Tinham já passado seis anos daquele dia em que Luís Filipe Vieira e a mulher pagaram às Finanças um imposto de 1,6 milhões de euros sobre as mais valias de vários bens que tinham vendido. E sobre o qual tinham reclamado em tribunal. Sem uma decisão e sem o dinheiro, diz o Ministério Público, o presidente da SAD do Benfica lembrou-se da pessoa ideal para o ajudar a intervir no processo e, até, a ganhá-lo: Rui Rangel, desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa e um benfiquista ferrenho que não hesitava em telefonar-lhe a pedir bilhetes para assistir a jogos em lugares privilegiados — e com direito a lugar de estacionamento no parque privativo do estádio.
Rangel chegou mesmo a candidatar-se ao cargo de Vieira, como seu adversário em 2012, tendo na sua lista Fernando Tavares, que acabou por tornar-se o vice-presidente de Vieira, e o advogado Jorge Barroso, que acabou a representar vários negócios imobiliários de Vieira e chegar à vice-presidência da Fundação Benfica. O juiz perdeu, contra Vieira, mas todos ficaram amigos.
A relação entre os dois chegou à acusação do Ministério Público no processo que ficou conhecido como Operação Lex por causa do tal imposto cobrado indevidamente. Assim que Vieira e a mulher o pagaram, reclamaram imediatamente, na tentativa de virem a recuperar o dinheiro. Nas Finanças não lhes foi dada razão e o casal recorreu, então, da decisão, num processo que acabou por chegar ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra em 2013. O caso arrastar-se-ia durante vários anos — e a alegada intervenção de Rui Rangel também não foi imediata.
Um ano e meio a fazer promessas ao presidente para receber bilhetes
A informação sobre esse processo chegou pela primeira vez via WhatsApp ao telemóvel do juiz Rui Rangel em setembro de 2016. E no quase ano e meio que se seguiu foram várias as mensagens trocadas entre Luís Filipe Vieira e o magistrado, diretamente ou por intermédio de alguém comum aos dois: Fernando Tavares e Jorge Barroso.
Descreve a acusação a que o Observador teve acesso que, pelo meio, Rangel ia pedindo bilhetes para assistir aos jogos de futebol ( e até para o filme do Eusébio), alguns no estrangeiro e com direito a viagem incluída, e ia dizendo que estava a tratar do assunto do presidente. No entanto, só em finais de 2007, e depois de várias promessas, o juiz se terá encontrado com uma amiga juíza no quiosque em frente ao Tribunal da Relação de Lisboa para tentar saber algo mais sobre o caso.
Nesse dia — que o Ministério Público situa nos finais do segundo semestre de 2017 — disse-lhe que precisava de saber em que estado se encontrava um processo, fornecendo-lhe o respetivo número. Essa juíza, por seu turno, contactou uma outra que, no tribunal de Sintra, se deslocou à sala da magistrada titular do processo e lhe pediu um ponto de situação do caso. A resposta foi a mesma que já tinha sido dada aos advogados de Vieira: ainda não se tinha debruçado sobre ele e ainda não tinha decidido. Aliás, essa juíza acabou por ser mudada de tribunal ainda antes de tomar posição no processo da reclamação do presidente do Benfica.
Ainda assim, tanto Rui Rangel como Vieira, Tavares e Barroso foram acusados de um crime de recebimento indevido de vantagem no caso Lex, cuja acusação foi conhecida esta sexta-feira. Os quatro procuradores que assinam a acusação, entre eles Maria José Morgado, consideraram que, ao atuar da forma descrita, o arguido Rui Rangel estava ciente de que punha em causa a honra da magistratura do tribunal.
Vieira mandou mensagem a Rangel com informação do processo
Quanto a Luís Filipe Vieira, de 71 anos, as autoridades acreditam que contactou Rangel porque procurava um desfecho rápido e favorável do diferendo judicial. Assim, a primeira mensagem com informações do processo caiu no telemóvel de Rangel, via WhatsApp, às 16h15 do dia 9 de setembro de 2016, vinda do telemóvel do próprio Luís Filipe Vieira e por ele assinada.
Nos meses que se seguiram, as mensagens foram continuando, ora com Rangel a pedir a bilhetes, ora com Vieira a lembrá-lo do assunto de Sintra. E muitas das vezes com a intervenção de Fernando Tavares, a quem era recorrente Rangel pedir bilhetes para jogos e que muitas vezes transmitia ao juiz os recados do presidente.
Em abril de 2017, no entanto, foi Vieira quem voltou a mandar uma mensagem ao magistrado, recordando que o seu processo continuava por resolver. “Seria importante para mim falar um pouco contigo sobre este meu problema acho isto uma coisa incrível e penso que podes me ajudar a resolver. Diz me melhor dia para Ti e hora. Abraço Amigo Luís”, escreveu. A resposta só chegaria três horas depois e sempre com a garantia de que Rangel estava a tratar de tudo.
Nas conversas tidas via WhatsApp, e algumas por sms que as autoridades visualizaram nos telemóveis apreendidos aos arguidos, ficou também percetível que o magistrado ter-se-á encontrado pessoalmente com o presidente do Benfica para almoçar ou jantar para poderem falar no assunto de Sintra — que, a certa altura, passou a ter o nome de código “IC19”.
A 30 de abril, por exemplo, há uma mensagem de Fernando Tavares para Vieira a recomendar que marquem um almoço com Rangel. A 17 de maio, pelas 13h44, é a vez de Jorge Barroso atender o telefone. Do outro lado está o presidente do Benfica, que lhe diz que o jantar fica para segunda-feira e que “é imperioso insistir pela resolução do seu assunto, junto de Rui Rangel”, diz a acusação.
— A ver se aperto com o Rangel a ver se a gente resolve aquela merda agora ou carago, diz Vieira
— Pois aperta aperta porque o gajo…, responde-lhe Barroso.
— … é um turista do carago foda-se…, interrompe Vieira, que diz que tem que ser mesmo o Barroso “a apertar” porque lhe parece que ele (Vieira) fala e “aquilo é a mesma coisa que nada”.
Defesa de Vieira queria encontrar-se pessoalmente com juíza do tribunal de Sintra
Segundo o Ministério Público, Rui Rangel, Fernando Tavares, Jorge Barroso e Luís Filipe Vieira jantaram num restaurante dentro do Estádio da Luz, em Lisboa, a 23 de maio. No dia seguinte, depois do almoço, Vieira voltou a ligar a Barroso, porque sabia que ele estava com Rangel, e pediu-lhe para passar o telefone. Disse-lhe que o advogado dele insistia para que fosse com ele a Sintra, para resolver o processo.
Aliás, a defesa de Vieira terá tentado mesmo, a certa altura e através da escrivã do tribunal, encontrar-se com a juíza Isabel Fernandes, que tinha o caso nas mãos. Mas a escrivã do tribunal demoveu-os, lembrando que a magistrada não tinha esse hábito e que qualquer pedido devia ser feito por requerimento.
Em junho desse ano, e sem qualquer avanço no processo, há mais uma mensagem enviada pelo presidente do Benfica a Jorge Barroso, depois de lhe tentar ligar e ele não atender. Segundo o Ministério Público, Vieira perguntou-lhe se poderiam ir a Sintra tratar do assunto dele na semana seguinte. Barroso reenvia a mensagem a Rangel, que se mostrou imediatamente disponível para ir. Mas, antes, tinham de combinar uma estratégia.
Os problemas de saúde de Vieira e as diligências de Rangel
No mês que se segue, as tentativas de encontro ou de idas a Sintra nunca chegam a concretizar-se, até porque Vieira enfrenta, à data, problemas de saúde e chega mesmo a ser internado para fazer exames. Só a 4 de julho, Vieira volta a contactar Rangel na tentativa de marcarem a ida ao tribunal na semana seguinte. “Luis Boa tarde, ok vou fazer as diligências necessárias“, respondeu-lhe Rangel.
Duas semanas depois… nada. A 19 de julho, Vieira almoçou com Jorge Barroso e decide voltar a insistir com Rangel, de uma forma irónica ou mesmo provocadora. “Estou com o nosso Amigo JB vem sempre ao pensamento SINTRA SINTRA SINTRA SINTRA Sintra Sintra . Quando resolvemos? Abraço Amigo Luis Vieira”. Rangel lamenta não estar com os dois a almoçar e insiste que está a tratar de tudo.
Um lugar na tribuna presidencial ou os assuntos do Presidente ficam para trás
Paralelamente, os pedidos de bilhetes para jogos, feitos por Rui Rangel, não param. Chega a pedir dois para amigos que chegam de Angola e, numa outra ocasião, pede dez. E pede também bilhetes para o funcionário judicial igualmente acusado no processo.
Em novembro desse ano de 2017, a meses de ser constituído arguido e interrogado, Rangel manda mesmo uma mensagem a Fernando Tavares a questioná-lo se o estão a pôr à margem da tribuna presidencial. Num tom mais duro, quase ameaçador, afirma que assim fica “sem vontade” de tratar dos assuntos do presidente.
No entanto, e avaliar pela cronologia dos acontecimentos relatados pelo Ministério Público, na iminência de ser afastado da tribuna presidencial, o juiz desembargador apressou-se em marcar o encontro com uma juíza conselheira que o poderia vir a ajudar. O tal encontro no quiosque em frente ao Tribunal da Relação de Lisboa com uma juíza que acabou por conseguir a mesma resposta que os advogados de Vieira: o caso continuava por decidir.
O Ministério Público considera que “todas as ofertas efetuadas a Rangel foram benefícios, proveitos indevidamente recebido por Rui Rangel, ofertados por Luís Filipe Vieira, Jorge Barroso e Fernando Tavares, como forma de garantirem que Rui Rangel iria obter informações privilegiadas referentes ao processo pendente no TAF de Sintra, com o numero 1297/13.1 BESNT e influenciar o andamento desse processo.
Acusação é “profundamente injusta”
Esta sexta-feira, horas depois de ter sido anunciada a acusação, Luís Filipe Vieira falou sobre o caso, através de um porta-voz, para negar a prática de qualquer crime. O presidente do Benfica já tinha feito isso mesmo, em julho, quando foi noticiado que seria um dos acusados da Operação Lex.
Na altura, em comunicado, Vieira falava numa acusação “profundamente injusta”, explicava em detalhe o longo processo no tribunal de Sintra e assumia que se “queixou a todos os seus conhecidos dessa ilegal demora”. Mas negava qualquer ilegalidade:
O Sr. Luís Filipe Vieira, porém, não subornou nem corrompeu ninguém, e muito menos determinou que se atribuíssem vantagens indevidas a quem quer que fosse. Em especial, o Sr. Luís Filipe Vieira não deu nem pagou nada, nem um cêntimo, ao Sr. Desembargador Rui Rangel (que aliás nunca teve, nem podia ter, nada a ver com o processo fiscal em causa, pois não é Juiz Desembargador de Tribunais Fiscais)”, lia-se no comunicado.
A reação atacava ainda o Ministério Público, dizendo que só “uma mente profundamente criativa” poderia imaginar que o facto de Rui Rangel — um “prestigiado benfiquista” — receber bilhetes para o jogos do Benfica tinha alguma coisa a ver com o diferendo fiscal que Vieira tinha na justiça.