O Liverpool tinha acabado de garantir a presença na terceira final da Liga dos Campeões em cinco anos. A eliminatória tinha sido difícil, com o Villarreal a esboçar uma reação já na segunda mão e a empatar as contas antes de os ingleses recordarem a Europa do porquê de terem seis troféus da Champions no museu. Jürgen Klopp saltou, gritou, abraçou jogadores. No primeiro momento que teve, enviou uma mensagem à mulher. Logo depois, enviou outra a dois nomes improváveis: Nathaniel Phillips e Rhys Williams.
“Enviei-lhes uma mensagem porque sem eles não estaríamos aqui. Lembro-me do último jogo da época passada e eles saíram de campo com a cabeça ligada, com cortes na cara… E isso foi mesmo um símbolo daquela fase. Apuramo-nos com uma perna, com um olho… Foi incrível. Foi uma temporada tão difícil. Espero que ninguém se esqueça do quanto lutámos para chegar aqui. Sentimos tudo aquilo, mentalmente. E os adeptos nunca deixaram de nos dizer que estávamos a jogar abaixo do exigido”, explicou o treinador alemão, em declarações à Sky Sports, depois do jogo decisivo nas meias-finais. A questão é que praticamente ninguém se lembra do quanto o Liverpool lutou para aqui chegar.
Nathaniel Phillips e Rhys Williams formaram a dupla de centrais titular com que o Liverpool jogou na última jornada da Premier League da época passada. Sem Van Dijk, Joe Gomez e Matip, todos lesionados, com Ozan Kabak a revelar-se uma contratação apressada de mercado de inverno que nunca foi solução, Phillips e Williams eram os únicos centrais de raiz que Jürgen Klopp tinha à disposição. Atualmente, já nenhum faz parte do plantel dos reds: o primeiro está emprestado ao Bournemouth, o segundo está cedido ao Swansea. Há um ano, contudo, faziam parte do onze inicial de uma equipa que só se qualificou para a Liga dos Campeões no último dia da liga inglesa.
Passaram 12 meses. E o 2021/2022 do Liverpool não poderia ter sido mais diferente do 2020/2021 do Liverpool. Os reds lutaram pela conquista da Premier League até ao último minuto do último jogo, conquistaram a Taça da Liga e a Taça de Inglaterra e carimbaram o feito extraordinário de disputar todas as partidas possíveis — todas as jornadas da liga inglesa, todos os jogos das duas Taças, todos os encontros da Liga dos Campeões. Este sábado, na terceira final da Champions em cinco anos, reencontram o Real Madrid que lhes partiu o coração em 2017/18. Mas Jürgen Klopp mudou muita coisa de lá para cá.
Alisson, Thiago, Jota, Díaz. As contratações-chave (mas pouco previsíveis)
Em 2018, quando o Liverpool perdeu a final da Liga dos Campeões para o Real Madrid em Kiev, Philippe Coutinho tinha deixado Anfield há poucos meses. Em janeiro desse mesmo ano, no mercado de inverno, o internacional brasileiro rumou ao Barcelona e deixou os reds aparentemente órfãos da sua grande referência ofensiva. O que ninguém esperava, porém, era que Klopp iria arranjar uma maneira de o substituir sem ter de contratar outra estrela internacional — no fundo, ninguém esperava que Klopp resolvesse o problema de não ter referência ofensiva com a decisão de abdicar de uma referência ofensiva.
Em janeiro de 2018, o Liverpool surpreendeu o mundo inteiro quando gastou 85 milhões de euros na contratação de um defesa central. E não era um defesa central com grandes provas dadas, não vinha de um gigante europeu nem sequer tinha grande experiência na alta roda do futebol internacional. Virgil Van Dijk, a atuar na altura no Southampton, tornou-se o defesa mais caro de sempre (registo entretanto ultrapassado por Harry Maguire) mas trouxe consigo uma bagagem cheia de dúvidas e questões. Klopp não teve receios na hora de lhe atribuir responsabilidade, de lhe explicar desde a primeira hora que seria o próximo líder do Liverpool e de garantir a toda a gente que o dinheiro dado pelo central neerlandês tinha até sido pouco para tudo aquilo que Van Dijk acabaria por dar ao clube. A ascensão do jogador não teve e continua sem ter limites: e é o maior exemplo da política de contratações seguida por Jürgen Klopp desde que chegou a Inglaterra.
Klopp quis Van Dijk para colmatar uma falha evidente do eixo da defesa, quis Alisson no verão de 2018 e depois de ter perdido a Liga dos Campeões graças aos erros de Loris Karius contra o Real Madrid e quis Salah logo em 2017, com poucas preocupações em tornar um jogador que tinha passado pelo Chelsea deixando poucas saudades na contratação mais cara do Liverpool à altura. Da final de Kiev para cá, as mudanças no plantel são algumas — mas com a particularidade de as entradas serem muito mais impactantes do que as saídas.
Em resumo, entre os jogadores que eram mais utilizados, saíram Wijnaldum, Lovren, Lallana e Emre Can. Em resumo, entraram Minamino, Harvey Elliott, Tsimikas, Diogo Jota, Thiago Alcântara, Konaté e Luis Díaz. E é aqui que voltamos à decisão de deixar de ter uma referência ofensiva: a aposta no trio de ataque muito móvel, sem um ‘9’ claro e com Salah, Mané e Firmino e trocarem de lugares entre si e a destruir defesas com recurso à profundidade, obrigou a uma injeção de soluções que pudesse permitir algum descanso ao egípcio, ao senegalês e ao brasileiro. Minamino chegou logo em 2020, Jota apareceu na época passada, Díaz foi contratado ao FC Porto em janeiro e encaixou que nem uma luva na lógica de Jürgen Klopp. De repente, o alemão deixou de ter três avançados e passou a ter seis.
Konaté chegou do RB Leipzig para colmatar os problemas no eixo defensivo que obrigaram à tal titularidade de Phillips e Williams — ou à adaptação de Fabinho — e Thiago Alcântara deixou o Bayern Munique para render Wijnaldum após a saída do neerlandês para o PSG. Depois de um início atribulado, com a maioria dos críticos a defender que o espanhol piorava o Liverpool e não era o jogador ideal para um meio-campo orientado por Klopp, Thiago é agora o eixo por onde passa todo o perfume dos reds. Entre as funções defensivas, o critério ofensivo e um talento com a bola nos pés que faz com que tudo o que faça pareça saído de um jogo de PlayStation, o médio é talvez a cara do enorme salto qualitativo e quantitativo que o Liverpool deu de 2018 para 2022.
Um clube vencedor que deixou de ter pena de si próprio
Na primeira reunião com os jogadores como treinador do Liverpool, Jürgen Klopp entrou no balneário e escreveu “TEAM”, equipa, no quadro branco. “É isto que quero que sejamos”, acrescentou. “‘T’ é para Terrível de enfrentar. ‘E’ é para Entusiasmados. ‘A’ é para Ambiciosos. E ‘M’ é para Máquinas de Mentalidade”, explicou. A mensagem era simples e o objetivo era precisamente esse, simplificar ao máximo o que era pretendido e ser claro nas comunicações.
“Quando cheguei, ninguém gostava da equipa. Nem sequer a equipa gostava da equipa! Eles não o diziam mas nem precisavam, porque eu conseguia ver. Achavam que não eram bons o suficiente para estar no Liverpool porque toda a gente lhes dava essa sensação. A única pessoa que estava contente com a equipa era eu. Era uma boa equipa, especialmente porque era a nossa equipa. Quando não a podemos mudar naquele momento, porque é que vamos pensar sobre isso? Não conseguia perceber”, disse mais tarde o alemão, citado pelo The Independent.
A relação entre treinador e jogadores, assente numa base de confiança mútua e de proximidade acima da média, ficou desde logo expressa na última jornada da Premier League de 2018/19. Ainda antes de conquistar a Liga dos Campeões pela sexta vez na história do clube, o Liverpool também perdeu a liga inglesa para o Manchester City no último fim de semana, apesar de ter alcançado um registo recorde de pontos numa única época. Quando chegou ao balneário, o ambiente era de óbvia desilusão. Mas o treinador depressa recordou à equipa que o mais difícil já tinha sido feito.
“Não podia estar mais orgulhoso de todos vocês. O que vocês conseguiram fazer esta temporada é inacreditável. Estou tão feliz por ser vosso treinador, não trocava este grupo de gigantes de mentalidade por ninguém. Vocês vão ser vencedores porque é aquilo que todos vocês são”, disse o treinador, que mais de um ano depois se tornou o líder da equipa a conquistar a Premier League mais cedo numa temporada, já que ainda faltava disputar sete jornadas do Campeonato.
A ligação próxima entre Klopp e o plantel, porém, nunca apagou o nível de compromisso exigido pelo treinador alemão. Quando chegou, o técnico acabou com uma tradição que existia há décadas no Liverpool como forma de motivar a equipa. À saída dos balneários e à entrada do relvado do estádio, existe uma placa onde se lê “This Is Anfield”, instalada pelo histórico treinador Bill Shankly de forma a impor desde logo o poderio do recinto ao adversário. Todos os jogadores dos reds, de Shankly para cá, tinham o hábito de tocar na placa antes de entrar no relvado, quase em formato de amuleto da sorte. Quando chegou, Klopp proibiu a equipa de o fazer e disse que só voltariam a tocar no quadro quando conquistassem um troféu para o Liverpool. Só em junho de 2019, depois de vencerem a Liga dos Campeões, é que Van Dijk, Henderson, Firmino, Salah e companhia puderam finalmente tocar na porta de entrada para o relvado de Anfield.
O treinador alemão construiu um grupo habituado a ganhar, seja a cada jornada da Premier League ou nos palcos mais importantes da Europa, e ensinou-o a usar cada derrota enquanto gasolina para a vitória seguinte. “Esta temporada tem sido absolutamente incrível e não acabou hoje. Acaba na próxima semana. E vamos dar tudo o que temos. Temos cinco dias para preparar a final e vamos enfrentar uma equipa com muita experiência. Mas é ok. Perder a liga hoje aumenta o desejo de pôr as coisas no sítio certo na próxima semana”, disse o técnico no passado domingo, logo depois de o Manchester City carimbar o bicampeonato. A conquista da Premier League em 2020, porém, levou o Liverpool para outro patamar.
A conquista da Premier League — e o fim dos impossíveis
Foram 30 anos. Três décadas inteiras. De 1990 a 2020, o Liverpool não foi campeão inglês, não conquistou o título mais importante do futebol inglês e não subiu ao topo incontestável do futebol inglês. 30 anos em que, apesar das duas Ligas dos Campeões, das Taças da Liga e de Inglaterra e até de uma Taça UEFA que foram parar ao museu, o Liverpool não chegou ao patamar mais pretendido. O Liverpool foi campeão europeu e campeão mundial e só depois conseguiu ser campeão inglês — e esse momento é um dos grandes pontos de viragem que marca a diferença entre a final da Liga dos Campeões de 2018 e a deste sábado.
Até pela forma como aconteceu. O Liverpool conquistou a Premier League a sete jornadas do fim, quase como se o facto de o Manchester City ter sido campeão na época anterior precisasse de ser corrigido com uma das vitórias mais retumbantes dos últimos anos na liga inglesa, e nunca permitiu que existissem grandes dúvidas acerca do título. E nem a pandemia, o facto de as primeiras medidas de desconfinamento no Reino Unido e no resto do mundo terem apenas algumas semanas, impediu milhares de adeptos de festejar algo que não era festejado há três décadas.
30 anos depois, está feita história: Liverpool sagra-se campeão (e tem de agradecer ao Chelsea)
Para os reds, chegar ao primeiro lugar da Premier League foi provar que não existem impossíveis. Que era possível voltar a chegar lá como o Arsenal chegou no início do milénio; que era possível voltar a chegar lá como o Manchester United chegou diversas vezes com Alex Ferguson; que era possível voltar a chegar lá como o Chelsea chegou, como o Manchester City chegou, como até o extraordinário Leicester de Claudio Ranieri chegou. Com Jürgen Klopp, o Liverpool voltou a ter certezas e largou os contos de fadas. E esse foi o grande salto que uma equipa inteira deu no espaço de quatro anos.