Quando percebeu que o Presidente da República decidira renovar por mais 15 dias o estado de emergência e a proibição de circular no país, a 2 de abril, o chef Ljubomir Stanisic telefonou a um conhecido seu, que é irmão de um polícia, a pedir-lhe ajuda. É, pelo menos, a convicção do Ministério Público que, na acusação do processo Dupla Face, diz que o empresário da restauração queria ir de Lisboa para a sua segunda casa em Grândola, passar a Páscoa com a irmã e com a mãe, mas, com as restrições impostas, temia ser intercetado numa operação policial.
Na altura, o país estava parado. Os restaurantes só podiam vender em self service, só os serviços essenciais estavam a funcionar e com apertadas restrições. Ainda nesse dia, pouco passava das 20h00, João, o conhecido do chef, ligou ao irmão a dar-lhe conta disso. Desconhecia, porém, que o agente da PSP estava a ser investigado num âmbito de um processo por tráfico de droga e que as suas chamadas estavam a ser escutadas por alguém — cujas funções também não foram interrompidas neste período.
João disse ao irmão Nuno Marino que “o Ljubomir”, segundo se lê no despacho de acusação do Ministério Público a que o Observador teve acesso, precisava de falar com ele porque queria que a sua família pudesse passar a Páscoa em Grândola. Mal desligou o telefone, foi o próprio Nuno Marino quem telefonou ao chef de cozinha ,que agora tem dado a cara pelo movimento Sobreviver a Pão e Água e que até esta quinta-feira esteve em greve de fome à procura de apoios para os setores da restauração. Ljubomir pediu-lhe, então, que lhe telefonasse via Whatsapp — onde as chamadas são encriptadas.
Quem estava a escutar o polícia não sabe o que foi dito nessa chamada, que foge às intercepções porque utiliza dados móveis. Mas o Ministério Público, sustentando-se no que ouviu depois, acredita que o chef de cozinha lhe tenha pedido ajuda para passar a Ponte 25 de Abril no dia seguinte, sem correr o risco de ser intercetado pela polícia e obrigado a voltar para trás. Nesse dia havia previsão de fiscalização policial naquela zona.
O agente da PSP terá aceitado de imediato. No dia seguinte, encontrou-se com Ljubomir Stanisic pelas 15h00. E abriu-lhe caminho na ponte, ele no seu carro e o chef de cozinha noutro. Só que, afinal, não havia qualquer operação de fiscalização montada na Ponte e Ljubomir “e a sua família prosseguiram viagem, deslocando-se para Grândola”, lê-se na acusação.
Disso mesmo deu conta Nuno Marino ao irmão, num telefonema que lhe fez quando regressava de Almada para Lisboa, e em que dizia estar tudo tratado — Ljubomir Stanisic já estava a caminho da sua casa em Grândola —, o que permitiu ao MP perceber que o polícia o ajudou de facto a furar o confinamento. Por outro lado, o MP não sabe precisar quando, mas entre o telefonema da noite anterior e esse momento, o chef de cozinha terá entregado a Nuno Marino duas garrafas de vinho, uma de conhaque e outra de rum, como “contrapartida”. Aliás, esta informação seria dada por Nuno Marino num outro telefonema que fez para a sua companheira, Sofia, também na viagem de regresso a casa onde anunciava estar quase a chegar.
Segundo a acusação, o contacto entre o chef e o polícia não se resumiu apenas a este episódio. Dias depois, sem que o MP saiba precisar quando — mas que localiza entre o 3 e o dia 16 de abril –, o chef voltou a contactá-lo. Desta vez, pedia-lhe que averiguasse nas bases de dados da Polícia a quem pertenciam determinados números de telefone.
Chef Ljubomir acusado de oferecer garrafas a agente para que este o ajudasse a furar confinamento
A garrafa de rum premiada e novo pedido
A 16 de abril, o telefone de Marino toca e do outro lado Ljubomir Stanisic pergunta-lhe primeiro se gostou do rum. O polícia responde-lhe que o bebeu todo ainda naquela noite, na companhia de um colega. “Aquilo é, mano é tão bom, não dá ressaca no dia seguinte”, disse o chef. “Nada, nada, espetacular, meu”, respondeu-lhe o polícia. Contou-lhe ainda, nessa conversa, que tinha mandado aquele rum para um concurso mundial de bebidas, em que participaram 9 mil candidatos. “Ganhei o terceiro prémio, o terceiro melhor álcool destilado”, afirmou, para depois lhe prometer mais. E depois perguntou-lhe por novidades sobre a informação dos números de telefone “de um amigo” seu, só para ver se estaria ativo.
Os investigadores do caso não conseguiram descobrir se o polícia procurou de facto esses números nas bases de dados policiais, mas perceberam que o motivo do telefonema não era apenas este. O chef de cozinha acabou a pedir-lhe se conseguia fazer por um outro amigo aquilo que tinha feito por ele, ao abrir-lhe caminho na Ponte 25 de Abril. Tratava-se, segundo o que é descrito na acusação, de Paulo Furtado, músico conhecido por The Legendary Tigerman. A ideia era que ele, que estava “fechado em casa na Praça de Espanha”, o fosse visitar a Grândola a 19 de abril. “Tu gostas de Rock’n’Roll, não gostas? É o melhor rocker português, que é o Paulo Furtado, The Legendary Tigerman e é um dos meus melhores amigos”, transcreveu o polícia que à data estava a escutar a chamada.
Marino respondeu-lhe que agora o controlo na ponte ia ser mais apertado, mas que estaria de folga nesse fim de semana e que podia fazê-lo. O chef ainda sugeriu um ponto de encontro entre ambos no posto de abastecimento de combustível perto do centro comercial Amoreiras. Mas as autoridades também não conseguiram perceber se a suposta visita de Paulo Furtado ao conhecido chef de cozinha aconteceu ou não.
Ao Correio da Manhã, o músico disse desconhecer o caso. Já o chef negou qualquer crime: disse ter autorização para circular e garantiu que apenas ofereceu cabazes a amigos. O Observador tentou contactá-lo, mas até agora sem sucesso.
Acusação diz que ambos violaram os seus deveres de cumprimento do estado de emergência
O Ministério Público concluiu que Nuno Mariano, enquanto agente da PSP, devia ter pautado pela aplicação das regras do estado de emergência assinadas por Marcelo Rebelo de Sousa. Mais, que, ao aceitar as contrapartidas que o chef de cozinha lhe deu, violou todos os seus deveres. Assim como Ljubomir Stanisic o devia saber, concluem os procuradores, acabando por acusá-lo de um crime de corrupção ativa para ato ilícito. “Ambos os arguidos sabiam, igualmente, que tal viagem para Grândola violava a mencionada ‘declaração do estado de emergência’ e o dever de obediência ao recolhimento que recaía sobre os cidadãos em geral, naquele período, querendo faltar àquela obediência”, lê-se no despacho de acusação.
Já Nuno Marino enfrenta uma acusação maior. Na verdade, por causa daquelas chamadas que estavam a ser interceptadas, o chef de cozinha acabou por cair numa processo que envolve 26 outros arguidos, acusados de associação criminosa e tráfico de droga. O grupo, alegadamente liderado pelos familiares de um dos proprietários de alguns restaurante na baixa lisboeta, — que era já conhecido pela polícia como um famoso carteirista — foi acusado de dar “banhadas” a outros traficantes de droga. Encontravam-se com os traficantes, pagavam com dinheiro falso ou não pagavam de todo e fugiam, como descreve a acusação. Depois vendiam essa droga. A par desta atividade criminosa, mantinham os negócios nos restaurantes na zona mais turística do centro de Lisboa — de onde também saíram várias queixas de clientes que se sentiram burlados, como o Observador noticiou em 2017.
Além de Nuno Marino, que à data prestava serviço na esquadra da Quinta do Cabrinha, há no processo um outro agente da PSP acusado. Trata-se do agente Pedro Mestre, que prestava serviço na esquadra da Baixa e que o Ministério Público diz que chegou a vender carteiras que tinham sido furtadas.
Segundo a acusação, Nuno e Pedro eram amigos, ambos vendiam droga para o grupo e colaboravam com os restantes arguidos, em troca de refeições gratuitas nos seus restaurantes. Pedro Mestre terá mesmo tido acesso aos outros processos crime que envolviam os elementos da rede criminosa com quem alegadamente colaborava.
Irmão de agente da PSP escapa a acusação
O agente Nuno é acusado de um crime de recebimento indevido de vantagem e um crime de abuso de poder. Irá responder também por tráfico de droga, detenção de arma proibida e um crime de corrupção passiva para ato ilícito. O Ministério Público pede ainda que seja expulso da polícia.
Já o seu irmão, que chegou a ser constituído arguido no processo que ganhou o nome “Dupla Face”, acabou por não ser acusado e ver as suspeitas contra si arquivadas. O Ministério Público considerou que, apesar de ter sido ele a contactar o irmão para lhe dar o recado do chef de cozinha, Nuno podia ter dito logo que “não conseguia ajudar”, podendo mesmo “desculpar-se com o facto de estar de serviço e muito ocupado”, sugere o MP.
A acusação do Ministério Público foi assinada a 27 de novembro de 2020, ainda antes da greve de fome do movimento Sobreviver a Pão e Água, mas já depois das primeiras manifestações — um movimento pelo qual o chef Ljubomir tem dado a cara à procura de proteção para o setor da restauração, obrigado a fechar portas mais cedo neste novo estado de emergência. Os arguidos foram notificados há cerca de uma semana.