Mais de dez horas de reunião de um Conselho de Ministros que ia muito além do Palácio Nacional da Ajuda, não só porque o primeiro-ministro estava à distância, em Bruxelas, mas sobretudo porque dentro da sala do edifício onde se reuniu o Governo estavam necessariamente as reivindicações dos parceiros de esquerda. Perante a ameaça de chumbo do Orçamento para 2022, provocando uma crise política, o Governo veio garantir “aproximações” depois desta reunião. Ténues em algumas matérias que tanto PCP como BE consideram essenciais — e esta noite continuavam sem ter o detalhe do que tinha sido aprovado pelo Governo.
Quatro ministras para três diplomas. Da Saúde, Marta Temido, do Trabalho, Ana Mendes Godinho, e da Cultura, Graça Fonseca, para apresentarem o que foi aprovado pelo Governo sobre o estatuto do Serviço Nacional de Saúde, a Agenda para o Trabalho Digno e o estatuto dos trabalhadores da cultura. Ao comando esteve a ministra de Estado e da Presidência Mariana Vieira da Silva que não quis adiantar quase nada sobre as negociações por fazerem parte “de um processo em curso”, argumentou. “Estamos num momento em que é preciso dialogar com os partidos e é nesse quadro que nos encontramos”. Mais adiante havia de dizer, no entanto, que nos três diplomas existem “aproximações de posições” à esquerda. Mas quais e em que termos?
Aumenta a compensação por despedimento… mas só para contratos a termo
Na área do Trabalho — na chamada Agenda do Trabalho Digno, um pacote de alterações à lei laboral — as cedências à esquerda foram apenas parciais. Uma das bandeiras do Bloco do Esquerda era a reposição do valor de indemnização por despedimento para o pré-troika. Numa primeira fase, a exigência bloquista era que fossem pagos 20 dias por cada ano de antiguidade do trabalhador na empresa mas, mais recentemente, subiu a fasquia para 30 dias. O Governo fica a meio caminho em dois aspetos: é que só garante 24 dias por ano (dois dias por cada mês, tal como no pré-troika) e apenas para alguns contratos, os precários (a termo certo e incerto). Ou seja, ficam de fora os trabalhadores “dos quadros”, com vínculos permanentes. Ana Mendes Godinho diz que o objetivo é o “desincentivo ao trabalho não permanente injustificado”.
Um dia antes, quando foi questionada, na concertação social, sobre a possibilidade de ceder à esquerda nesta matéria, Ana Mendes Godinho tinha chutado para canto, justificando que o Executivo não queria implementar medidas que “distorçam a posição de Portugal num ranking internacional de avaliação do mercado laboral”.
Valor das horas-extra reposto para o pré-troika… a partir da 120.ª hora
Nas nove exigências do Bloco para a viabilização do Orçamento constava ainda a reposição do valor pago pelas horas extra para os que vigoravam antes a 2012: 50% na primeira hora, 75% nas seguintes e 100% quando é prestado em dia de descanso semanal ou feriado (atualmente estão pela metade). O Governo, através do PS, já tinha dado sinais à esquerda de que estava disponível para negociar a questão.
Na semana passada, PCP e Bloco viram as propostas que repõem os montantes a pagar pelas horas extraordinárias aprovadas na generalidade, no Parlamento, devido à abstenção de PS e PSD. A medida ainda vai ser negociada na especialidade, mas sem certezas de que o PS mantenha o seu voto. É que a iniciativa do Governo, aprovada esta quinta-feira, apenas dá parte do que foi pedido pela esquerda: a reposição para os valores pré-troika apenas acontecerá a partir da 120.ª hora de trabalho extra. Até esse patamar, mantém-se o regime em vigor. A ideia, segundo Ana Mendes Godinho, é incrementar a conciliação entre a vida familiar, profissional e familiar.
Prazos da caducidade são suspensos (não terminam)
Também nas normas da caducidade havia exigências à esquerda, que queria acabar com a regra que permite que uma convenção coletiva possa chegar ao fim se não for substituída por outro instrumento de contratação coletiva, potencialmente deixando trabalhadores desprotegidos. Mas o Governo apenas respondeu com uma suspensão dos prazos da caducidade por mais 12 meses do que estava previsto, isto é, até 2024. Ou seja, até essa data, não haverá convenções coletivas a caducar.
Além disso, o Governo reforçou a chamada arbitragem necessária, “permitindo que qualquer das partes suspenda a caducidade das convenções”, mas “prevenindo vazios negociais”. Ou seja, não é preciso que a convenção caduque para que cada uma das partes peça o início de um processo de mediação externa.
Princípio do tratamento mais favorável só para teletrabalho e plataformas
Os partidos à esquerda do PS pediam ainda a reposição do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, de forma a que os instrumentos de regulamentação coletiva não pudessem implicar para o trabalhador um tratamento pior do que o estipulado por lei. O Governo, também aqui, apenas cede parcialmente, prevendo o alargamento do princípio do tratamento mais favorável só às situações de teletrabalho e trabalho através de plataformas.
A mira no contrato temporário e não declarado
O Governo centra muitas das propostas da Agenda no combate ao “recurso abusivo ao trabalho temporário”, ao combate ao falso trabalho independente e ao trabalho não declarado. Mas não vai tão longe quanto a proposta do PCP, que o PS aprovou em julho no Parlamento. Essa proposta previa, entre outros pontos, a redução de três para dois do número máximo de renovações de contratos a termo certo e a redução da duração do contrato a termo incerto para o máximo de três anos.
Mas na Agenda, o Governo só mexe nos limites das renovações dos contratos temporários — de seis para quatro.
A mira continua sobre os contratos a termo: quer reforçar as regras “relativas à sucessão de contratos a termo evitando o recurso abusivo a esta forma de contratação, designadamente impedindo a nova admissão ou afetação de trabalhador através de contrato para o mesmo posto de trabalho e reforçando a intervenção da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) no que toca à conversão de contratos a termo em contratos sem termo.
O Governo também já tinha dito que queria “reforçar o quadro sancionatório do trabalho totalmente não declarado (quando não há inscrição na Segurança Social), “nomeadamente criminalizando o recurso a trabalho nestas condições”. Esta quinta-feira, Ana Mendes Godinho foi mais detalhada: a intenção é “criminalizar o trabalho totalmente não declarado, com prisão até três anos ou multa até 360 dias”.
O trabalho nas plataformas digitais também tinha sido alvo da atenção da esquerda (antes do processo orçamental) e já há muito que o Governo queria mexer na lei, de forma a dar maior proteção social a estes trabalhadores, criando um mecanismo de “presunção de existência de contrato de trabalho com a plataforma ou a empresa que nela opere”.
Regime de dedicação plena no SNS
O que foi apresentado pelo Governo está longe da ideia geral da esquerda que tem pedido exclusividade no SNS, com majoração salarial (e ainda outros incentivos ao nível de horário, por exemplo) para quem esteja neste regime. O BE pede que esta majoração seja de 40% e o PCP de 50% e ainda redução de horário para quem esteja nesta situação. Mas a proposta do Governo não detalha nada sobre isso e remete para a negociação com os sindicatos, além de ficar muito aquém da exclusividade por princípio que a esquerda pede.
O regime de dedicação plena que o Governo estabeleceu será “progressivo” e começa pelos médicos, embora a ministra diga que pode “possivelmente” estender-se a outros grupos, sem que o Governo se comprometa com qualquer calendário para isso. Quando questionado, o Governo remeteu para negociação posterior. A ministra Marta Temido detalhou que o regime será opcional para médicos que aceitem “um compromisso assistencial de melhoria da sua atividade em termos de indicadores de acesso, de qualidade e de sustentabilidade” e será obrigatório para quem “venha assumir novos cargos, novas direções de serviço ou departamento no SNS”.
Tanto o PCP como o BE querem que seja feito ao contrário. Exclusividade total e, depois, trabalhadas as exceções à regra. A esquerda tem mostrado abertura para discutir universo de aplicação ou o carácter opcional da medida, mas tem sempre considerado que as alterações de posição do Governo não passam pela criação plena de um regime de exclusividade no SNS.
Autonomia para contratar no SNS
O SNS recupera a autonomia (sem precisar de autorização do Governo) para contratar trabalhadores sempre que necessário e é também criado um regime excecional de realização de trabalho suplementar, com o Governo a acenar à esquerda que o valor pago por este trabalho possa ser majorado em negociação posterior.
A meio do briefing do Conselho de Ministros, Marta Temido teve de sair para uma entrevista que tinha marcada com a RTP e onde detalhou que a ideia é que as instituições passam a poder contratar diretamente os profissionais “que não os integrados na carreira médica”, “obviamente seguindo os princípios gerais da transparência, da organização de concursos, da organização de reservas de recrutamento”. A medida já tinha sido colocada em cima da mesa dos parceiros que nos últimos ano a viram chumbar no Parlamento pelo PS.
Uma espécie de subsídio de desemprego próprio para a Cultura
Fora da Agenda do Trabalho Digno, foi aprovado o estatuto do trabalhador da cultura, que inclui um regime especial de proteção social, “que até hoje nunca tinha sido criado”, e que a esquerda há muito reivindicava. Mais concretamente, é criado uma espécie de novo subsídio de desemprego próprio para os profissionais da cultura. Este subsídio é pago “quando o profissional estiver um mês sem atividade”, com um mínimo de 1 Indexante de Apoios Sociais — IAS (438, 81 euros) e um máximo de 2,5 IAS (1.097 euros) e terá um prazo de garantia (período de descontos necessário para aceder) “adequados à realidade do setor da cultura” (seis meses).
Suplemento de penosidade e insalubridade
Foi outra das medidas aprovadas em Conselho de Ministros esta quinta-feira, e já tinha sido anunciada aos sindicatos da função pública pela ministra da tutela, Alexandra Leitão. O Governo quer garantir que o suplemento de penosidade e insalubridade para os trabalhadores da recolha do lixo ou da limpeza urbana que já estava em vigor seja efetivamente pago. É que várias denúncias foram surgindo no último ano, nomeadamente do PCP, dando conta de que as autarquias não estavam a aplicá-lo. Em Conselho de Ministros, o Governo aprovou a “fixação de um suplemento remuneratório com fundamento no exercício de funções em condições de penosidade e insalubridade”, que se dirige aos assistentes operacionais com funções “nas áreas de recolha e tratamento de resíduos e tratamento de efluentes, higiene urbana, do saneamento, dos procedimentos de inumações, exumações ou trasladações”.