeita nesse caso prendia-se com a forma como tinham sido transferidos cerca de 57,8 milhões de euros de uma conta da Sonangol no Eurobic para o Dubai, já depois de Isabel dos Santos ter sido afastada da Sonangol, e exigiu que a empresária vendesse a sua participação no Eurobic — que seria arrestada em março de 2020 pela justiça portuguesa, bem como as participações na NOS e Efacec.
Desta vez, António Costa não ligou para Carlos Costa. O pragmatismo também sabe reconhecer que, quando alguém cai em desgraça, já não pode ser salva.
«Da noite para o dia, com o Luanda Leaks, gera-se um movimento de surpresa com a forma como os angolanos fizeram a sua acumulação de capital e com a sua penetração no tecido empresarial e social português. Era novo? Não. Era sabido. E não faltava quem as justificasse. Tratar-se-ia de um processo de acumulação primitiva de capital, decalcada, argumentavam, do processo de desenvolvimento dos países mais desenvolvidos”, censura Carlos Costa.
De facto, com exceção do supervisor e das autoridades judiciais, todos tinham fechado os olhos. Tanto os atores económicos, como os atores políticos angolanos foram cortejados por quem contava na sociedade portuguesa, quer como investidores, em Portugal, quer como parceiros de negócios, em Angola, quer, ainda, como clientes. (…)”, diz o governador.