Antes das oito da manhã desta terça-feira — hora a partir da qual se esperava a chegada por via marítima da ativista sueca Greta Thunberg — já se respiravam contradições e misturas improváveis no porto de Lisboa. Lado a lado, agentes da polícia e ativistas da Climáximo, movimento radical conhecido por promover atos de desobediência civil, instalavam baias e vigiavam em conjunto entradas e saídas da zona reservada para o desembarque e discurso da jovem sueca. Mais tarde, chegariam para aplaudir Greta tanto políticos de praticamente todos os quadrantes como críticos ferozes dos políticos, muitos deles segurando cartazes de protesto e gritando insultos. Nem a falta propositada de Marcelo Rebelo de Sousa — que disse não querer aproveitar-se politicamente da presença da ativista mais famosa dos dias de hoje — demoveu dirigentes de partidos como PS, PSD, Bloco de Esquerda, PCP, PAN ou Livre de se fazerem filmar e fotografar junto de Greta Thunberg.
A sueca de 16 anos também protagonizaria um contraste: rodeada por ativistas mais ou menos radicais que gritavam palavras de ordem duras contra o transporte aéreo ou a construção de aeroportos, Greta acabou por fazer o discurso mais moderado da manhã. “Não estou a dizer a ninguém como viajar ou como não viajar”, sublinhou, depois de reconhecer que seria “absurdo” pedir hoje que todos atravessem o Atlântico de barco. “Não estou a viajar assim porque quero que toda a gente o faça. Quero enviar uma mensagem.” Greta Thunberg atracou na doca de Santo Amaro, em Lisboa, perto da uma da tarde desta terça-feira — após 21 dias a bordo do catamarã La Vagabonde, no qual partiu dos Estados Unidos a meio de novembro, à boleia dos australianos Riley Whitelum e Elayna Carausu. A paragem em Lisboa, a caminho de Madrid para participar na COP25, acabará por ser mais longa do que o esperado. Em vez de apanhar já esta terça-feira o comboio para a capital espanhola, Greta Thunberg fica em Lisboa pelo menos dois dias.
[“Parem de nos deixar zangados”. O essencial da chegada de Greta Thunberg a Lisboa]
A embarcação era esperada entre as 8h e as 10h. Antes dessa hora, já dezenas de jornalistas de todo o mundo — em muito maior número do que os ativistas do clima — preparavam a cobertura do evento. Por ali ainda não se ouviam gritos de ordem, mas apenas múltiplos diretos, em várias línguas. Não que houvesse informações concretas para dar: na verdade, praticamente tudo era especulação. Em duas horas, o Observador ouviu pelo menos quatro versões diferentes sobre o que aconteceria quando Greta Thunberg desembarcasse na capital portuguesa: iria a pé até Santa Apolónia para apanhar um comboio para Madrid; seguiria a pé para uma casa para descansar antes de apanhar o comboio à noite; seria levada num carro elétrico disponibilizado pela Câmara Municipal de Lisboa; seguiria diretamente para Madrid num carro elétrico disponibilizado por Espanha.
Os rebeldes, a polícia e os políticos
O desabafo é ouvido pelo Observador de um dos muitos agentes da polícia destacados para assegurar a segurança do evento: é difícil obter informação concreta da parte dos ambientalistas responsáveis pela receção de Greta Thunberg. O comentário deixava transparecer uma tensão evidente e uma contradição na própria natureza do evento. Por um lado, dado o reconhecimento internacional da ativista sueca, a sua chegada mobilizou a imprensa nacional e internacional e levou a uma receção oficial por parte da câmara municipal de Lisboa e do poder político; por outro lado, tratava-se de um evento preparado por dezenas de ambientalistas sem grandes estruturas centrais, que incluiu uma associação ligada a protestos públicos e atos de desobediência civil. O grupo Climáximo — uma das três organizações contactadas pela equipa de Greta Thunberg para colaborar na organização da passagem da ativista por Lisboa — é uma das faces do grupo Extinction Rebellion em Portugal e já foi responsável por diversos protestos, incluindo a invasão do estúdio da CMTV, da sede da EDP, da refinaria da Galp e também da redação do Observador.
O grupo está associado ao movimento internacional Extinction Rebellion e as referências a este grupo não faltaram esta manhã em Lisboa. Uma dessas referências eram os gritos de ordem emprestados do grupo radical, que ficou conhecido por protestos insólitos em Londres, como a invasão de estações de metro por manifestantes que se colaram aos comboios, e por promover entre os seus membros a disponibilidade para ser preso em nome da causa ambiental. As detenções fazem, aliás, parte da estratégia e o movimento tem até uma espécie de guia para explicar aos participantes como o devem fazer. A ideia é “pôr a polícia perante um dilema”, forçando assim, mesmo que de forma pacífica, as detenções — que “trazem atenção”, diz o grupo.
Outra referência foi a aparição no porto da “Red Brigade”, um grupo de manifestantes que se vestem de vermelho para simbolizar a cor comum do sangue de todos os animais. O Extinction Rebelllion esteve, portanto, presente na receção a Greta, lado a lado com o poder político institucional, alvo preferido dos grupos radicais ambientalistas.
Em particular destaque esteve o presidente da Câmara de Lisboa, o socialista Fernando Medina, que surgiu como um dos protagonistas no evento organizado pelos mesmos ambientalistas que em abril deste ano interromperam um discurso de António Costa, invadindo o palco do jantar comemorativo do 46.º aniversário do PS para contestar a construção do novo aeroporto do Montijo. Na altura, logo nos primeiros minutos do discurso do primeiro-ministro, quatro jovens aproximaram-se do palco — um deles subiu e começou a disputar o microfone com António Costa, que ia insistindo em continuar o discurso. O primeiro-ministro ainda lhe atirou um “desculpe, com licença, posso?” e tentou prosseguir, mas o manifestante desviou-lhe o microfone de novo e tentou falar. Acabou por ser retirado pelos seguranças, enquanto dizia: “Lamentamos incomodar a vossa festa…”.
[Veja aqui o momento em que um discurso de António Costa foi interrompido por ativistas ambientais]
Na manhã desta segunda-feira, entre os ambientalistas que organizaram o evento foi possível avistar um cartaz com a fotografia do ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, a que foi acrescentado um nariz vermelho de palhaço e a legenda “apoio novos aeroportos” — há dias, o ministro tornou pública uma carta que enviou a Greta Thunberg a agradecer o trabalho da ativista. A 15 de abril, Matos Fernandes tinha sido alvo de um outro protesto da Extinction Rebellion. Um grupo de manifestantes presentes numa conferência no Ritz Four Seasons interrompeu o discurso do ministro do Ambiente, acusando os governos e o executivo português de “não medirem as alterações climáticas”. Depois de um longo “Oooh”, perante a interrupção insistente de uma jovem e enquanto tentava continuar o discurso, o ministro acabaria por apelidá-la de “daughter of a preacher man” (em português: “A filha de um pregador”), recorrendo à canção de Dusty Springfield.
[Veja aqui o vídeo da interrupção do discurso do ministro do Ambiente pelos Extinction Rebellion]
Questionado pelo Observador sobre como foi organizar um evento na cidade de Lisboa em parceria com este grupo radical de ambientalistas, Fernando Medina sublinhou que a Câmara Municipal de Lisboa prestou todo o apoio “em articulação com a equipa de Greta Thunberg e também com a associação Zero, de Portugal, uma associação respeitável do ponto de vista da sua ação, com longo historial no nosso país”. A Zero, liderada por Francisco Ferreira, foi outra das organizações contactadas pela equipa de Greta para ajudar na chegada a Lisboa. “Foi com eles que nós articulámos todo este apoio logístico”, assinalou Medina.
“Há vários aspetos com que eu não concordo e não me revejo nas lutas da ação climática”, disse o autarca ao Observador. “Agora, isso não me faz confundir o que é o acessório do que é o fundamental. E o fundamental é mesmo o motivo da luta e o motivo da mobilização. E esse eu inequivocamente partilho, porque acho que, como a Greta aliás não se cansa de dizer, a ciência é tão evidente e tão clara sobre o que está em causa, é tão clara sobre a urgência global de todos agirmos e fazermos mais, que acho que é uma cegueira não ver isso — por isso eu também não me engano sobre o que está em causa.” Fernando Medina acrescentou ainda que o debate fundamental nesta matéria não é “entre movimentos”. O que é importante, insistiu, é “ouvir os cientistas e depois agirmos em função disso”.
Para ajudar na passagem da ativista por Portugal, a equipa de Greta Thunberg contactou três associações ambientalistas portuguesas muito diferentes: a Zero, que colaborou nos procedimentos legais e nos contactos com as instituições (desde a autarquia ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras); a Climáximo; e ainda a Fridays for Future Portugal (a delegação portuguesa do movimento de jovens que todos os anos levam a cabo a greve climática estudantil).
Ao Observador, o ambientalista Francisco Ferreira, da Zero, distanciou-se da Climáximo, a organização mais radical das três que colaboraram na receção a Greta Thunberg. “Eles fazem o que fazem, nós fazemos o que fazemos. Temos objetivos finais em que concordamos, mas às vezes nos detalhes e na forma de trabalharmos podemos discordar”, explicou Francisco Ferreira. Questionado sobre se a distância era causada pelos protestos mais radicais da Climáximo, o ambientalista — que não esteve presente na receção à ativista por estar em Bruxelas — destacou que essa “não é a forma de ação” da Zero. “Senão, íamos todos para a Extinction Rebellion. Não quer dizer que não concordemos com os objetivos gerais, mas depois, na forma de agir, cada um tem a sua.”
Os ativistas da Climáximo no local admitiram ao Observador que a relação da organização com o poder político e com as autoridades pode ser difícil. Mas, desta vez, isso foi ultrapassado. “Como é uma questão muito grande, interessa [ao poder político] estar presente”, limitou-se a dizer um dos ativistas que vigiava, em colaboração com um agente da PSP, uma das entradas para a zona onde Greta Thunberg iria discursar mais tarde, num palco partilhado por ativistas e por políticos como Fernando Medina ou José Maria Cardoso, deputado do Bloco de Esquerda que preside à Comissão de Ambiente, Energia e Ordenamento do Território no Parlamento. Na plateia, contavam-se ainda figuras como André Silva (PAN), Joacine Katar Moreira (Livre), Hugo Carvalho (PSD), Alma Rivera (PCP), Miguel Matos e Maria Begonha (PS).
A moderação de Greta perante os gritos dos ambientalistas
Depois de uma manhã de espera para jornalistas e ambientalistas na doca de Santo Amaro (e que levou o minúsculo café da bilheteira da Hippotrip a praticamente esgotar as chávenas antes dos bilhetes para o autocarro/barco), Greta Thunberg entrou no porto de Lisboa perante a histeria dos ativistas que a foram receber. “Gretas’s voice is our voice” [a voz da Greta é a nossa voz], gritava-se. Já com a ambientalista desembarcada, multiplicavam-se os gritos contra os aeroportos e as viagens de avião. “Low cost today, high cost tomorrow” [baixo custo hoje, grande custo amanhã]. Quando duas jovens portuguesas, em representação do movimento da greve climática estudantil, fizeram um breve discurso a criticar a construção de um novo aeroporto no Montijo, os aplausos foram substituídos por fortes assobios.
Em contraste com os gritos de ordem dos manifestantes, Greta Thunberg surgiu em Lisboa com um discurso conciliatório. Depois de nos primeiros minutos explicar que já não estava habituada a contactar com tantas pessoas nem a estar em terra firme — “sabe tão bem, mas os nossos cérebros ainda não está habituados a isto” —, a jovem sueca disse ter aproveitado a viagem de três semanas para “relaxar”. “Agora, quero continuar. Sinto-me com energia”, assegurou. “Todos temos de fazer o que pudermos para estar do lado certo da história”
Questionada sobre o que pensava sobre o novo aeroporto do Montijo, Greta Thunberg admitiu não conhecer o contexto, mas assinalou que “sempre que se pensa em planear coisas dessas no futuro, é preciso colocá-las em perspetiva”. “De que forma nos vai beneficiar? Vai causar mais bem do que mal? Numa perspetiva mais abrangente mas também numa escala temporal maior”, afirmou a ativista. Quando um jornalista espanhol disse a Greta que tinha viajado de Madrid a Lisboa de avião e lhe perguntou quais seriam as alternativas sustentáveis para quem não pode pagar nem tem tempo para uma viagem de barco no Atlântico Norte, a jovem mostrou-se mais moderada na luta contra o transporte aéreo.
“Não estou a viajar assim porque quero que toda a gente o faça. Quero enviar uma mensagem. É impossível viver de forma sustentável e isso tem de mudar. Não podemos pedir a toda a gente que dependa de pessoas que vos transportem de barco pelo oceano. Isso é absurdo. Não estou a dizer a ninguém como viajar ou como não viajar. Claro que há alternativas mais sustentáveis, mas não estou a dizer a ninguém o que fazer”, afirmou Greta.
As previsões iniciais eram de que a ambientalista sueca seguiria já esta terça-feira para Madrid, mas Greta Thunberg acabou por anunciar, no palco montado em Alcântara, que ficaria em Lisboa durante dois dias, chegando a Madrid a tempo de ainda participar na COP25, que decorre até ao final da próxima semana, e na marcha pelo clima, na sexta-feira. Depois de discursar, foi escoltada pelos ambientalistas (“Ela precisa de descansar!”, gritaram aos jornalistas) até ao carro elétrico disponibilizado pela autarquia lisboeta.