Anya só se lembrava dos primeiros três dígitos do número de telefone da mãe. Os restantes seis estão apontados num bloco de notas que deixou para trás quando, na primavera passada, fugiu de Mariupol em direção a Zaporíjia para fugir das investidas russas.
Em outubro do ano passado, em entrevista ao The New York Times, revelou que não tem como contactar a mãe: está agora em Moscovo, a quase 1.200 quilómetros da terra natal, no seio de uma família que a adotou: “Eu não queria ir, mas ninguém me perguntou nada”.
Na fronteira de Mariupol, Anya, 14 anos, foi sinalizada pelas forças russas num posto de controlo. Depois, foi colocada num autocarro que a levou até território russo e introduzida no sistema de adoção. Aguarda agora pela nacionalidade russa, que não quer: “Os meus amigos e família não estão aqui.”
São histórias como a de Anya, que conversou com os repórteres norte-americanos por mensagens escritas e de voz, à revelia da família adotiva, que colocaram Vladimir Putin, Presidente da Rússia, na mira do Tribunal Penal Internacional.
Na passada sexta-feira, os juízes do tribunal aceitaram o requerimento do procurador Karim Khan para emitir um mandado de detenção contra o líder russo e contra Maria Lvova-Belova, comissária para os Direitos da Criança no Gabinete do Presidente da Federação Russa.
Ambos estão acusados de deportar e transferir ilegalmente crianças de áreas ocupadas da Ucrânia para território russo desde 24 de fevereiro de 2022 — um crime de guerra, segundo vários artigos do Estatuto de Roma, que rege os Estados-membros do Tribunal Penal Internacional.
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Antes de a guerra eclodir, Anya vivia numa residência para doentes com tuberculose e via a mãe raramente, conta o The New York Times. Quando o edifício foi bombardeado, refugiou-se com outras crianças na cave da casa. Desenhava para ocupar o tempo e lia contos às crianças mais pequenas.
Muitos pais decidiram resgatar os filhos da cave da residência, mas Anya estava entre os cerca de 20 que ficaram para trás. Um voluntário ucraniano colocou-os numa ambulância para saírem de Mariupol, mas o grupo acabou por ser desviado para Donetsk.
Aqui, as crianças recebem peluches, telemóveis, brinquedos, roupa e promessas de um futuro melhor no seio de uma família afetuosa. Encaminhadas de Donetsk, a capital da rede de deportação de crianças ucranianas para a Rússia, são depois recebidas por famílias adotivas.
Uma delas é a da própria Maria Lvova-Belova, que adotou um rapaz de 15 anos natural de Mariupol na última primavera. É a 18ª criança que a comissária para os direitos da criança russa adotou e o seu 23º filho — cinco dos quais biológicos.
Numa entrevista com Vladimir Putin na televisão estatal, Maria Lvova-Belova partilhou saber agora “o que é ser mãe de uma criança de Mariupol”: “É um trabalho difícil”, até porque Filip tinha saudades da Ucrânia e queria regressar, “mas amamo-nos”. Segundo Lvova-Belova, Filip já não quer voltar à Ucrânia.
A Amnistia Internacional também documentou o caso de um rapaz de 11 anos, natural de Mariupol, que foi separado da mãe em Bezimenne, onde estavam por terem sido capturados numa fábrica onde estavam refugiados, em meados de abril. Mas não chegou a ser deportado para a Rússia.
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“Levaram minha mãe para outra barraca e estavam a interrogá-la”, descreveu a criança: “A mim disseram-me que ia ser levado para longe dela e eu fiquei chocado”. Não lhe disseram para onde a mãe seria levada e, desde então, nunca mais a viu.
O rapaz foi levado para Novoazovsk e mais tarde para Donetsk, alegadamente para receber cuidados médicos. O percurso dele, semelhante ao de Anya, faz crer que havia intenções de o deportar. Isso não aconteceu porque a avó o descobriu através de fotografias que encontrou no Facebook.
Timofey, três anos mais velho que Anya, é de Vuhledar e ficou preso em Mariupol com cinco irmãos enquanto passava férias num resort quando a guerra começou. Três deles têm doenças crónicas ou deficiências. O mais novo tem sete anos.
Timofey guiava-os para as caves quando havia bombardeamentos, abraçava os mais novos para aliviar o medo e acordava todos os dias às seis da manhã para apanhar lenha e criar uma fogueira para cozinhar e para a família poder aquecer-se.
Antes, se ia à rua e ouvia aviões a passar por cima da cidade, fugia. Agora, já nem a ameaça de mais um bombardeamento o assusta, confidencia à Associated Press: “Quando se anda por aí e vemos cérebros de pessoas espalhados na estrada e na calçada, deixa de importar”.
Timofey perdeu o contacto com a mãe, mas mantém a promessa de cuidar dos irmãos. Já teve oportunidade de sair de Mariupol, mas recusou porque isso implicaria deixá-los para trás. Depois, um médico tentou ajudá-los, mas acabaram detidos num posto de controlo.
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Os seis irmãos acabaram encaminhados para Donetsk, sob o controlo da Rússia. A dias de completar 18 anos, e por isso de ser convocado para lutar contra o próprio país, deixou os irmãos para trás e conseguiu chegar a território controlado pela Ucrânia.
Fez tudo isto sem estar em contacto com a mãe e o pai, Denys. Quando conseguiu finalmente conversar com ela através de um telemóvel, foi apanhado de surpresa: “Ainda bem que os teus irmãos estão vivos. Mas nós já saímos da Ucrânia”, disse-lhe Olga. Timofey respondeu: “Obrigada por nos abandonarem.”
Olga explica agora que tinha perdido contacto com os seis filhos a 1 de março, uma semana depois da invasão à Ucrânia pela Rússia. Uma outra filha, Rada — a sua única filha biológica — estava em Kharkiv, numa competição desportiva.
Com várias cidades a serem evacuadas por causa da escalada do conflito, e com Mariupol totalmente domada pelos russos, Olga e Denys tomaram a decisão de saírem de Vuhledar e refugiar-se em França com Rada. O caso foi exposto na televisão russa como um exemplo de uma família ucraniana que tinha tido a coragem de abandonar os filhos que haviam adotado anos antes.
Entretanto, Timofey voltou a reunir-se com os irmãos em Donetsk, mas a revolta apoderou-se dele: fugia da instituição de acolhimento para se encontrar com uma rapariga, tatuou três punhais na perna e recusava-se a comer.
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A certa altura, dois funcionários fiéis ao Kremlin disseram-lhe que os irmãos menores seriam colocados num orfanato e entrariam no sistema de adoção russo porque não havia sinais de esforços dos pais, Olga e Denys, para os resgatar.
Não era verdade. Os pais de Timofey mantiveram-se em constante contacto com as autoridades ucranianas e com a instituição russa na esperança de recuperarem os seis filhos. Depois de um processo de negociação com uma organização não-governamental, os irmãos rumaram a França.
Sophia está presa há meses num “campo de férias” à beira do Mar Negro
Estas deportações não são mantidas em segredo pelo Kremlin, que afirma que as crianças chegam à Rússia por terem sido retiradas de orfanatos ou abandonadas. Nem sempre é assim: há relatos de crianças que são separadas das famílias ou que, vivendo em instituições, têm contacto com elas.
Aliás, nove em cada 10 das crianças que, no último ano, passaram por instituições de acolhimento públicas são classificadas como orfãs sociais. Têm família e mantêm contacto com elas, mas os encarregados de educação não têm condições para cuidar delas em segurança e com dignidade.
É também por isso que algumas das crianças que chegam à Rússia e entram naquele sistema adotivo foram voluntariamente entregues pelas famílias nas regiões ocupadas. Fizeram-no por desespero, sob a promessa de que as crianças iriam para um “campo de férias” onde estariam protegidas da guerra.
É o caso de Sophia, uma menina de 11 anos que vivia em Balakliya, nas vizinhanças de Izyum e Kharkiv. A mãe, Alla Zinchynko, foi uma das tutoras que aceitou a proposta para enviar as crianças para “umas férias junto ao mar” em Novorossiysk, na costa do Mar Negro, dominada pelo Kremlin.
Alla Zinchynko explicou que aceitou a proposta por “medo” e “desespero”: com a cidade de Balakliya dominada pelas forças russas, a mãe julgava que Sophia podia estar mais protegida das batalhas entre a Rússia e a Ucrânia durante algumas semanas. Além disso, poderia falar com ela por mensagens.
Mas quando Balakliya foi reconquistada pelas forças de Volodymyr Zelensky, Alla não conseguiu recuperar a filha. Os coordenadores do suposto campo de férias disseram a Sophia que teria de manter-se em Novorossiysk, ainda dominada pela Rússia, durante mais algumas semanas.
Em entrevista ao The Times sobre o caso de Sophia, Alla Zinchynko desabafa que só quer reencontrar-se com a filha. “Quero gritar com o mundo todo. Faria qualquer coisa para vê-la novamente. Quando lhe mando uma mensagem , tudo o que realmente queria era abraçá-la”, desabafou.
De acordo com os relatos da menina, Sophia está num grupo com cerca de 300 crianças na cidade costeira que a Rússia domina na fronteira com o Mar Negro. Todas as outras crianças são da região de Kharkiv, que já foi reconquistada pela resistência ucraniana. Mas elas não foram libertadas.
Sophia também diz estar desiludida com as “férias” que lhe foram prometidas: as promessas de que poderia mergulhar nas águas do Mar Negro nunca foram cumpridas porque há “marés vivas”. Mas está fisicamente bem e, segundo a mãe, a esforçar-se para se manter bem disposta.
Pelo menos 400 crianças ucranianas já foram adotadas por russos
Um estudo da Universidade de Yale diz que estes “campos de férias”, vendidos às famílias como instituições onde as crianças podem ser afastadas dos conflitos armados, são, na verdade, campos de reeducação em que são expostas a conteúdos patrióticos a favor da Rússia.
Há pelo menos 43 destes campos, alguns dos quais ficam na Sibéria e na região anexada da Crimeia. O mesmo estudo norte-americano aponta que 6.000 crianças já frequentaram estas instituições desde a primavera de 2022. Algumas têm poucos meses de vida. Muitas ainda não regressaram a casa.
As autoridades ucranianas dizem que, com base nas informações publicadas pelo Kremlin, pelo menos 400 crianças foram adotadas por famílias russas. Outras 1.000 estarão à espera de ser adotadas em territórios controlados pela Rússia.
Muitas querem regressar a casa. Nem todas, no entanto: Yaroslava Rogachyova, 11 anos, foi entrevistada pela Associated Press em Donetsk num momento em que esperava ser enviada para Moscovo para conhecer a nova família adotiva.
Alojada em Taganrog, há meses sem ver os pais biológicos, Yaroslava estava ansiosa para conhecer o novo agregado familiar: “Gostei da mãe desde o início”, confessa, sem saber explicar porque é que a mãe de sangue não está por perto. Mas muitas destas crianças nunca chegam a saber dos esforços dos pais para as recuperarem.
As histórias concretas que motivaram as acusações de que Vladimir Putin e Maria Lvova-Belova cometeram crimes de guerras não foram divulgadas pelo Tribunal Penal Internacional, mas relatos como estes estarão entre as centenas de documentos na origem desta decisão.
Em comunicado, o Tribunal Penal Internacional esclarece que os dados relativos aos mandados vão manter-se sob sigilo “para proteger as vítimas e as testemunhas e também para salvaguardar a investigação”.
Ainda assim, entendeu que a existência dos mandados devia ser tornada pública porque “é do interesse da justiça”. Admite estar ciente de que, como os crimes ainda estão a ser cometidos, a divulgação da existência dos mandados “pode contribuir para prevenir a continuação da prática de crimes”.
Entretanto, o procurador Karim Ahmad Khan reiterou em comunicado que centenas de crianças ucranianas foram retiradas de orfanatos e das próprias casas, onde viviam com as famílias, e levadas para a Rússia. Muitas delas foram depois colocadas no sistema de adoção do país.
Sabe-se também que a maioria das crianças levadas pela Rússia são de regiões russas que já estiveram sob domínio do Kremlin. Além de Mariupol, uma das mais afetadas, também Kherson, Zaporíjia e Mykolaiv estão na rota da deportação de crianças para território russo.