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Era o símbolo de um certo poder eterno que não se sabia quando ia acabar. Era o representante do maior “défice democrático” dentro da democracia portuguesa. Foi sinónimo da pior boçalidade política e corporizava um populismo ao estilo sul-americano único em território português. Mas também foi o “desenvolvimentista” da Madeira, cultor de amores e ódios, colecionador de polémicas ao longo dos 37 anos em que presidiu ao Governo Regional e ao PSD-Madeira.
Começou a escrever as 845 páginas da sua sua versão da história no dia 13 de maio de 2015. Alberto João Jardim publica esta semana as suas memórias políticas com o título sugestivo de “Relatório de Combate”. Logo nas primeiras páginas do livro, o ex-presidente do Governo Regional da Madeira agradece à editora, a D. Quixote, “que não teve medo de publicar o livro, enquanto, antes, houve quem se acobardasse e cedesse a pressões depois de manifestar interesse em editar“. Não revela, porém, que se acobardou. O Observador leu parte destas longas memórias de Alberto João e conta-lhe aqui alguns dos episódios que o histórico do PSD escreve na sua autobiografia: há cuecas, há Marcelo, há bombistas da Flama e uma vaia monumental. Mas muito mais.
A foto das cuecas “foi apanhada à falsa fé”
No Carnaval de 1997, o semanário Tal & Qual trazia uma capa bombástica com um título forte e uma imagem inesquecível: “Alberto João exclusivo e explosivo”. Ao alto, uma fotografia do presidente do Governo Regional da Madeira, de cuecas, a preparar-se para o desfile anual com o título: “O rei do Carnaval”. Além daqueles preparos, o trabalho aparecia como se de uma entrevista ao líder madeirense se tratasse e com frases do próprio que justificavam o “explosivo” da primeira página do jornal, tal como a famosa “Que se f… a Assembleia da República”.
No Parlamento nacional, a oposição saltou em críticas, com o PCP a pedir até a saída de Alberto João Jardim do Conselho de Estado — de que era membro por inerência. O líder socialista e primeiro-ministro António Guterres mostrava um semblante chocado e dizia não querer “dizer nada” sobre o assunto — “penso que o país entenderá porque é que eu não quero dizer nada”. Já o Partido Popular tentava desdramatizar — na medida do possível — pela voz de Krus Abecassis: “Não comentamos coisas que não são sérias, nem cuecas de políticos (…) As cuecas dele são iguais às cuecas de todos os portugueses”.
Nessa época, Jardim chegou a desmentir as declarações ao jornal que, por sua vez, reafirmava tudo o que o presidente do Governo Regional da Madeira dissera. Mas, no livro de memórias, Alberto João justifica-se com um desafio a quem o lê: “O Leitor coloque-se no meu lugar. Estar numa farra carnavalesca e, a despropósito, alguém lhe fala da Assembleia da República. Claro que a resposta é dada nos termos da paródia em que se está para o desfile e adequada ao absurdo dessa conversa ali”.
Também recorda que o “freelancer e um fotografo” que apareceram naquele momento dos preparativos para a farra, só tinham sido “convidados a tomar qualquer coisa sob palavra de não exercerem ali qualquer atividade profissional – ingenuidade nossa”. Alberto João escreve: “Qual não é a minha surpresa quando uma manhã, dias depois, estando no Porto – fui a um jantar do PSD em Aveiro –, vejo o jocoso transformado em ‘entrevista’ política e uma foto minha, em cuecas, a vestir-me para o corso, foto que se via apanhada à falsa fé”. Um momento que Jardim descreve ter feito nascer “mais um ‘drama’ que meteu o Parlamento Nacional, com os cínicos a atribuírem circunstâncias normais ao contexto em que tudo decorrera”.
A maior vaia da vida de Alberto João e uma faca
O momento presidente-do-Governo-em-cuecas surgia numa fase de fragilidade interna para Alberto João que assume isso mesmo no livro, como se parte de um plano nacional para o fragilizar se tratasse. É nesta altura, em 1997, quando “não estava fácil”, que recorda como teve a “maior vaia” da sua vida política “e por causa do… futebol”. O líder madeirense defendia a fusão dos grandes clubes da região, o Marítimo, o Nacional e o União da Madeira. Juntou os presidentes dos três clubes à mesa na Quinta Vigia e apresentou-lhes o seu projeto de uma SAD a três, onde o Marítimo seria uma espécie de cabeça de cartaz. Mas Jardim desconfiava do presidente do Marítimo, Rui Fontes, que descreve como “o ex-Secretário Regional Rui Fontes, que nunca aceitara bem a normalidade de os cargos políticos terem o seu limite de tempo”. Justificou-se, porque dias depois do princípio de acordo firmado na Vigia, foi avisado para “um grande levantamento popular, como que a iminência de uma revolução” no jogo do Marítimo a que iria assistir.
“Durante os primeiros 45 minutos, sentado na tribuna, fui permanentemente vaiado, apupado e insultado”. No dia seguinte, foi informado pela polícia que tinham encontrado um homem perto de si com “uma arma branca” e quando viu as fotografias das suas “imediações”, disse que lá viu “até um preso com saída precária nesse fim-de-semana”. O acordo não foi para a frente: “Eu fiz o que tinha a fazer, depois os Madeirenses que não se queixem!…”
Como Marcelo preparou o aparecimento espontâneo no congresso de 2014 (e não só)
Marcelo Rebelo de Sousa entrou pelo Coliseu dos Recreios adentro, cumprimentou a primeira fila dos figurões do PSD ali reunidos num Congresso ensonado (pouco havia para dizer a fevereiro de 2014, na última reunião antes das europeias e das legislativas), pôs a sala num frenesim à espera de um discurso arrebatador e talvez um sinal para as Presidenciais de 2016. A subida ao palco correspondeu em parte às expectativas de um partido animado subitamente por aquela entrada de rompante, que o próprio explicou então que tinha sido decidida a bordo do avião que o trouxe da Madeira nessa tarde. “Estive com o Alberto João Jardim e perguntei: acha que vá? E vim todo o avião a pensar: Vou ou não vou?”. A narrativa era boa, mas na verdade a espontaneidade requereu trabalho de programação.
No seu livro, Alberto João Jardim conta que, nesse sábado, Marcelo Rebelo de Sousa estava em sua casa, na Madeira, mas mal engoliu a espetada de milho frito que a família Jardim tinha preparado, Alberto João teve de o ir levar ao aeroporto: “Ele queria ir à reunião nacional do PSD”. Nesses dias, Jardim tinha preparado o I Congresso das Instituições Particulares de Solidariedade Social e Misericórdias da Madeira, com Marcelo como convidado especial que lá esteve a discursar, mas a ideia que tinha era regressar a Lisboa a tempo de falar no púlpito do Coliseu.
Jardim revela até como viu Marcelo preparar a suposta entrada surpresa pelo telefone e “particularmente atento a Pedro Santana Lopes“, o nome social-democrata de que também se falava para uma candidatura presidencial. Depois conta como assistiu, pela televisão a partir do Funchal, “a um dos mais brilhantes discursos” que lhe ouviu. “Com que classe é possível brincar ao gato e ao rato!”.
A admiração política por Marcelo salta à vista da auto-biografia do histórico líder madeirense, é diversas vezes referida no livro e nos contextos mais diversos. Um exemplo? Cenário: A festa do Chão da Lagoa. Alberto João sublinha como Marcelo foi o único líder do PSD a ir lá por duas vezes e como se movia à vontade, fintando excessos na corrida pelas tasquinhas típicas. ” Falava, pulava e dançava com toda a gente, como se aquilo fosse o seu dia-a-dia. Tinha uma estratégia e ciente para o perigosíssimo percurso de todas as barraquinhas que representavam as 54 Freguesias, mais a JSD e os TSD (Trabalhadores Sociais-Democratas). Quando lhe punham mais um copo na mão, dava um abraço ao interlocutor e o copo era entornado no chão, nas costas do abraçado. Ou então pedia a alguém para lhe segurar o copo, a fim de melhor abraçar outro, mas já não o retomava”.
A aproximação dos dois não aparece contada ao pormenor, mas Jardim vai relatando alguns episódios que deixam claro o seu aprofundamento. Nem sempre foi assim, no início estranhava que Francisco Pinto Balsemão mantivesse no Governo um elemento em quem não confiava: Marcelo Rebelo de Sousa. Alberto João chegou a questionar o primeiro-ministro sobre isso e a resposta surpreendeu-o: “Ainda era a melhor maneira de o ter controlado!…”
Mas Jardim engraçava com Marcelo e ouviu-o quando, em 1995, no congresso do PSD-Madeira, quis uma Constituição própria para a Região: “Marcelo Rebelo de Sousa aconselhou-me a pensar em no assunto”. No ano seguinte teria Marcelo como líder do partido e conta o seu papel no processo de decisão. Meses antes do congresso do PSD, Jardim manifestou o seu apoio a um candidatura de Marcelo que recuou e chegou a apontar o nome do madeirense como solução. Foi a vez de Jardim recusar e, meses depois jantaram na Quinta Vigia. “Quando a noite acabou, eu estava convencido de que ele avançaria, o que lhe procurei demonstrar que era de interesse nacional, até porque falámos sobre a estratégia futura para um PSD que estava então na oposição, e sobre próximos dirigentes”. Dois dias depois, o PSD-Madeira decidiu não avançar com uma moção ao congresso, em benefício da de Marcelo, se este avançasse com a candidatura a líder nacional”.
A partir daí, Marcelo chama Alberto João para vice do partido e é onde fica até pedir para sair. Porquê? O ritmo alucinante de Marcelo. O homem a quem Jardim reconhece “comprovadíssima inteligência” tinha um problema: “Tínhamos de estar 24 horas de serviço”.
No seu “Relatório de Combate”, Alberto João até conta como depois da famosa capa do Tal & Qual com a foto em cuecas, Marcelo “foi leal e amigo” e compreendeu. É certo que também mostra como foi sempre apoiando a sua carreira política, sobretudo aos comandos do partido e fala concretamente do congresso de abril de 1998, em Tavira, onde Marcelo entrou a pôr a sua AD (Alternativa Democrática) à prova. Queria que a sua moção fosse aprovada por maioria de dois terços, numa altura em que “Durão Barroso já estava na calha para a sucessão”, descreve Jardim que recorda ainda como deu a volta ao texto, quando percebeu o nervosismo de Marcelo com o seu próprio desafio.
“A certa altura, no início do Congresso, já sentado”, descreve Jardim, “sussura-me: ‘Isto não vai dar os dois terços, vamos embora e eles tomam conta disto, mas farão asneira e teremos de voltar’. Respondi-lhe que apostáramos nos dois terços, tínhamos de ganhá-los, pois eu não gostava de perder ‘nem a feijões’. ‘Vai ver o que eu faço’, acrescentei”. E o que fez Jardim? Pôs todas as altas figuras do partido que apoiavam Marcelo a falar a seguir aos apoiantes de Barroso: “Era ‘marcação homem a homem’, como no futebol”. Marcelo conseguiu os dois terços.
Nos anos que se seguiram à saída de Marcelo Rebelo de Sousa como líder do PSD mantiveram sempre a proximidade e até apoio político recíproco, até nos momentos de maior tensão para Jardim. Por exemplo, quando o Governo central, em agosto de 2011, exigia à Madeira um programa de ajustamento económico, Jardim regista como Marcelo fez declarações públicas a assinalar como tinha feito “obra notável” sem se “encher”. Também recorreu ao jurista Marcelo noutra guerra com o Governo de Sócrates, em 2006 quando foi fechada a torneira das transferências para a Madeira por violação dos limites de endividamento previstos na lei de enquadramento orçamental. “A Região pediu a Marcelo Rebelo de Sousa um parecer jurídico sobre toda esta situação, enquanto o constitucionalista ia adiantando que Cavaco devia intervir nos cortes à Madeira e que ‘esperava ser possível chegar a um ponto de convergência'”, lembra Jardim entre os parágrafos onde discorre de forma cronológica sobre tudo o que foi acontecendo no seu tempo político.
O défice democrático da Madeira
Alberto João Jardim explica que a invenção da expressão “défice democrático” na Madeira foi de António Guterres, durante as eleições regionais de 1992. Tinha ganho o PS recentemente e “à doida resolve mostrar serviço”, segundo a expressão utilizada pelo ex-presidente do Governo Regional nas suas memórias. Segundo Alberto João, as “populações sentiram-se humilhadas”. Jardim recorda ter-se limitado a dizer que “o engenheiro Guterres é um tonto”.
Neste capítulo das suas memórias, o homem que liderou os destinos da Madeira por mais de três décadas não assume em qualquer momento, que houvesse menos democracia na região do que no continente. Enquanto recorda as peripécias políticas que se sucederam depois daquela declaração do então líder socialista, não tenta rebater no livro aquilo que estava a base da acusação de Guterres: o caciquismo, a distribuição de empregos através da cor partidária, o controlo da Assembleia Regional e dos media regionais, ou a ostracização dos opositores.
Se Guterres qualificava o controlo absoluto das instituições da região autónoma pelo jardinismo como sendo um “défice democrático”, Jaime Gama ia mais longe e chamava-lhe o Bokassa da Madeira, comparando-o ao ditador da República Centro Africana. “Eu ia cultivando a pachorra” — escreve Alberto João —, até porque as baboseiras não me aqueciam nem arrefeciam, e considerei a intervenção de Gama como ‘uma ofensa ao Povo Madeirense’, arruaça pura e simples”.
Entretanto, a temperatura do debate político ia entrando no vermelho e o líder madeirense recorda-se de ir aos Açores e ouvir o líder socialista, que então era Martins Goulart a chamar-lhe: “Palhaço da política portuguesa”. Alberto João retribui, dizendo: “Prefiro ser palhaço nos Açores a candidato a cangalheiro dos Açorianos.”
Perante toda aquela escalada, Guterres completaria a sua acusação dizendo que “o 25 de abril também tem de chegar à Madeira”. A resposta de Jardim para fechar a controvérsia reabrindo-a com nova polémica seria feita a cantar, em que circunstância? Na famosa festa anual do PSD madeirense. Alberto João lembra a sua investida contra o futuro primeiro-ministro socialista demonstrando, pelo menos neste caso, algum arrependimento: “No final de Julho, no meu discurso na Festa da Autonomia e das Liberdade, no Chão da Lagoa, advirto Guterres e começo a cantar ‘A Mula da Cooperativa’. Não foi correcto e me penitencio.”
Às “garotices” de José Sócrates, Jardim respondia com inaugurações
A relação de Alberto João Jardim com José Sócrates — uma relação em tudo difícil — ocupa uma boa parte do livro, mas sem revelações surpreendentes. Em quatro capítulos intitulados “Sócrates contra a Madeira”, “…Mas fomos em frente!”, “…Mas Sócrates não desiste” e “A luta continuou!…”, o ex-presidente do Governo Regional da Madeira dá conta dos vários conflitos entre a região autónoma e o governo socialista, sobretudo no que respeita à Lei das Finanças Regionais e ao corte nos financiamentos à região.
“O ano de 2006 vai marcar o arranque do maior conflito República-Região, após o comuno-gonçalvismo de 1974-75. Sócrates, liderando os socialistas e alcandorado a primeiro-ministro, conta que eu esteja em dificuldade para lhe resistir, porque tenho não só oposição na impropriamente chamada ‘esquerda’, mas também uma conjugação de ódios contra mim que envolvem a ‘Madeira Velha’, a burguesia funchalense, a ‘direita’ clássica e a maçonaria”, começa por referir João Jardim, acrescentando que, juntando-se a isto o “crescente abstencionismo eleitoral”, Sócrates “julgava ser fácil criar-nos um garrote financeiro, mesmo que fosse através de inconstitucionalidades e ilegalidades”.
Foi isso que Sócrates procurou fazer, conta Jardim, dando uma maior fatia do orçamento aos Açores do que à Madeira e levando a região a suspender subsídios necessários. A 6 de junho, teve uma reunião em São Bento com o primeiro-ministro e Teixeira dos Santos, ministro das Finanças, onde Jardim terá explicado a Sócrates que “podia dar aos Açores e a quem quisesse aquilo que muito bem entendesse, desde que não tocasse no que era da Madeira”. Mas, conta Jardim, “pela antipatia do encontro” depressa percebeu que “era mesmo essa garotice que se preparava para fazer”.
Mas não era só a questão orçamental e da não-disponibilização dos fundos europeus que preocupava a Madeira. Havia também uma espécie de boicote, conta Jardim. “Mais de metade dos ministérios do Governo socialista nem dava resposta à correspondência da Madeira, o que, além de ser um ilícito administrativo, também demonstrava falta de educação”, diz, acrescentando que “os ministros socialistas rejeitavam toda e qualquer proposta para nos transferir competências. Estado e PS confundiam-se”.
Mas Jardim respondia à letra a José Sócrates. “Como Sócrates se intitulava politicamente ‘um animal feroz’, eu respondia-lhe em público: ‘Não tenho medo de si!’ e denunciava a ‘falsa democracia’ que se vivia no país, provada pela censura existente na comunicação social e pelas fraudes governativas à própria Lei de Finanças Regionais, que até era da autoria de um anterior Governo socialista (Guterres)”, escreve o ex-líder regional no livro.
Às “patifarias” de José Sócrates, João Jardim diz que respondia com inaugurações. “O Estado preferia perder 600 milhões de euros de fundos na Agricultura a satisfazer a nossa pretensão de no-los dar. Em resposta, eu inaugurei, só em setembro de 2006, 22 milhões de euros de investimentos”, regista nas memórias. O clima era de guerra entre a região autónoma e o continente: “Lisboa vai estourar a economia da região, a partir de agora não há partidos, há é colaboracionistas e autonomistas”, dizia Jardim, acrescentando que “os aliados táticos” da Madeira eram todos os que não fossem socialistas.
A Lei das Finanças Regionais, que define os meios de que dispõem as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira para a concretização da autonomia financeira consagrada na Constituição e nos estatutos político-administrativos, sempre esteve no centro da discórdia com José Sócrates. Aproveitando uma ida de Sócrates à Madeira, Jardim disse a Sócrates que a lei em vigor tinha causado “perdas de cerca de 500 milhões de euros”, mas o primeiro-ministro recusou sempre alterá-la. O pé de guerra foi tal que em 2007 levou Jardim a pedir novas eleições na Madeira para legitimar o seu poder. Mas a alteração viria finalmente em 2010, quando a Madeira consegue ver uma nova lei das finanças regionais aprovada na Assembleia da República só com os votos contra do PS.
Depois, deu-se um volte-face, na sequência da tragédia do grande deslize de terras na Ilha, que originou uma inusitada aproximação entre o primeiro-ministro e Alberto João. Sócrates propôs um adiamento da entrada em vigor, por três anos, da nova lei das finanças em troca de uma quantia avultada para a recuperação dos estragos — “bem superior à que receberíamos com a nova lei das finanças regionais”. “Concordei”, conta Alberto João. E foi então que Sócrates sugeriu a assinatura de um protocolo, para ficar tudo preto no branco. Mas Jardim terá dito que não: “Não é preciso, respondi, o senhor deu a sua palavra, eu dei a minha, a palavra basta”.
“A palavra basta?!”, retorquiu José Sócrates, muito intrigado. Mas bastou mesmo.
Alberto contra o “político profissional” Passos e “seus muchachos“
Alberto João Jardim desatina com Passos Coelho há mais de 27 anos. O próprio faz questão de o contar, na autobiografia, atribuindo com desdém o título de “político profissional” ao líder do PSD: “Em março de 1990, Miguel Albuquerque assume a presidência da JSD da Madeira. Já nessa altura eu não atinava com o ‘político profissional’ que era o presidente nacional da JSD, Pedro Passos Coelho.”
Quando Passos esteve num lado da barricada, Jardim esteve quase sempre do outro. O antigo presidente do Governo regional justifica porque apoiou Paulo Rangel nas eleições internas do partido em 2010: “Como podia eu apoiar Passos Coelho e seus muchachos se, quando da alteração maioritária da Lei de Finanças Regionais pela Assembleia da República, ele se posicionou contra nós, ao lado de Sócrates-Teixeira dos Santos?!…”
No Conselho Nacional do PSD, em fevereiro de 2010, Jardim demonstrou-se assim “indignado” com a posição “pró-PS de Passos Coelho na proposta de nova Lei de Finanças Regionais”, contando também agora que estava preocupado com “as ligações de Passos Coelho a decisores económicos privados.” Disse então esperar que “na Madeira, não houvesse um único militante a votar no indivíduo para líder nacional”.
Alberto João Jardim descreve então o que define como “episódio burlesco”, quando Passos diz que espera que o presidente do PSD/Madeira o “perdoe”, tal como perdoou José Sócrates. Nesse congresso, houve assobios para Passos Coelho, já que Jardim tinha feito as pazes com Sócrates apenas porque precisava da ajuda do Governo da República na fase da tragédia das cheias da Madeira. No entanto, na autobiografia, Jardim exclui a referência a Sócrates.
No entender de Jardim, “ao contrário de Passos, Rangel apresentava-se mais próximo do Pensamento de Sá-Carneiro e da visão autonomista do PSD/Madeira, embora depois desiludisse ao defender a existência de um ‘representante’ da República” no seu território. O presidente do Governo conseguiu que o agora eurodeputado vencesse na região, mas não no partido: “Apesar de Rangel vencer na Madeira com 86%, Passos Coelho ganha a liderança nacional do PSD, com vitória em todo o restante País, a 26 de Março” de 2010.
Jardim lembra ainda que, em junho de 2011, na tomada de posse de Passos Coelho como primeiro-ministro, o próprio José Sócrates lhe disse que “com este executivo [de Passos Coelho], ainda sentiria saudades do Governo de Sócrates.” O presidente do Governo regional acreditava, no início da legislatura que “Guilherme Silva seria o próximo Presidente da Assembleia da República, dado o seu currículo” e também por mais de um açoriano ter exercido esse cargo.” O antigo presidente do Governo regional dos Açores acabaria, porém, por perturbar a eleição do jardinista Guilherme Silva. “Porque Mota Amaral manifestara também interesse em voltar a assumir o cargo, foi o pretexto de que Passos Coelho precisou para eleger uma senhora, pela primeira vez, para a presidência da Assembleia da República. Guilherme Silva foi eleito Vice-Presidente.”
Ao longo do livro, Alberto João Jardim atribuiu a Passos a autoria de um “genocídio social” em Portugal durante os anos de austeridade. Conta que, durante esses anos, sugeriu “pessoalmente ao primeiro-ministro que fizesse um bloco com os Governos da Irlanda e do Sul da Europa [que António Costa tenta agora potencial] para pressionar a União Europeia, mas Passos Coelho respondeu tais parceiros não serem prestigiantes para Portugal, naquele momento.”
Jardim confidencia ainda que foi sondado para ser o “número dois” da candidatura às eleições Europeia de maio de 2014: “O próprio Passos Coelho me telefonou a sugerir que eu fosse o segundo da lista da ‘Aliança Portugal’, senão haveria apenas um lugar feminino para o PSD/Madeira, e no sexto lugar.”
Em várias acusações Jardim acusa Passos Coelho de ter ido à “Madeira propositadamente para um evento patrocinado pela folha do Grupo Blandy”, numa referência ao Diário de Notícias da Madeira. Há outro episódio que Jardim não perdoa a Passos. O facto de não lhe ter deixado uma palavra no momento em que deixou de ser líder do PSD regional: “Congresso em que esteve presente Passos Coelho, que, ao fim dos meus mais de 40 anos de liderança do partido e de 46 vitórias, não teve uma única referência pessoal para comigo. Os tempos, depois, a todos elucidaram sobre o carácter desta gente.”
Uma luta in(FLAMA)da
Alberto João Jardim nega alguma vez ter pertencido à Frente de Libertação do Arquipélago da Madeira (FLAMA), uma organização conhecida por defender a luta armada pela independência da Madeira. “Ao contrário do que adversários políticos me acusaram – não é que o papel da FLAMA tivesse sido desonroso, antes pelo contrário –, eu não só nunca pertenci a qualquer das suas diferentes organizações, como nem sequer estabeleci contacto com elas. Cada um tinha o seu papel na defesa da Democracia. O meu era o de assegurar a sobrevivência do PSD e do Jornal da Madeira”, escreve no “Relatório de Combate”.
Jardim enaltece ainda a “oposição violenta” dos “clandestinos” da FLAMA contra a “selvajaria revolucionária” à qual a Madeira não escapou em 1975, quando os comunistas estiveram no poder no Governo da República. A FLAMA era assim, descreve Jardim, “através da clandestinidade e do uso da força, uma defesa ativa da democracia e simultaneamente uma dissuasão da ameaça comunista que pairava sobre Portugal.” Ainda assim, destaca Jardim, “não havia uma só FLAMA. Tratava-se de uma sigla que abrangia organizações diferentes. Numa sofisticada maneira de guerrilha urbana, não possuía diretório, nem comando únicos. Haveria quatro ou cinco Flamas.”
Além de dizer que nunca aderiu à organização, Jardim escreve que houve mesmo “um momento de crispação com uma das organizações da FLAMA” quando defendeu publicamente que “a solução para o arquipélago era uma grande autonomia política – não o atual colonialismo – e não a independência.” Nessa altura, temeu ser vítima de um atentado: “Sei que certos elementos radicais quiseram pôr-me uma bomba – no fim, temia-se que a FLAMA já estivesse infiltrada pelo próprio PCP.”
Não os podes vencer, junta-te a eles. Jardim conta que “uma das primeiras coisas” que fez quando chegou à presidência do Governo Regional foi chamar um conjunto de pessoas civilizadas e esclarecidas que suspeitava terem ascendente sobre a FLAMA”. Jardim disse na altura que as “ações violentas” da FLAMA lhe “tiravam o tapete” na luta por uma autonomia maior. Por isso, ou a organização acalmava, ou “não tinha outro remédio senão organizar uma eficaz ação até os ter todos detidos, o que resultaria num confronto desastroso para a economia e para o campo social do arquipélago.” Mas a Flama terá confiado em Jardim: “Ouvi em resposta que, enquanto eu garantisse uma luta sem receios pela Autonomia, se interrompiam as atividades da FLAMA. Até hoje.”
“O João faz anos”, nome de código
Em 1975, lembra Jardim, havia “bombas no arquipélago” contra os comunistas. “Uma destrói o emissor da RDP, importante fonte da propaganda comuno-gonçalvista, outra destrói um avião militar que se destinava a transportar para Lisboa o importante volume de moeda estrangeira que a Madeira arrecadava na delegação local do Banco de Portugal.”
Na mesma fase, houve uma série de outros ataques da FLAMA. Alberto João escreve:
“O Palácio de São Lourenço, sede do poder da República Portuguesa neste território, também vê uma bomba explodir junto às suas muralhas. A extremista UPM também teve o seu presente. ‘O João faz anos’ era a expressão de código que se ouvia na cidade, quando corria que a FLAMA planeava alguma acção. O Paço Episcopal também não escapou. Porém, disseram-me e contaram também a D. Francisco que se tratara de uma ação armada contra a sede do PCP na Rua da Carreira, durante a noite.”
Alberto João Jardim lembra ainda a história como durante a campanha eleitoral para as presidenciais de 1976 o PSD/Madeira “conseguiu, a tempo, evitar um desastre”. Ou melhor: um atentado contra Otelo Saraiva de Carvalho:
“Soubemos que, estando em campanha na Madeira, estribado na UDP e no padre suspenso da Ribeira Seca, Machico, Otelo Saraiva de Carvalho dirigir-se-ia para o Funchal sobre um camião, escudado em crianças e adolescentes para o efeito recrutados na mencionada ‘paróquia’, e que um dos ramos da FLAMA, à passagem do dito Otelo, ia dinamitar a ponte, o que seria uma inadmissível carnificina. Foram horas de tensão até se encontrar o grupo que se suspeitava ser autor de semelhante plano desgraçado, e depois de muita insistência e pressão, lá se desativou a iniciativa. Foi por minutos…”
Há “cubanos” no continente, mas também na Madeira
O ex-presidente do Governo Regional ainda explica que é por esta altura — a seguir à revolução — que aparece a designação “cubano”. Alberto João considera “engraçado que, principalmente em Lisboa, gostando eles de contar anedotas sobre os restantes portugueses (então sobre alentejanos é um exagero!…), ainda hoje afinem quando lhes chamam ‘cubanos’.”
Jardim defende-se dizendo que “cubano não refere quem nasceu no Continente. Trata-se de quem é preconceituoso em relação à Madeira, ‘não tem a Madeira no coração’. Nem todos os continentais são ‘cubanos’ e há madeirenses que o são.”