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O cenário é Nova Iorque, mais precisamente Manhattan nas décadas de 1960/70, e mais precisamente ainda as ruas e salões onde se movimentavam as divas da alta sociedade da época. Entre as mulheres mais ricas e elegantes daquele microcosmos havia um homem: Truman Capote, o escritor, amigo e confidente com quem durante anos partilharam o brilho das suas luxuosas vidas, mas também as sombras das suas mágoas. Capote chamava-lhes os seus “cisnes” e viria a atraiçoá-las ao revelar os pormenores obscuros das respetivas vidas num texto publicado na revista Esquire, embora sob nomes fictícios, numa espécie de conto. Os cisnes revoltaram-se contra o amigo e fizeram-lhe o pior que lhe poderia acontecer, excluíram-no do seu círculo e levaram o autor, já prestigiado na altura, a uma espiral de autodestruição. A série “Feud: Capote Vs The Swans” conta esta história ao longo de oito episódios e chega a Portugal a 7 de fevereiro, na HBO Max.
O que sabemos sobre a série “Feud: Capote Vs The Swans”
Ryan Murphy e Jon Robin Baitz produziram a série e o segundo ficou também encarregue de escrever os oito episódios. Gus Van Sant é o realizador que conduziu Naomi Watts, Diane Lane, Calista Flockhart, Chloë Sevigny, Demi Moore, Molly Ringwald e Tom Hollander.
Um leque de divas da representação dá vida aos “cisnes”, todo o ambiente dos cenários aos figurinos assume um papel fundamental e só falta mesmo sentir o cheiro dos perfumes destas mulheres para hipnotizar o espetador. A série teve como ponto de partida o livro “Capote’s Women: A True Story of Love, Betrayal, and a Swan Song for an Era”, de Laurence Leamer, lançado em 2021, e para quem não conhecia esta história real que assenta na perfeição no argumento de uma série, vamos descodificá-la, dos protagonistas à polémica, passando pelo restaurante da vida real onde a ação acontece.
Os dois primeiros episódios ficam disponíveis a 7 de fevereiro e os restantes seis vão estrear semanalmente a partir daí. Esta é a segunda temporada da série Feud. A primeira, de 2017 e também da autoria de Murphy, contou a história da rivalidade entre as atrizes Joan Crawford e Bette Davis, interpretadas por Jessica Lange e Susan Sarandon, respetivamente.
Quem são os “cisnes” de Truman Capote
Tom Hollander veste a pele Truman Capote (1924-1984), com a sua característica voz e maneirismos. O autor consagrado nasceu em Nova Orleães e ficou conhecido por diferentes trabalhos, por exemplo a obra de investigação de crime “Cold Blood” (1966), o romance “Breakfast at Tiffany’s”, mas também escreveu guiões e peças de teatro. Quando entrou no círculo de damas da alta sociedade novaiorquina já era ele próprio uma figura da cena social, um meio para o qual vivia. “Para Capote, um cisne era a personificação do glamour sofisticado num mundo pós-guerra”, escreveu Laurence Leamer, e acrescenta que o autor deveria ter “não mais de 12 mulheres que ele considerava verdadeiros cisnes”.
Capote organizou em 1966 o famoso The Black and White Ball no hotel Plaza. O evento tornou-se lendário e foi um daqueles onde toda a alta sociedade quis ser vista, sem descurar o dress code em branco ou preto e com máscaras a condizer. Há todo um episódio nesta série dedicado à festa.
Coube a Naomi Watts interpretar Barbara “Babe” Paley — de todos os “cisnes” seria aquele com uma relação mais íntima com Capote. O autor dizia da amiga que ela “só tinha um defeito: ser perfeita”. Barbara Cushing nasceu em Boston, era filha de um reconhecido neurocirurgião e tinha duas irmãs mais velhas, que casaram com homens cujos apelidos denunciam a sua influência, uma com Vincent Astor, outra com James Roosevelt (filho do Presidente). Em 1938, Babe já vivia em Nova Iorque quando se tornou editora de moda na revista Vogue durante 10 anos. Em 1941 a Time considerou-a a segunda mulher mais bem vestida do mundo, só superada pela duquesa de Windsor, Wallis Simpson, e viria a integrar listas como esta durante anos a fio.
Casou com Stanley Grafton Mortimer Jr. em 1940, um executivo de publicidade e desportista da elite da costa este, e tiveram dois filhos. Divorciaram-se seis anos mais tarde e Babe casou com William Paley, um filho de imigrantes ucranianos judeus que era chefe executivo da cadeia de televisão CBS, com quem teve mais dois filhos. Babe deixou a Vogue e tornou-se socialite a tempo inteiro e mestre na arte de bem receber e manter a sua graciosidade. Era famosa pela sua beleza, estilo e por estar no topo da hierarquia das mulheres influentes de Nova Iorque. O casal Paley tinha um apartamento no hotel de luxo St. Regis, na 5ª Avenida, uma morada que as séries e filmes nos ensinaram ser apenas para a elite, tal como a casa de fim de semana em Long Island. A série retrata a vida de casados distante e as constantes infidelidades do marido de Babe, assim como a luta da diva contra um cancro do pulmão durante quatro anos, que a viria a matar em 1978, quando tinha 63 anos. A mestre de cerimónias planeou todo o seu próprio funeral e a distribuição das suas joias.
Slim Keith era outro dos cisnes de Capote e na série é interpretada por Diane Lane. Nasceu Nancy Gross na Califórnia em 1917 e em origens humildes. O físico atlético facilitou-lhe o acesso a uma carreira de modelo, aos 22 anos foi capa da Harper’s Bazaar e isto, por sua vez, abriu-lhe as portas da moda e das listas de mulheres mais bem vestidas. Casou três vezes, primeiro com o produtor de cinema Howard Hawks, a quem terá sugerido que Lauren Bacall seria uma boa colega para Humphrey Bogart num filme, conta a Tatler. O segundo marido foi o produtor da Broadway Leland Hayward e o terceiro foi o aristocrata britânico Sir Kenneth Keith, com quem esteve casada 10 anos e se tornou Lady Keith. “Slim” movimentava-se tanto no habitat das estrelas de Hollywood como da elite de Nova Iorque e viria a morrer com 72 anos de cancro no pulmão. Foi uma das amigas do círculo íntimo de Capote que cortou relações com o escritor depois da publicação de “La Côte Basque 1965”.
Lucy Douglas Cochrane nasceu em 1920, mas o irmão tratava-a por Sissy e rapidamente ganhou a alcunha de C.Z. para o resto da vida e é assim que a série chama a sua personagem, encarnada por Chloë Sevigny. Filha de um banqueiro de investimentos, a bela loira cresceu numa vida confortável. Desde pequena que se interessava por jardinagem, e quando em 1976 teve um acidente de cavalo que a deixou imobilizada escreveu o livro “First Garden”, com ilustrações de Cecil Beaton e prefácio de Truman Capote. Também escreveu uma coluna sob o tema em jornais, lançou um livro para crianças “Tiny Green Thumbs” e ainda fez um repelente para insetos com aroma, segundo revela a Tatler.
Em 1947 C.Z. casou-se com Winston Frederick Churchill Guest, primo do famoso primeiro-ministro britânico, campeão de polo e herdeiro de uma fortuna do aço, passou a ser conhecida por C. Z. Guest e tiveram dois filhos. A cerimónia teve lugar na propriedade do autor Ernest Hemingway em Cuba e o próprio foi padrinho. Antes tinha trabalhado no mundo do espetáculo, chegou a atuar na Broadway em 1944 e a estudar durante seis meses na escola dos estúdios da 20th Century Fox em Los Angeles, mas nunca teve o objetivo de abdicar da sua vida privilegiada por uma carreira no cinema. Tornou-se antes uma senhora da alta sociedade novaiorquina, mas com uma vida social de nível internacional, uma vez que o casal Guest caçava com o Maharajá de Jaipur e convivia com os duques de Windsor, padrinhos das crianças Guest, conta a revista britânica.
A socialite é uma referência de um estilo desportivo luxuoso e discreto praticado pelas elites ainda hoje, mas também brilhava com o lado mais sofisticado da moda quando vestia as saias rodadas com cintura apertada que o New Look de Dior impôs. Foi impulsionadora da carreira de Oscar de la Renta e desenhou uma linha de camisolas de caxemira. A beleza e graciosidade de C.Z. ficaram eternizadas em inúmeras fotografias de Slim Aarons com a piscina da sua casa em Palm Beach como cenário. Também foi musa de outros artistas, como Cecil Beaton, Andy Warhol, Salvador Dalí e Diego Rivera até a pintou nua. C. Z. Guest morreu na sua casa de Nova Iorque aos 83 anos e no que toca a Capote, mantinha uma amizade e não foi dos “cisnes” mais magoados pela prosa do autor.
Caroline Lee Bouvier viria a ficar conhecida como Lee Radziwill. Embora a irmã mais velha tivesse sido a primeira dama Jacqueline Kennedy, Lee era uma celebridade em nome próprio. Ambas as irmãs nasceram em Nova Iorque, filhas do corretor de bolsa John Vernou Bouvier III e da socialite Janet Norton Lee, numa das famílias da elite da cidade. Lee tentou uma carreira como atriz, mas não teve sucesso, e depois experimentou também ser decoradora de interiores.
Casou três vezes. Primeiro, em 1953, com Michael Temple Canfield, um executivo de publicidade. Divorciaram-se ao fim de cinco anos e o casamento foi anulado. Foi com o segundo marido que ganhou o título de princesa e uma morada em Londres, bem perto do Palácio de Buckingham. O príncipe Stanislaw Albrecht Radziwill era um aristocrata polaco com quem casaria em 1959. Tiveram dois filhos e separaram-se em 1974. Lee e Capote conheceram-se num almoço em nova Iorque em 1962 e ele terá percebido logo ali que, apesar da vida recheada da socialite, ela estava “tão consumida de inveja pelo lugar da irmã na Casa Branca que se tinha tornado uma doença”, conta Laurence Leamer.
Escreve a Tatler que teve um romance com Aristóteles Onassis antes do armador grego se tornar o segundo marido da sua irmã. Em 1998 casou pela terceira vez e o escolhido foi Herbert Ross, realizador de cinema e do sucesso “Footloose” e coreógrafo, mas este casamento também viria a acabar em 2001. Lee morreu em 2019 aos 85 anos no seu apartamento em Nova Iorque. Na nova série de Ryan Murphy cabe a Calista Flockhart (sim, a Ally McBeal) interpretar Lee Radziwill.
Ann Woodward era uma “showgirl” quando, em 1943, casou com William Woodward Jr, herdeiro de uma fortuna ligada à banca. Em 1955 matou o marido a tiro na casa de ambos porque tê-lo-á confundido com um intruso e, embora não tenha sido indiciada, o círculo da alta sociedade fez seu próprio julgamento e excluiu-a. A história também chegou ao texto que Capote publicou na Esquire, mas com um nome fictício, e o autor contribui para o rumor de que a morte foi propositada. Em 1975 (ano da publicação do texto) Ann Woodward matou-se com cianeto. Embora não fosse um dos “cisnes” de Capote, Demi Moore garante que esta personagem não passa despercebida na série e também tem a sua dose de glamour.
Nascida em 1931, Joanne Copeland ficou conhecida pelo apelido do marido. Casou em 1963 com Johnny Carson e foi a segunda mulher da estrela da televisão norte-americana, um dos anfitriões do The Tonight Show, comediante, autor e também produtor. Divorciaram-se em 1972. Joanne também trabalhou em televisão, foi co-apresentadora na década de 1960 do jogo “Video Village” e teve um programa de saúde e fitness, “Joanne Carson’s V.I.P.s”. Estudou psicologia e bioquímica nutricional e casou-se uma segunda vez. Na vida real, manteve a sua amizade com Capote, mesmo depois do escândalo dos seus textos publicados. O escritor tinha o seu próprio quarto de escrever em casa de Joanne em Bel Air, onde viria a morrer em 1984. Em “Feud” é Molly Ringwald que lhe dá vida.
Se estes são os cisnes de Capote que vemos na série “Feud”, outras personalidades se juntavam a este círculo na realidade. São os casos das distintas Gloria Guinness, Gloria Vanderbilt ou Marella Agnelli, mulher do dono da Fiat. Vale a pena lembrar que quando o escritor organizou o famoso “Black & White Ball” a convidada de honra foi Katharine Graham, a herdeira do jornal Washington Post.
O que se passou. Uma história reveladora
A nova série baseia-se no livro de Laurence Leamer e o autor escreveu um texto para o jornal Telegraph onde conta a história e revela alguns pormenores da polémica que virou os cisnes contra o seu amigo e confidente. Capote terá percebido a certa altura que as vidas das amigas davam um romance. “A sua obra prima, ele decidiu, estaria na mesma prateleira que “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust, como uma duradoura crónica de uma era e de uma classe”, conta Leamer. “Ele iria chamá-la “Answered Prayers” [Orações respondidas] em homenagem ao ditado atribuído a Santa Teresa de Ávila: ‘Há mais lágrimas derramadas sobre orações respondidas do que sobre orações não respondidas’.”
O livro foi sendo constantemente adiado, mas um vislumbre surgiu na revista Esquire de novembro de 1975, onde Capote publicou um capítulo da obra que estava a preparar. Chamou-lhe “La Côte Basque 1965”, título e conteúdo que fez estalar o verniz e a relação entre Capote e os seus “cisnes”.
Leamer explica que, para Capote, escrever sobre as suas amigas não era uma traição, mas sim “a sua arte”. Marella Agnelli terá sido uma das primeiras pessoas a ler o que Capote escreveu sobre os cisnes. O autor leu-lhe parte da sua obra “Answered Prayers” num cruzeiro e Marella terá ficado de tal forma chocada que viria a cortar relações com Truman. O escritor foi avisado de que a exposição dos segredos, ainda que numa versão ficcional e com nomes de personagens, iria pôr em risco a sua relação com as amigas, mas acreditou que não perceberiam ser as figuras visadas. No entanto, Sim Keith não demorou a identificar-se com a narradora, Lady Ina Coolbirth; a personagem do marido de Babe Paley é reconhecível por ser judeu e Lee Radziwill aparece com o seu verdadeiro nome.
Depois desta publicação as amigas de Capote deixaram de o ser e juntaram-se para o excluir das suas vidas e da vida social que ele tanto gostava de frequentar. “O erro mais grave de Capote foi não perceber quão importantes estas mulheres eram para ele; eram o centro do bem estar emocional dele”, escreve Leamer. O isolamento social de Capote atirou-o para o álcool e para as drogas e viria a morrer de problemas no fígado, com 59 anos. O livro “Answered Prayers” nunca foi acabado. A Esquire republicou o texto no seu site em agosto de 2022 e pode ser lido aqui.
Onde se passou. O restaurante La Côte Basque
O nome “La Côte Basque” aparece vezes sem conta porque se refere a um dos protagonistas desta história. É o restaurante onde os “cisnes” almoçavam, que serve de cenário a muitos momentos da série e que deu nome ao texto da polémica, publicado em 1975. O La Côte Basque era mais do que um sítio para comer, um sítio para ver e ser visto na década de 1960 e seguintes. O restaurante foi aberto por Henri Soulé no final da década de 1950 e ter-se-á tornado rapidamente uma escolha da elite. A sala principal tinha murais com paisagens marítimas e banquetas em pele vermelha, segundo descreve a Vogue. Por ali comia-se, conversava-se e desfilava-se, afinal as clientes iam almoçar no seu melhor look. Apesar de estar em Nova Iorque e se chamar “costa basca”, o menu do restaurante estava recheado de clássica cuisine e em francês.
Em 1979 (já depois do escândalo) Jean-Jacques Rachou tornou-se o dono e chef do espaço. Ao fim de 45 anos fechou em 2004. A notícia foi avançada em setembro de 2003 pelo jornal New York Observer, numa altura em que os restaurantes franceses pareciam estar a passar por uma crise na cidade. O New York Times escreveu na notícia do fecho que um jantar de preço fixo no La Côte Basque custava 70 dólares por pessoa (cerca de 65 euros) e que uma refeição a la carte chegava aos 100 dólares (quase 93 euros). O chef Rachou disse ao jornal que gastava mais de 2200 dólares em flores e 3000 em têxteis por semana (cerca de 2000 euros e 2780 euros) e que queria fazer refeições de 20 dólares para o almoço e 30 para o jantar. Também notou que eram cada vez mais os clientes com look informal que se misturavam com os clientes de fato, por isso queria “tornar a brasserie descontraída”.
Além dos “cisnes” passavam por lá muitas figuras conhecidas não só da sociedade novaiorquina, mas celebridades, como por exemplo Jackie Kennedy com Onassis e Frank Sinatra. O restaurante estava localizado na zona chique do Upper East Side, mais precisamente onde a 5ª avenida se encontra com a 55ª rua, de frente para o St. Regis e com Central Park a três quarteirões. O restaurante chegou a mudar de morada em 1995 para o quarteirão do lado, em 60 East 55th, no formato de morada de Nova Iorque.