Venceu o Vista Curta e vários prémios no IndieLisboa. Ganhou em Clermont-Ferrand, Guadalajara, Los Angeles. E esteve perto de conseguir a nomeação para o Óscar de Melhor Curta Metragem com Um Caroço de Abacate. O nome era desconhecido no meio cinematográfico português, até ter integrado a shortlist dos prémios de Hollywood (a lista prévia dos potenciais nomeados, que tinha sido revelada em dezembro do ano passado). Quem é Ary Zara, que muitos meios internacionais dizem ter sido o primeiro cineasta trans a ser pré-selecionado pela Academia nesta categoria? É o que desvenda nesta entrevista.
Quem pesquisar Ary Zara no futuro encontrará para sempre as notícias referentes a esta quase-nomeação. Isso cria pressão ou entusiasmo para o que vem a seguir?
Cria um pouco de pressão, obviamente. Como artista, continuo a ter as minhas inseguranças. Esta relação que temos com a expectativa, sobre o que é esperado do nosso trabalho, obviamente que existe. Mas o entusiasmo vai ser sempre maior. O facto de, para sempre, os Óscares ficarem associados ao meu caminho, sinto que me traz uma abertura de outras portas. Acredito também que, se calhar, outra facilidade no acesso. Em última análise é uma coisa super, hiper, mega positiva.
Nasceu em Lisboa em 1986, começou por ser bailarino, mas acabou a estudar Cinema, na Universidade Lusófona. Quando é que o interesse pelo cinema surge?
O cinema surge seguindo os passos do meu irmão, Tiago Leão. Eu gostava muito de escrever, então aconselharam-me a ir para jornalismo. Estive um ano na ESCS (Escola Superior de Comunicação Social) e correu pessimamente, percebi que não era aquilo que queria fazer. Na minha altura havia assim aqueles calhamaços dos cursos, a minha mãe deu-me essa enciclopédia e disse: “bem, vais ter que escolher um”. Não conseguia escolher nada, estava numa fase em que também não sabia quem é que era, o que é que queria, que mundo é este, tinha uma data de questionamentos. Como tinha o meu irmão perto e via que ele realmente gostava do curso… Parecia ser assim uma cena super dinâmica, criativa.
Após a licenciatura foi para os Estados Unidos, em 2011, com uma bolsa de escrita para produção narrativa, escrita de televisão e introdução ao argumento na Universidade do Texas, em Austin. Do que foi à procura?
Ia à procura de mais de formação, principalmente esta, que era muito direcionada para a escrita. E era a ideia de aventura, aquela ideia que temos de que lá fora é que é, é que se aprende e que depois quando voltamos as pessoas vão olhar para nós de forma diferente. Ia assim um pouco deslumbrado com o que os Estados Unidos poderiam trazer. Voltei completamente desiludido…
Desiludido com o que encontrou lá fora ou com o que encontrou quando voltou?
Sentia de maneira muito ingénua que por estudar fora seria depois mais fácil para mim entrar no mercado. Quando estava a terminar o último mês lá comecei a enviar o meu currículo. Fui mesmo a um diretório e enviei o meu currículo para todas as produtoras de Portugal. Todas. E nenhuma não me respondeu de volta. E aí percebi que as coisas não eram bem como eu imaginava na minha cabeça. Que a indústria não se movimentava da maneira ingénua que eu achava que sim. Quando cheguei, como já tinha saído de casa, trabalhei a vender seguros pelo telefone. Depois comecei a trabalhar como barman no Trumps, a discoteca no Príncipe Real.
Disse que “em 2018, tinha já desistido de fazer cinema” e que foi quando começou a fazer a sua transição de género que ganhou “uma nova slot de coragem para tentar mais uma vez”. Fazer este filme foi um ato de coragem?
Não sei se foi mais um ato de coragem ou de desespero, se calhar é uma mistura dos dois. Já estava há muito tempo a trabalhar à noite, fazia três noites por semana, depois tinha também trabalho durante o dia, a editar conteúdos aleatórios, sazonalmente trabalhava com o Filipe La Féria. Mas sentia sempre um vazio, uma coisa que nunca conseguia preencher. Por mais criativo que fosse o trabalho, por mais desafiante, por mais divertido, tinha sempre um vazio dentro de mim. Percebi mesmo que tinha que voltar a escrever. Tinha que tentar, tinha que tentar outra vez. Foi desespero misturado com coragem. Coragem no sentido de nos propormos a sonhar, sabendo que a queda pode ser sempre enorme. Mas quando não é, é maravilhoso.
Quando volta a escrever, esta história surgiu logo?
Não, esta história não surge logo assim de caras. Tinha um script que comportava esta história misturada com outra, era quase como duas narrativas paralelas de uma noite em Lisboa. Depois com o trabalho de script e com a necessidade que sentia de aprofundar ambas as histórias, percebi, em conjunto com a Andreia Nunes — que foi a produtora que me acompanhou desde o dia zero — que não iria funcionar, que teria que optar por uma das narrativas. Optei por aquela que me era mais próxima, que era a que tinha a personagem trans.
Uma crítica do Letterboxd (rede social para cinéfilos) descreve este filme como “um Antes do Amanhecer (1995, Richard Linklater) para pessoas LGBT”.
Não gosto muito de comentar críticas. Cada pessoa retira coisas muito particulares do filme. Já tive pessoas que viram o filme e que não conseguiram compreender o assunto da transição e que acharam só lindo porque era uma mulher e um homem que se apaixonam em Lisboa porque o amor é tão lindo. E a transição escapa completamente ao assunto. E há pessoas trans que ficam na plateia a chorar e têm dificuldade em comunicar no final. É um filme que se adapta a diferentes corações, digamos assim.
Falou na importância da produtora. Depois da tal primeira abordagem a produtoras, após a formação, desta vez foi fácil chegar a estruturas e conseguir financiamento?
Não, não foi de todo fácil. Comecei a experimentar um pouco do ambiente de publicidade, para perceber se gostava ou não, e odiei, mas ainda assim conheci algumas pessoas. Então quando tive este guião, primeiro apresentei-o a uma produtora, que me disse: adoramos, queremos filmar daqui a um mês. Depois fui à Take it Easy, porque tinha a referência da Andreia dos meus tempos da faculdade, e ela, depois de ler o meu guião, disse: “excelente, mas precisa de trabalho”. Então decidi ficar com a Andreia e com a Take it Easy. Foi em 2018, começámos a trabalhar, candidatámo-nos ao ICA (Instituito do Cinema e do Audiovisual) em 2019 e 2020, e perdemos sempre. Só que o ICA faz a distribuição do dinheiro e, quando sobra um pouco, dão a uns projetos que tinham na grelha a seguir. E foi o que aconteceu. Ficámos com cinco mil euros do ICA para fazer o filme. Que obviamente não era suficiente, só que em 2009, com o meu filme académico, na faculdade, ganhei dois prémios. Na altura era o Prémio Zon, e eu ganhei duas categorias de uma vez, que correspondia a 100 mil euros.
Guardou esse dinheiro desde essa altura?
É. Desde 2009 que guardei esse dinheiro numa conta sabendo que só o iria usar em cinema, e quando acreditasse naquilo que iria fazer. Acabo por ser produtor executivo do Abacate, porque praticamente 90% do investimento é meu no filme.
Os protagonistas do filme são Gaya de Medeiros, naquele que é o seu primeiro papel enquanto atriz, e Ivo Canelas, um ator já consagrado. Como chegou a cada um? E porquê juntar uma dupla com experiências tão díspares?
A Gaya conheci na discoteca. Eu estava a fazer luzes durante a noite inteira e a Gaya na altura performava como drag queen. Encontravamo-nos sempre no camarim, que era colado à minha cabine e ao palco. Falávamos imenso, a debater sexualidade, género, coisas aleatórias, e fomos criando uma relação. À medida que fui devolvendo o guião e conhecendo a Gaya, pensei que ela era uma pessoa super interessante. Conheci a Gaya quando ela iniciou o seu processo de afirmação de género, portanto, foi uma relação que ainda teve algum tempo. E depois comecei a sentir que a Larissa com ela ia crescer imenso. Adaptei todo o guião para a voz da Gaya que tinha na minha mente.
E o Ivo Canelas?
Foi uma escolha super estratégica. Era a minha primeira curta-metragem, era a primeira curta-metragem também da Gaya. Sentia que nós precisávamos realmente de uma pessoa super experiente que nos enraizasse. Uma espécie de guia, uma pessoa em que pudéssemos confiar neste quadro artístico. O Ivo tem um trabalho fortíssimo. Eu estava com muito medo porque ao mesmo tempo que é um sítio de enraizamento, é uma diferença grande de experiência. Como é que eu vou dirigir este monstro da atuação? Como é que nos vamos ligar? E acabou por fluir super. No primeiro encontro que tivemos as três pessoas deu logo para ver que ia correr bando.
[o trailer de “Um Caroço de Abacate”:]
O filme começa com Larissa, uma mulher trans, a descer a Almirante Reis de bicicleta. Depois chega ao Conde Redondo, zona historicamente associada à prostituição em Lisboa. Mas ao contrário do que poderia ser porventura expectável para o espectador, ela não é uma trabalhadora do sexo. Vai ajudar as mulheres que lá trabalham, distribuir preservativos. O objetivo era beber os clichés que existem sobre mulheres trans e tentar contrariá-los?
Consigo perceber que não é evidente no filme que ela não é uma trabalhadora do sexo. Lemos imensas críticas em que dizem que sim. Depois tenho de enviar e-mails a explicar…
Para si é óbvio que ela não é.
Sim. Um Caroço de Abacate faz isso mesmo, vai buscar clichés e mostra outro ângulo da mesma história. E se isto agora for visto por aqui? E se esta pessoa que vocês estão habituados a ver de uma forma, e que até parece que está a fazer isto, afinal for uma coisa diferente? É também para percebemos de que forma é que estas ideias que temos do que nos passam os media, o cinema, de que forma é que elas consomem a possibilidade de existir uma coisa diferente. Temos uma personagem num filme que diz três vezes que não é uma trabalhadora do sexo e chega-se a uma crítica e está lá escrito: trabalhadora do sexo. Não é uma crítica à profissão, não tem nada a ver com isso. Existem muitas mulheres trans que são trabalhadoras do sexo e é muito óbvio o porquê. Mas depois há tantas outras que não são. Temos sempre que contemplar mais do que uma possibilidade.
Falando precisamente de possibilidades, uma das notas que tem sido feita ao filme é o facto de retratar uma história da comunidade LGBTQ sem ser sobre tragédia. Há um desejo de falar de outros assuntos que não a morte ou a dor?
Claro que sim. Acredito que a violência gera violência. Não me parece que seja muito útil continuar esta repetição de narrativas. Acredito, e tenho assistido também a uma onda de pessoas que criam que têm esta preocupação, em trazer algum transjoy (“felicidade trans”, em tradução livre). E não é transjoy no sentido de ficcionar um futuro, mas no sentido de mostrar que dentro da realidade que já existe há histórias bonitas. Temos que fazer esforço e pressão para as contar, para que elas cheguem a mais pessoas, para que entrem em mais universos. E para que passe a ser cada vez mais real. Pode ser uma ideia utópica, a de que através de mostrar algo positivo se gere algo positivo, se alterem mentalidades, se consiga olhar para as nossas histórias, para as nossas pessoas, de formas diferentes. Se continuamos sempre a repetir as mesmas coisas caímos aqui num sítio perigoso. Temos de mostrar as nossas vidas da maneira mais plural possível. O cinema está a precisar de qualquer coisa diferente.
Há um momento no filme em que a personagem de Cláudio diz: “Sabes que eu acho que não é tara”. E a Larissa responde: “Mas também não é amor”. O filme reconhece o espírito aventureiro do prazer, mas compreende que o amor e o afeto são mais profundos.
Duvidei muito de como isso seria audível. Uma coisa é quando está escrito, mas quando é dito… Quando ouvi as primeiras vezes pensei se não era lamechas demais [risos]. Duvidei muito. Mas ainda assim decidi manter o que tinha escrito no guião. Porque realmente conseguimos ver que o Cláudio é um personagem que muda, faz uma pequena avaliação depois da presença com a Larissa. Vê possibilidade para pensar uma narrativa nova em relação a ela e a ele também, aos seus desejos, à sua sexualidade. Por outro lado, a Larissa está numa fase em que já passou por aquilo tudo que o Cláudio está a passar. Já se olhou, já se questionou, já se encontrou. Consegue reconhecer o que está a acontecer com ele. Quando ela lhe diz isso não está à espera, obviamente, que daquela noite vá nascer amor. Consegue perceber que na fase em que ele está ela ainda vai ter que o apoiar muito, que se vai magoar. Não é só dar a mão e sair agora à luz do dia e passear pela Rua Augusta. Ela responde a isso como se soubesse que há outro amor para ela.
Nos créditos deste filme faz agradecimentos especiais a todas as “mulheres trans e mulheres travesti e em particular à Maria João Vaz”. Que importância teve a Maria João?
Tinha escrito uma cena no filme para a Maria João que acabei por não utilizar no filme. Não estava em questão o papel, era mais a minutagem que tinha do filme, que com a cena comecei a sentir que [o filme] ocupava um sítio que me tirava a atenção do foco principal. Então optei por não usar essa cena com a Maria João.
Um Caroço de Abacate começou a sua caminhada para o sucesso no Festival IndieLisboa, em 2022, onde ganhou três prémios. Depois, foi distinguido em vários festivais internacionais e ainda antes de ser anunciada a shortlist para os Óscares, o ator canadiano Elliot Page juntou-se ao projeto como produtor-executivo. Como é que isso aconteceu?
O Elliot é amigo de uma artista incrível que estava a fazer a curadoria de um programa dentro do festival Outfest, em Los Angeles. Quando ela se deparou com a minha curta, falou com o Elliot e disse-lhe: tens que ver este filme. O Elliot viu a curta-metragem e enviou-me uma mensagem no Instagram a dizer que tinha visto e a apontar tudo o que tinha gostado, assim uma crítica super genuína, pontual e incrível. A partir daí começámos a ter uma comunicação esporádica. Depois, quando se deu esta oportunidade de tentar fazer a shortlist, as minhas publicists da London Flair perguntaram-me se conhecia alguma pessoa influente. Mencionei que não conhecia, mas que este contacto tinha acontecido. Disseram-me para tentar abordar o Elliot e perceber se ele teria interesse em ajudar a trazer a visibilidade ao filme. Não gosto nada de ocupar este lugar, de pedir, de abordar. Tenho sempre muita timidez. Não gosto de incomodar as pessoas, de chatear. Mas percebendo também a dimensão da coisa, pensei: vamos tentar, o não é garantido. Enviei um e-mail ao Elliot que prontamente me disse sim e desde então temos construído este caminho em conjunto.
Elliot que entretanto veio a Portugal e estiveram juntos, segundo vimos nas redes sociais.
Esteve, esteve.
A Larissa, protagonista de Um Caroço de Abacate, dirige-se sempre aos outros como “guerreiro” ou “guerreira”. O cinema é uma luta?
Não vejo como uma luta, mas é difícil, principalmente residindo em Portugal. É realmente complicado e desafiante conseguir financiamento se pensarmos na ótica portuguesa. Mas é uma arte que me move bastante. Desde a ideia, aos tempos de escrita, os desafios, os questionamentos. É difícil de explicar, porque sofro muito a escrever. Mas é um caminho que me desafia muito, que me causa muita frustração, que causa também depressão. Mas, por outro lado, também me dá uma intensidade lá para cima absurda. É muito montanhoso. Mas não vejo bem como luta, essa coisa do ganhar, do perder. Para mim o processo de escrever e fazer um filme é sempre ganhar.
Meios internacionais apontam que este é o primeiro filme realizado por uma pessoa trans a estar na shortlist nesta categoria. O sublinhar das primeiras vezes têm importância?
Sim e não. Não é importante para mim no sentido do “Ary ser o primeiro”. Não gosto nada desse tipo de pioneirismo. Não gosto disso porque isso vira o assunto para a pessoa. Mas é importante que se refira porque reflete a falta de acesso. O facto de em 2024 ser a primeira vez que uma pessoa trans, ou uma pessoa negra, faz algo… Isso é importante de ser referido, porque isso a última análise faz com que consigamos questionar a instituição, o meio, e perceber a falta de acessos. Não acho útil virar para um nome ou um questão pessoal. Não tem a ver com o Ary. Devia ser uma coisa maior e sempre ser comunicada como isso. Obviamente quando entramos no posicionamento de um filme, entendo que se tenha de virar para uma pessoa e tenho de aprender a gerir e a aceitar. Mas não acho que seja a parte relevante. Não interessa se sou eu ou não. Nunca ouvirão da minha boca que fui o primeiro.
O que é relevante? O que espera que o filme possa fazer?
O que espero do filme é o que ele já fez. Começámos este filme com zero preocupação em relação a festivais, a prémios. Jamais tivemos uma conversa sobre Óscares no momento em que o pensámos. Foi somente um filme feito para contar uma história com uma pessoa trans que não fosse violenta e que pudesse chegar ao máximo de pessoas possível. Que as pessoas possam ver, ter acesso, que possam reconhecer-se e que possam ver este novo ângulo. O filme já cumpriu. Só o facto de ter sido shortlisted e deste buzz todo que se criou nos media, muitas pessoas vão procurar o filme e ele vai circular agora. Então, isso está feito!