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“Sou um tipo porreiro”, diz António Zambujo a dada altura. E é mesmo. Um tipo porreiro, sem tretas e com o ego mínimo, aquele que carrega por direito próprio. Uma carreira de sucesso no meio da música portuguesa, começando no fado e expondo depois todas as influências que o marcaram. Discos bem vendidos, concertos atrás de concertos, parcerias de sucesso com Miguel Araújo ou até Chico Buarque e uma boa lista de autores e compositores que lhe oferecem canções com todo o gosto. O currículo é invejável e o novo disco que é editado no dia 23, Do Avesso, tem tudo para marcar ainda mais pontos neste saldo de boas contas.
Este porreirismo faz com que se entregue à conversa num jardim de Lisboa como quem faz apenas isso: uma conversa. Por estes dias, tem a agenda mais do que preenchida — entrevistas, a preparação de detalhes relativos ao lançamento do disco, aquela consulta do dentista com o filho mais novo que o faz pensar no trânsito de Lisboa: “Não sei bem como é que vou sair daqui”. Ainda assim, não fala a correr. Não podia. Um disco como Do Avesso nunca poderia ter sido feito por quem vive à pressa.
Este é um álbum cuidado ao detalhe. A mesma tradição portuguesa que sempre o acompanhou (do fado ao cante alentejano) a beber tudo o que pode nas influências pop-rock que o marcaram. A ele e ao trio que com Zambujo preparou tudo, da produção aos arranjos: Nuno Rafael, Filipe Melo e João Moreira. Canções de amor, sobretudo de desamor, interpretadas por um romântico que vê nos corações partidos as melhores histórias que se podem viver ou contar — “Já morri de amor e tive dificuldade em levantar-me. Sei bem do que falo”, haverá de confessar. A simplicidade das melodias e das letras é apenas aparente, própria só dos talentosos com bom gosto, de quem compõe como quem sabe que nada mais tem a fazer. Do Avesso é complexo, detalhado, ambicioso e, apesar disso, imediato na forma como conquista quem o ouve. Pode ter só uma guitarra, pode ter só um piano, mas também se deixa envolver pela Orquestra Sinfonietta de Lisboa (dirigida por Vasco Pearce de Azevedo) para conseguir uma elegância rara (já agora, os arranjos de Filipe Melo merecem atenção minuciosa, fica o aviso).
Rodrigo Maranhão, Miguel Araújo, Márcia, Aldina Duarte, Mário Laginha, Arnaldo Antunes, João Monge, Pedro da Silva Martins ou Jorge Benvinda. Esta lista é bonita e a verdade é que não acaba aqui. Colaborações certeiras, para um homem que gosta de receber canções e de as oferecer, que compõe mas que é “acima de tudo um intérprete”. Sempre foi assim, desde garoto, quando começou a tocar para seduzir, à porta da discoteca, em Beja; quando veio para Lisboa participar no musical Amália e se entregou à boa má vida; quando do fado se libertou para tudo o resto, ainda que nunca o tenha deixado por completo. Acorda cedo, procura cumprir horários, tem de ter a casa arrumada, mas está sempre à espera de a deixar para dar concertos. No início deste ano esteve dois meses sem tocar: “Foi horrível. Estava super angustiado. Ao fim de duas semanas já não aguentava”.
“Vamos a isto?”, pergunta. Vamos pois. Zambujo olha para as perguntas no papel em cima da mesa da esplanada. Estará assustado ou nem por isso? A conversa vai fugir ao guião com muita facilidade, mas aquele olhar deixa dúvidas de último minuto sobre o à vontade do entrevistado. É por aí que começa este bate boca.
Quando é entrevistado e vê alguém com tantas perguntas no papel, qual é a sensação?
É a de saber se as perguntas estão só de um lado das folhas ou se estão na frente e no verso. Não, estou a brincar… conversar não me chateia nada, bem pelo contrário. Não gosto nada é de fotografias. Não tenho paciência. E o fotógrafo, claro, está a fazer o seu trabalho e quer determinados sítios e a luz e tudo isso… E depois é a minha cara, tenho de aparecer, não é?
Mas até faz sucesso, parece-me… A sua cara está nas capas dos discos, é porque vende, certamente…
E é uma carinha laroca, até, convenhamos. O último disco foi o de tributo ao Chico Buarque. Os outros discos todos tinham sempre a minha fronha na capa. E nesse eu fiz questão de dizer “por favor, vamos fazer uma capa em que não apareça a minha cara”. Decidimos convidar a Adriana Varejão, artista plástica brasileira que acompanhou muito o processo de gravação do disco e desafiámo-la para fazer a capa e ficou muito bonita. E o disco não deixou de vender por isso.
Estamos a conversar num jardim, no centro de Lisboa. Aposto que pelos menos 75% destas pessoas já perceberam que está aqui sentado o António Zambujo…
Sim. Mas lido bem com isso. Bom, depende da hora do dia.
Explique lá isso melhor.
Se isto que está a acontecer aqui fosse às 11 da noite ou à meia noite no Cais do Sodré, já tínhamos problemas.
Que tipo de problemas?
Não conseguiríamos falar, seríamos constantemente interrompidos para tirar fotografias. Não tanto para me pedirem canções, mais fotos…
Mas é um tipo tranquilo, pacato, isso ajuda… ou na verdade não é assim?
É verdade. Não me chateio com muita facilidade. Às vezes irrito-me com coisas do dia a dia, com as parvoíces que as pessoas fazem no trânsito, a forma como hoje em dia se esquece a palavra “gentileza”. As pessoas não são gentis umas para as outras, são más, são rudes, são brutas. E isso irrita-me. Mas eu não demonstro, ou pelo menos tento não demonstrar, tento não ligar.
Parece-me que é assim que é visto, como um cidadão tranquilo.
Pois, não faço ideia. Um tipo porreiro? Acho que é isso. Se bem que isso acaba por não importar muito. Gostava que me vissem como músico, como artista que dá música que as pessoas gostam de ouvir. O meu papel resume-se a isso. Quero que as pessoas gostem das minhas músicas. Quanto ao resto, quero é que os meus amigos gostem de mim, a minha família também. Se me acham um tipo porreiro ou não… bom, isso na realidade não interessa.
Interessa-lhe mais o disco que tem no momento e como vai ser recebido.
Sim.
Era este o plano desde o início, fazer um disco assim?
Não há plano para fazer um disco.
Isso não é bem verdade…
Diria que não existe um plano no papel. No início, nas nossas cabeças já temos mais ou menos pensado o que vamos fazer, até porque há reuniões prévias, de pré-produção. Mas o resultado deste disco resume-se aos discos que ouvimos, às músicas que escutamos, aos artistas que idolatramos. São eles, verdadeiramente, que nos inspiram. A primeira canção, a “Do Avesso”, existe e foi gravada assim porque o Rodrigo Amarante fez um disco espetacular chamado Cavalo que tem uma música [“Fall Asleep”] com um piano que é igual a este. Porque eu quis que o som fosse o mesmo. Aquele, tal e qual. E ficou igual. Houve coisas que foram surgindo nos ensaios e ao mesmo tempo íamos percebendo o caminho para as músicas. E de repente lembrávamo-nos da “Penny Lane” dos Beatles ou de uma coisa dos Beach Boys.
Esse quase-plano inicial já incluía fazer um disco com o Nuno Rafael, o Filipe Melo e o João Moreira?
Já. Porque na minha cabeça achava que ia resultar. Tão simples quanto isso. E tinha razão. Tenho uma coisa estranha… em estúdio, quando me emociono, dou risadas, gargalhadas, não consigo continuar a cantar. Na parte em que gravámos no estúdio a voz guia, que em princípio nunca é definitiva, no “Amapola”, por exemplo [uma declaração de amor baladeira, vinda dos anos 20 mas sem prazo de validade], chegava ali a uma parte que não conseguia, parava, começava a rir e não conseguia mesmo. Como aqueles momentos em que as pessoas dizem que têm borboletas. Não conseguia. Tinha que me concentrar. Por causa dos arranjos, de tudo aquilo.
Já conhecia os três.
Sim. O João toca comigo há algum tempo. E o João tem uma ligação forte com o Melo. Aliás, eles tinham feito o arranjo para a parte que a Banda da Carris tem no “Pica do 7”. O “Rafa” já tinha feito os Humanos, a banda do Sérgio Godinho… e já os tinha visto a trabalhar juntos no Deixem o Pimba em Paz, uma coisa musicalmente fantástica. Achei que todos juntos iríamos conseguir atingir qualquer coisa de muito especial. E está aí.
Este disco vai servir para conseguir chegar a uma espécie de unanimidade definitva em volta do seu trabalho?
Não sei, o mundo hoje está muito complicado, não se consegue perceber as pessoas.
Talvez seja melhor não tentar perceber.
Totalmente de acordo. E isso dos fãs… há pessoas que odeiam tudo. Há pessoas que escrevem na internet ou escrevem em jornais e nasceram para odiar tudo.
E segue as coisas da internet?
Sigo mais as coisas dos jornais.
A sua conta de instagram tem uma meia dúzia de publicações…
É institucional, apenas e só. Instagram e facebook. Nem sequer tenho a password.
Porque é que não tem contas pessoais?
Cansei-me.
Chateou-se com alguma coisa?
Não, com nada. O erro não está nas redes sociais, está no uso que às vezes se dá às redes sociais. Às vezes leio algumas pessoas que dizem que as redes têm culpa disto e daquilo… não é nada disso.
[“Sem Palavras”, o primeiro single de “Do Avesso”]
Mas tem de passar por esse lado, este lado do negócio, das redes, das entrevistas, do lançamento próximo do Natal porque isto é, e nunca deixou de ser, um negócio.
Não tenho qualquer problema com isso. Mas é engraçado ver como isto das redes sociais evoluiu em tão pouco tempo. No início era porreiro para encontrar amigos de quem já não sabíamos nada. Quando me mudei para Lisboa encontrei muita malta, antigos colegas do liceu, amigos de infância. E hoje em dia não serve para nada disso.
“O miúdo que arruma o próprio quarto, tudo no sítio certo? Era eu”
Faz discos porque gosta ou porque tem de ser?
Gosto. Gosto mesmo. E não faço aquela coisa de “vou agora tirar um mês ou três meses para tratar disto”. O processo criativo é permanente. Quando chegou a altura de gravar o disco já tinha muitas músicas. A da Márcia, a do Miguel Araújo… Faço uma seleção e as que não entram ficam guardadas, nada se perde. Mesmo que seja para dar a outro músico. Porque há uma partilha que se faz.
Alguém liga e diz “António”, tenho uma canção para ti”?
Sim, pode ser. Ou o contrário, eu posso dizer “gostava de cantar uma música tua”. É muito simples.
Mas depois é preciso escolher, há canções que vão ficar de fora.
Claro, mas é assim que funciona, não as regras e toda a gente conhece as regras. Ninguém leva a mal. Por exemplo, o João Monge é o meu anjo da guarda. Tenho uma pasta no computador com o nome dele, tenho sempre lá umas dez ou 15 músicas. Nunca se perdem, nunca.
Quem é que gostava de cantar que ainda não cantou?
Há uma portuguesa que gostava muito de cantar, nunca o fiz e gosto muito das letras dela, que é a Manuela de Freitas. Mas a pouco e pouco vou lá chegando.
Quando estiver em palco, provavelmente vai apresentar algumas destas novas canções sem a guitarra.
Isso vai ser estranhíssimo.
O que é que vai fazer?
Ainda não sei. Vai ser tudo diferente. Porque a construção das canções foi diferente. Foi mesmo tudo do avesso. Depois da seleção final das canções, a forma como trabalhámos, a parte do estúdio… foi uma aprendizagem. Gravei os outros discos sempre com a mesma pessoa, o Ricardo Cruz, então o processo já estava instituído. Com o Chico Buarque ele também estava presente e não houve grande diferença. Aqui não, foi tudo diferente. Tivemos que nos adaptar uns aos outros.
Em algum momento teve dúvidas?
Não, nada disso. É preciso ter alguma paciência para perceber o que vai acontecer. Por exemplo, o Rafa tem uma coisa fantástica, ele vai experimentando coisas no estúdio, vai fazendo experiências, não conseguimos perceber onde é que ele está a tentar chegar, mas ele sabe bem qual o objetivo. Isso é fantástico. Nunca tinha feito música com ninguém que tivesse esse tipo de processo. O Filipe é o gajo mais picuinhas que já vi. No bom sentido. Vai ao mais ínfimo pormenor com a orquestra. Ele está na régie e está a prestar atenção a todos os naipes, a tudo.
Tudo isso quer dizer que a disciplina e o método foram diferentes, que foi necessária uma adaptação.
Nem por isso. Conseguimos facilmente uma boa organização. Normalmente estávamos os quatro e o engenheiro de som. Sabíamos sempre o que tínhamos de fazer, qual a função de cada um. Respeitávamos tudo isso.
E é sempre preciso ter um horário.
Claro. Eu e o Rafa funcionamos sempre muito cedo, 7h30 da manhã estamos os dois a trabalhar. O Moreira está a viver uma segunda adolescência e o Melo só funciona a partir das 10h. Tentámos equilibrar ali as coisas para estabelecermos horas de funcionamento. Regras são boas.
Quando era garoto, era bem comportado, um miúdo atinado?
Sim, sempre fui. Super atinadinho. O miúdo que arruma o próprio quarto, tudo no sítio certo? Era eu.
Estamos a falar de que idade?
Não sei, desde criança. Aquele miúdo que, quando acha que o quarto está meio confuso, enche um saco com brinquedos com os quais já não brinca para dar a meninos que os querem? Era eu.
Quando sai de casa, de manhã, hoje, faz a cama?
Não. Isso não. Tenho um amigo que teve uma namorada que fazia a cama no hotel. Isso é meio estranho.
A maioria das pessoas têm-no, hoje, como o solitário boémio…
Tive essa fase, mas nada caótica. Tudo certinho, em casa sempre tudo certinho, tudo organizado. Sou como o Seinfeld. Tudo imaculado. O Melo diz que é do signo Virgem.
Tem irmãos?
Não. Sou filho único. Mas tenho dois filhos. E gostava de ter irmãos. Tinha dois primos muito próximos. A minha mãe tem duas irmãs e cada uma tem um filho, temos as idades próximas, vivíamos próximos uns dos outros e passávamos muito tempo em casa da minha avó.
Era bom aluno?
Era. Houve ali uma altura em que a coisa descambou, já não me lembro bem porquê, foi talvez no sexto ano, do sexto para o sétimo ou do sétimo para o oitavo. Mudei de escola e não me adaptei bem. Mas depois voltei outra vez e ficou tudo normal.
Portanto, por estes dias já não é esse artista boémio de outros tempos.
A fase mais crítica foi quando me mudei para Lisboa, fiz durante quatro anos o musical do Filipe La Féria. Essa foi a altura mais crítica.
Como assim?
O óbvio, via a luz do dia quando me deitava. Noites a fio. Deveria ter uns 25, 26 anos. Isto era tudo novo para mim. Saíamos do ensaio, do La Féria, já havia malta que sabia o que estava a acontecer nas casas de fado. Eu conhecia pouco. E diziam “já sabemos onde a malta dos fados vai a seguir beber uns copos”. E eu lá ia, foi onde conheci muita malta que me ajudou na altura do primeiro disco, o Mário Rainho, o José Luís Gordo, o Paulo Parreira, o Mário Estorninho. Era um sítio chamado Bacalhau de Molho, que ficava em Alfama. Depois íamos para o Berimbar, que era na Lapa, onde se podia comer fora de horas. Ficávamos lá. Aos sábados fazíamos a matiné e a noite. Lembro-me de sair do Berimbar ao meio dia, ir a casa e estar às duas da tarde no teatro.
“Juntávamo-nos para galantear as meninas que saíam da discoteca”
Nesse tempo, o fado tinha todo o protagonismo. Neste disco, tal como nos outros, na verdade, o fado, pelo menos na sua forma mais tradicional, não tem espaço.
Porque ou surge naturalmente ou não surge. As letras que me mandam servem perfeitamente as estruturas de fado tradicional. A métrica permite isso, mas tem que fazer sentido. Tem de ser natural. E tenho de estar para ali virado. E às vezes não estou, às vezes não me apetece. Ou então pode acontecer gravar um fado tradicional, mas tocado de outra maneira.
Somos interrompidos por uma fã, que se aproxima devagar, visivelmente tímida, não o suficiente para evitar o elogio:
“Não quero fazer fotos, posso só cumprimentá-lo?”
“Claro”
“Obrigado pela sua arte”
“Obrigado eu”
Se tivesse seguido sempre pelo fado, obviamente pelo fado…
Como estaria agora? Não sei, isso nunca ninguém saberá. Há malta ligada ao fado que tem uma carreira de sucesso. Principalmente as mulheres.
Gostamos mais de mulheres fadistas do que de homens fadistas?
Será? Não sei… Bom, existiu uma senhora chamada Amália Rodrigues. A grande diva é uma mulher. Já toquei muito no estrangeiro, mas nunca toquei em Itália porque eles não conseguem imaginar um fadista homem. Por causa da Amália. E depois: a Teresa Salgueiro, a Mariza, a Ana Moura, a Carminho… Nos homens, lá fora, há o Carlos do Carmo, mas a carreira internacional da Amália não se compara. Nada se compara à Amália, na verdade.
Quando começou a brincar às canções, não foi por causa do fado, pois não?
Não, foi por causa das canções tradicionais. A guitarra chegou mais tarde.
Para seduzir alguém, ou pelo menos para tentar…
É sempre assim, não é? Para cantar serenatas, claro. Beja tinha uma discoteca grande que se chamava Pandora. Mas também havia a Xerazade, em Moura. Mas a Pandora é que era a grande referência. E lembro-me de uma altura em que nos juntávamos para galantear as meninas que saíam da discoteca. Tirava a guitarra do carro e cantávamos umas serenatas. Para engatar, pronto.
E resultava?
Não tinha sorte. Porque estava a tocar e depois entusiasmava-me. Os amigos que tinha à minha volta aproveitavam-se disso e eu acabava por ser mais a banda sonora de histórias de amor do que protagonista.
Bem comportado, arrumado, quase sempre bom aluno, dava os brinquedos que tinha a mais, cantava canções para os amigos namorarem. Mas depois mudou-se para Lisboa e tudo mudou, foi isso?
Não, manteve-se. Quando vim para Lisboa era casado, já tinha um filho. Entretanto separei-me, aí a coisa mudou um bocadinho.
Fiquei a pensar na Pandora. Dança bem? Gosta de dançar?
Nada, pior dançarino do mundo. Tenho os dois pés completamente surdos.
Não é novidade, mas concentremo-nos neste disco: as canções de amor são as mais importantes. É um homem romântico?
Sou.
E isso quer dizer o quê?
É gostar de histórias bonitas.
Mas e na vida real?
Talvez não seja assim tanto. Sou romântico com a minha mulher, acho que posso dizer isso, mas não muito. Não sou daqueles gajos que oferecem flores a toda a hora, aquelas coisas meio exageradas que acho que ou não existem ou são falsas. Vivo a vida normalmente. Sou um tipo muito normal, mais pragmático. Mas gosto destas histórias, choro com os filmes. Há filmes que vejo milhares de vezes e choro sempre. Há pouco tempo mostrei ao meu filho mais novo o “Forrest Gump”. A história está muito bem contada e a banda sonora é ótima. E eu choro.
É o homem ideal.
Não. Não cozinho.
Porquê?
Porque tenho amigos que cozinham muito bem. E porque a minha avó também, e a minha mãe. Falta isso. Pode ser que tire um curso.
Voltando ao romance neste disco, há mais desgraças do que um “Pica do 7” ou uma “Lambreta”.
Claro. Porque o “Pica do 7” foi escrito por um gajo com 35 ou 36 anos. E este já é um tipo de 43.
E quando escolhe as letras que vai cantar para um novo disco, essa escolha tem a ver com o que está a viver em cada momento, ou não?
Algumas podem ter um lado biográfico. Mesmo se forem escritas por outras pessoas, porque algumas delas conhecem-me. A história do “Catavento da Sé”… quando fiz todos aqueles concertos com o Miguel [Araújo], os últimos foram na minha terra, fizemos lá três. E em Beja levei o Miguel a conhecer a rua da minha avó. E ele fez esta canção. O “Retrato de Bolso”, com letra da Aldina… ela escreveu-a para eu me despedir do meu pai, que morreu no ano passado.
Levar depois isso para o palco, momentos específicos, como esse, não será fácil…
Bom, a morte faz parte da vida.
Mas saber isso isso não ajuda muito, quando chega o momento.
É uma coisa que custa muito e ao longo da vida há sempre lembranças. E as pessoas ficam sempre num sítio à parte. O meu pai, a minha avó, um tio de quem gostava muito e que morreu no dia em que vim viver para Lisboa. No mesmo dia. Por acaso não pude ir ao velório…
Porquê?
Porque estava no exército do Filipe La Féria e não havia família para ninguém.
Disciplina…
Nem era disciplina, era tipo um regime militar. Ao início foi muito complicado. Ele estava a passar uma fase complicada e o “Amália” era o tudo ou nada. Lembro-me de andar a colar alcatifa no chão do Politeama, antes da estreia. Ensaiávamos e depois íamos ajudar a equipa técnica, porque não havia gente suficiente nem dinheiro. Acreditámos todos e ainda bem. Aprendi muito com o Filipe, com a disciplina do teatro. Não aprendi a representar, porque sou um canastrão.
É um canastrão? O que é que isso quer dizer?
Não sou ator. Andava ali… de tal forma que havia um momento em que dava um estalo na Amália. E para aquilo parecer real, na minha cabeça, tinha de lhe dar mesmo. Havia alturas em que ela saía do palco a sangrar. Era muito exagerado. Mas enfim, estávamos a falar de velórios… era o que dizia, a vida é mesmo assim. Por exemplo, no dia em que o meu pai morreu tinha o Coliseu de Lisboa marcado.
Mas não tocou.
Não, tivemos que adiar. Estava tudo esgotado. E tentei resolver isso tudo quando estava a ir de Lisboa para Beja.
“Pedi para parar no início do ano e foi a pior coisa que fiz”
Vai a Beja muitas vezes?
Cada vez menos.
Porquê?
Porque tenho pouco tempo.
Tem pena?
Já tive mais. Continuo a ter lá os meus amigos, encontro-me lá com eles. Temos uma tertúlia habitual, como se fosse o nosso Natal. Somos uns 20 ou 30. No verão, quando consigo ter uma semana, vou estando com eles. Na família, a minha mãe entretanto reformou-se e vem mais vezes a Lisboa. Se calhar já não sinto tanta falta de ir a Beja…
Já agora, o que é “migar a segurelha”, como canta na “Moda Antiga”?
Segurelha é uma sopa. Migar é juntar o pão.
E que sopa é essa?
É de uma erva, não sei bem qual é. Mas isto são coisas do Monge, que é da margem esquerda do Guadiana. Quando fiz essa música foi talvez a última vez em que senti saudades do Alentejo. Há uma parte que canta assim:
“Sei usar o teu chapéu
Se vem a calma de Agosto
As taramelas do céu
Fazem ondas, fazem véu
E deixam o mar no rosto
Agora sou da cidade”
E aí tive saudades. Temos sim.
Quem é da cidade acha sempre o campo muito exótico e romântico.
Às vezes estou aqui e farto-me disto. Tenho vontade de me isolar. Lisboa está a ficar cada vez mais confusa. Tem dias em que sinto vontade de fugir. Construí uma casa em Porto Covo, mas aquilo já se tornou… tem muita gente. O meu filho mais velho está na universidade a estudar Comunicação…
Porquê?
Exato… e já está no segundo ano. Ele gosta. Faz agora 20 anos. Mas a primeira pessoa que lá conheceu foi um rapaz de Sines que tem família em Porto Covo. O meu filho disse que costuma ir muito para lá, que vai lá ter uma casa. Explicou-lhe onde era e o rapaz disse-lhe “então vais ser vizinho do António Zambujo”.
Mas viver em Lisboa é uma vantagem? Para fazer um disco destes, por exemplo?
Talvez. Porque é mais urbano… a verdade é que Lisboa tem os grandes defeitos das grandes metrópoles, mas não tem as virtudes. Obras por todo o lado, muita desorganização, os políticos fazem demasiada propaganda e trabalham pouco. E com o pouco que fazem há sempre muito barulho. Deviam investir a sério, em transportes públicos, tirar daqui os carros. Ouço-os a falar disso há muito tempo mas a verdade é que está tudo muito pior.
Se fizer uma canção sobre isso talvez consiga algum resultado.
Prefiro falar de coisas boas.
Ou más. Histórias de quem quase morre de amor.
Mas isso é bom. Morrer de amor não é bom? É maravilhoso.
Acha?
Então não é? Uma vez uma senhora chamada Ana Vidal escreveu um poema para eu cantar. O final da história era assim:
“E mesmo nesta hora de perder-te
Sabendo que a magia se desfez
Terá valido a pena conhecer-te
E deslumbrar-me ao menos uma vez”
Diz isso agora…
O Pedro Paixão é que diz que a vida é feita de várias mortes, não é? Já morri de amor e tive dificuldade em levantar-me, claro. Sei bem do que falo.
Ainda bem, porque quem ouvir estas canções vai achar isso mesmo, que quem as canta sabe do que está a falar.
Bom, mas a isso também se chama interpretar. “Faz o que eu digo, não faças o que eu faço”. Sou sobretudo um intérprete. Sou um cantor e estou a dar vida à canção. É preciso compreender o poema, interiorizá-lo, saborear as palavras. A Natália Correia dizia que a poesia é para comer. Gosto dessa coisa. Dizer bem as palavras. Aí, o fado ajudou-me muito. É preciso ter cuidado com a forma como dizemos as coisas.
Posto isto, haverá concertos.
Sim, e ainda bem.
Depois daquela maratona de quase 30 coliseus, não ficou cansado de dar concertos?
Nada. Nada mesmo. Pedi para parar no início do ano e foi a pior coisa que fiz.
Quanto tempo?
Dois meses. Foi horrível. Estava super angustiado. Ao fim de duas semanas já não aguentava. A rotina de andar na estrada… às tantas não sabia o que fazer.
Podia ter aproveitado para aprender a cozinhar.
Falou-se nisso…