Índice
Índice
A aliança entre o Partido Socialista e o Partido Comunista surge como uma realidade nova e surpreendente, em aparente contramão com a história do regime político, e até com a história do movimento socialista. De facto, as esquerdas (sem contar o PRD) obtiveram a maioria dos assentos parlamentares em 6 das anteriores 13 eleições legislativas (4 das quais só com PS e PC), sem que alguma vez se tivessem aliado. Daí que esta aliança suscite naturalmente muitas interrogações sobre a lógica e os desígnios, individuais e de conjunto, que lhe estarão subjacentes.
Perante realidades aparentemente novas – assim percebidas apenas pelo contido horizonte das nossas vidas –, é razoável procurar na história e nos clássicos iluminação para interpretar o que surge desapoiado da nossa própria experiência.
A grande divisão entre reformistas e revolucionários
Comecemos por recordar, muito brevemente, que o movimento socialista (designado originalmente de social-democrata), de raízes trabalhistas, e tendo no marxismo a sua principal inspiração ideológica, nasceu no século XIX. No final do século e na sequência de divergências protagonizadas e teorizadas pelo dirigente alemão Eduard Bernstein, o movimento cinde-se em duas correntes: uma revolucionária, que viria a materializar-se nos partidos e nas revoluções comunistas; e uma reformista, que viria a corporizar-se nos partidos da moderna social-democracia e que se constituiu numa das traves-mestras da alargada e pacífica prosperidade vivida pela Europa do pós-guerra, de cujas realizações se destaca o seu invejado “estado social”.
O caminho da corrente revolucionária, por sua vez, materializou os seus propósitos nos regimes comunistas, o primeiro dos quais estabelecido na Rússia pela revolução de 1917, e posteriormente impostos à Europa de Leste, ocupada pelo Exército Vermelho no rescaldo da segunda guerra mundial, e de que os respectivos povos se libertaram logo que puderam escolher livremente os seus governos. Estendidos ainda à Ásia, onde protagonizaram alguns dos maiores terrores infligidos à Humanidade, e de que hoje subsiste apenas o caso chinês – este só nominalmente, porque entretanto convertido ao capitalismo de estado –, e a concentracionária Coreia do Norte.
Ao longo da história europeia do século XX, as duas correntes estiveram quase sempre em antagonismo político, embora com episódicas alianças: nos anos 1930s em França, num cenário europeu politicamente conturbado perante a ascenção dos fascismos e em cenário de pré-guerra, e em Espanha, no cenário conducente à guerra civil; e nos anos 1980s, conduzindo Miterrand à Presidência, mas protagonizando uma experiência económica mal sucedida e que acabaria por levar à quase obliteração do partido comunista francês.
De qualquer forma, desde a implosão da Europa soviética, os partidos comunistas com ela doutrinariamente alinhados desapareceram, reconverteram-se, ou tornaram-se praticamente irrelevantes em toda a Europa, com excepção de Portugal, onde se mantém a fidelidade aos antigos princípios e referências.
A doutrina do “Que Fazer?”
O PC faz parte do regime democrático, mas tem propósitos diferentes. Permanecendo assumidamente marxista-leninista (artº 2º dos estatutos), os seus desígnios na aliança podem ser facilmente perscrutados nos clássicos da doutrina, nomeadamente no seu fundador, Lenine, e na sua mais importante obra orientadora da acção comunista num contexto de “democracia burguesa” – Que Fazer? (1902).
Nesta obra, o autor começa por deixar muito clara a diferença irreconciliável entre socialistas e comunistas: “… não é segredo para ninguém que se formaram duas linhas na actual Social-Democracia internacional. … A essência da ‘nova’ linha, que adopta uma atitude crítica relativamente à ‘obsoleta dogmática’ do Marxismo, tem sido claramente apresentada por Bernstein… A Social-Democracia deve transformar-se de um partido da revolução social num partido de reformas sociais. É negada a possibilidade de colocar o socialismo numa base científica e de demonstrar a sua necessidade e inevitabilidade do ponto de vista da concepção materialista da história. … É negada a antítese de princípio entre o liberalismo e o socialismo. É negada a teoria da luta de classes, na alegada base de que ela não pode ser aplicada numa sociedade estritamente democrática governada pela vontade da maioria, etc.”
As inultrapassadas diferenças programáticas não deixaram, aliás, de ser oportunamente sublinhadas pelos dirigentes comunistas durante o processo negocial da aliança.
Para os que possam pensar que a estranha aliança é tacticamente motivada pela obtenção de cedências económicas, como o relaxamento orçamental, o ícone revolucionário esclarece que, para os comunistas, isso são meros cantos de sereia a que tapam os ouvidos: “Concessões económicas… são, claro, a forma mais barata e mais vantajosa do ponto de vista dos governos, que por este meio esperam ganhar a confiança das massas trabalhadoras. Por esta razão, nós Social-Democratas [entenda-se Comunistas] não devemos, em nenhuma circunstância ou de qualquer modo, dar azo a que se creia (ou se mal-entenda) que atribuímos grande valor a reformas económicas ou que as consideramos particularmente importantes”.
Luta económica e greves políticas
↓ Mostrar
↑ Esconder
Na obra de Lenine escreve-se textualmente que “é nossa tarefa, a tarefa dos representantes progressistas na democracia burguesa, dar à luta económica dos trabalhadores um carácter político”. Compreendem-se agora melhor as recorrentes greves do Metro, aparentemente sem sentido?
A verdadeira chave da motivação subjacente ao parcimonioso envolvimento do PC na aliança é-nos dada mais adiante na citada obra, ao destacar a absoluta importância da mobilização e do controlo político da actividade sindical para o propósito revolucionário, porque, sem esse controlo, “o movimento espontâneo da classe trabalhadora é capaz de criar (e inevitavelmente cria) apenas sindicalismo, e sindicalismo da classe trabalhadora é precisamente política burguesa da classe trabalhadora”. Por isso, “é nossa tarefa, a tarefa dos representantes progressistas na democracia burguesa, dar à luta económica dos trabalhadores um carácter político”. (Compreendem-se agora melhor as recorrentes greves do Metro, aparentemente sem sentido?)
E Lenine explica: “As organizações sindicais, não só podem ser de um tremendo valor para o desenvolvimento e consolidação da luta económica, mas podem também tornar-se um auxiliar muito importante na agitação política e na organização revolucionária. … É apenas natural esperar que para um Social-Democrata [i.e. Comunista] … a ‘organização de revolucionários’ [entenda-se ‘o Partido’] coincidirá mais ou menos com a ‘organização dos trabalhadores’ [i.e. organização sindical]. … [O] nosso primeiro e mais urgente dever é ajudar a treinar revolucionários das classes trabalhadoras… . Atenção, portanto, deve ser dedicada principalmente a elevar os trabalhadores ao nível de revolucionários; não é nossa tarefa descer ao nível das ‘massas trabalhadoras’…”.
Por conseguinte, o PC, reconhecendo que “tem como base teórica o marxismo-leninismo …” e que é contrário “à revisão oportunista dos seus princípios e conceitos fundamentais” (artº 2º dos estatutos), entende, de acordo com essa base, que o almejado regime ideal só se atinge pela via revolucionária, e que para a concretização desta é fundamental ter o controlo político do movimento sindical e a capacidade da sua mobilização efectiva para a agitação política e social.
O objectivo central: impedir a concessão dos transportes públicos
Neste contexto, sabendo que a anunciada concessão a privados dos transportes urbanos de Lisboa e Porto seria uma poderosa machadada nessa capacidade – de cuja substância os sindicatos dos transportes são uma peça fundamental –, e aproveitando a alteração da correlação de forças parlamentares resultante das últimas eleições, o PC estabeleceu como objectivo absolutamente prioritário a inviabilização daquele processo, e que para isso seria necessário evitar a todo o custo a renovação do governo da anterior maioria, nem que para tal tivesse que pagar alguns trocos políticos.
Este é, portanto, o desígnio fundamental do PC ao entrar na referida aliança, cujo único objectivo concreto, explícito e claro, é a inviabilização do governo PSD/CDS. Por outro lado, ao favorecer com essa aliança a radicalização do PS e o aprofundamento da ressentida clivagem que se tem vindo a abrir entre este e o PSD – cujo entendimento tem constituído o esteio fundamental do regime político – espera conseguir ainda um importantíssimo bónus, cereja no topo do bolo: a descaracterização da UGT e a consequente desvitalização da Concertação Social – de que esta central tem sido um importante pilar –, transferindo a luta sindical das instâncias sociais para as instâncias políticas. Mais uma vez, como Lenine explica: “A consciência de classe só pode ser levada aos trabalhadores a partir de fora, isto é, só de fora da luta económica, de fora das relações entre trabalhadores e empregadores. … [T]emo-nos curvado demasiado servilmente à ‘luta económica dos trabalhadores contra os empregadores e o governo’.”
A este propósito, não será talvez por acaso que o penúltimo número (Set/Out) da revista do PC, o Militante, traga um artigo recordando a “unicidade sindical”, processo pelo qual o PC procurou garantir, por via legal, o controlo político do movimento sindical, e que o PS (com Salgado Zenha na frente dessa luta) inviabilizou. O artigo recorda a importância revolucionária desse objectivo, pois que, “para o PCP, e para os militares revolucionárias, os trabalhadores e restantes forças e homens e mulheres de esquerda realmente comprometidos com a Revolução, era absolutamente necessário preservar e consolidar de imediato a unidade do movimento sindical como forma de também se garantir a unidade na acção, para que os trabalhadores pudessem ser uma força determinante na aliança Povo-MFA”. E lamenta que “para o avanço da contra-revolução o PS e restantes partidos à sua direita tinham de quebrar a grande força unida dos trabalhadores. Tinham de os dividir. E para os poderem dividir mais rapidamente tinham de combater a unicidade”.
De facto, a 16 de Janeiro de 1975, “o PS realiza um comício de contestação à unicidade no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa, em que discursam Zenha e Soares. ‘Pela primeira vez, desde Abril de 74, o PS afrontava claramente o MFA como ‘aliado objectivo’ do PCP’, diz Mário Soares”.
E, como bem conclui o autor do artigo, “[e]sta foi a razão fundamental que acabou por transformar a questão da unicidade numa grande batalha política durante os últimos meses de 1974 e o primeiro semestre de 1975.” Passo fundamental para o fim do PREC e para a normalização democrática do regime, pois que, como se queixa o artigo (na sua linguagem própria),“[t]em raízes aqui a aliança do PS com toda a contra-revolução. Aliança que teve um impulso de ruptura do PS com a Revolução nas provocações urdidas e protagonizadas por Mário Soares no 1.º de Maio de 1975, prosseguindo durante o «verão quente», com a exigência de demissão do Primeiro-ministro Vasco Gonçalves. E um primeiro desenlace, de viragem à direita, com o golpe militar do 25 de Novembro.”
E remata: “Mas o projecto divisionista, institucionalizado com a criação da UGT no final de 1978, apesar das poderosas forças políticas e económicas que o apoiaram, nunca viria a passar de um arremedo de ‘central sindical’ … A batalha da unicidade valeu a pena porque permitiu que os trabalhadores e o movimento sindical tivessem tido um papel decisivo no processo revolucionário”. Ou seja, o objectivo da unicidade sindical, sem UGT e politicamente controlada, bem como os seus propósitos revolucionários, continuam vivos.
O desígnio do PC na aliança com o PS – impedir a desvitalização de um braço fundamental da acção política da Intersindical (quase só confinada ao sector público) e, supletivamente, neutralizar a UGT (ressuscitando a sua “unicidade sindical”) e a Concertação Social (de que sempre foi opositor), transferindo a luta sindical para o campo político (Lenine dixit) – é perfeitamente claro. Quanto ao resto, a vacuidade programática da “posição conjunta” é mais uma vez explicada pelo mestre da doutrina: “Queremos ter as nossas mãos livres para empreender uma luta irreconciliável contra todos os pseudo-Social-Democratas”.
Uma aliança simbolicamente negociada na sede do PC e não do PS
Se concretizado em toda a sua extensão, este desígnio, além de historicamente retrógrado, terá nefastas consequências para a economia e a sociedade, dificilmente reversíveis: aumentará a conflitualidade social e política, estreitando o espaço da acção democrática e, consequentemente, dificultando a governabilidade do País; e aumentará a rigidez da economia, podendo vir a tornar impossível a permanência no euro.
Na sua versão minimalista – reversão das concessões – a concretização está praticamente assegurada, apenas com a inviabilização do que parecia ser o “governo natural” resultante das eleições. Mas, se por qualquer rebuço de última hora, nomeadamente por razões orçamentais, esta versão acabar inviabilizada, então também o ficará o governo do PS. De qualquer forma, este objectivo praticamente esgota o poder negocial do PS sobre o PC, pelo que, uma vez concretizado, este ganha a vantagem negocial e deixa de ter incentivos para apoiar o que quer que for que não seja nos seus próprio termos.
O que deixa totalmente obscurecido qual poderá ser o desígnio do PS numa aliança, que surge ao arrepio da a sua história do pós-25 de Abril, que se atravessa no caminho europeu em que Portugal apostou o seu devir pós-imperial, e que, mais cedo do que tarde, o irá confrontar com a incapacidade de governar. Para vencer esta obscuridade, a história não dá pistas.
Se recordarmos os principais marcos de separação de águas, que se tornou definidora do regime e deu lugar ao controverso conceito de “arco da governação”, foram todos protagonizados pelo PS, na linha doutrinária aberta por Bernstein, e de que recordo: i) o Congresso do PS de Dezembro de 1974, que derrotou a linha revolucionária, protagonizada por Manuel Serra (que, ainda assim, obteve 44% dos votos, mas acabou por deixar o partido e aliar-se ao PC na FEPU), e que acabou por eleger Mário Soares, graças à decisiva intervenção de Manuel Alegre; ii) o comício de 16 de Janeiro de 1975, que inviabilizou a “unicidade sindical” sob o comando da Intersindical (e o controlo do PC); iii) a demarcação de Mário Soares no comício do 1º Maio de 1975; iv) o comício da Fonte Luminosa, a 19 de Junho de 1975, considerado o momento decisivo para a inversão do caminho revolucionário seguido pelo PREC; v) o 25 de Novembro; vi) as escolhas políticas feitas pelo PS, quando minoritário e poderia ter constituído maiorias parlamentares com o PC: 1978, II Governo Constitucional; 1983, IX Governo (bloco central); 1995 e 1999, XIII e XIV Governos; 2009, XVIII Governo; e vii) Mário Soares que, em 1986, tendo o seu futuro político em risco, preferiu arriscá-lo a negociar com o PC o indispensável apoio à sua candidatura presidencial.
Vista assim à luz da História, esta aliança (que, simbolicamente, foi negociada na sede do PC e não do PS) parece representar uma mudança da natureza do PS, e como que o resgate da derrota de Manuel Serra no Congresso de 1974. Se assim for, a estrutura interna do regime é alterada, a Constituição (cujas 7 revisões o PC nunca aprovou) fica definitivamente congelada, e o 25 de Novembro é revertido (ironicamente, quando era devida a celebração dos seus 40 anos!).
Intenção ou imprevidência, desvio de obras ou nova rota, são as dúvidas que persistem.
15 de Novembro de 2015