À entrada o olhar perde-se numa inscrição. É um aviso para quem entra, uma lembrança de que tudo passará. No interior, um estreito corredor inquieta, parece ainda mais apertado do que à entrada. Há centenas de crânios a encher a sala. Uns empilhados, outros a fazer de colunas, de abóbadas, de muralhas. Há ossos de crianças, adultos e duas múmias retorcidas. Contemplam os vivos e aguardam-nos, dizendo que um dia também eles serão pó.
Macabra, bizarra e sobretudo inquietante. É assim a capela dos ossos de Évora e a imagem que deixa na cabeça de quem a visita. Mas apesar de tudo, os visitantes amontoam-se à porta. Compram o bilhete, pegam na máquina fotográfica e captam o momento. É o fascínio do macabro que continua a atrair centenas de visitantes todos os anos à igreja de São Francisco. Não tanto pela igreja, mas pelo que se encontra no seu interior. Centenas de anos depois da construção, a capela dos ossos continua a exercer o mesmo papel para que foi concebida — apelar à reflexão, não só sobre a morte mas, acima de tudo, sobre a vida.
O início da história
A construção de capelas dos ossos, assim como de qualquer monumento religioso cristão, está ligada com o cristianismo e com a relação deste com a morte. Desde sempre que esta é um pouco ambivalente — apesar de representar o desaparecimento da vida terrestre, a morte é também uma passagem para uma outra vida, mais completa e plena. Se por um lado deve ser encarada com alguma tranquilidade espiritual, por outro representa sempre um “trauma”.
É esta atitude ambivalente que leva a tradição cristã a encarar a ideia da morte com alguma esperança, mas também como uma lembrança. À entrada de muitas capelas surgem as palavras “Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos”. A frase pode parecer macabra, mas não passa de uma mensagem para os vivos. É uma lembrança de que a vida é efémera e que um dia também eles serão apenas ossos.
Para José António Falcão, historiador de arte e museólogo, são também um reflexo do fascínio e do terror com que a morte é encarada. “Existe uma comunicação entre vivos e mortos, que partilham uma mesma realidade, embora em dimensões diferentes”, explicou ao Observador. “É como se entre eles existisse uma comunicação subtil”.
Ao longo da história do cristianismo, surgiram várias devoções e tradições que refletem o fascínio e o terror que a morte provoca. Estes fenómenos religiosos encontraram na cultura do barroco um ambiente propício ao seu desenvolvimento. O barroco tem uma espécie de paixão pela morte e valoriza muito a ideia do memento mori — a ideia de que a morte e inevitável e que, por isso, a conduta moral e ética deve ser articulada tendo isso em conta. Foi nesta altura que surgiram a maioria das capelas dos ossos e ossários subterrâneos, menos vulgares em Portugal.
Ao contrário das catacumbas, as capelas de ossos eram um fenómeno de culto público. Enquanto os ossários eram de acesso mais restrito e visitadas sobretudo pelos familiares das pessoas que ai se encontrava sepultadas, as capelas eram de acesso livre e estavam mais presentes no quotidiano das pessoas. Por outro lado, nas capelas existia sempre a questão arquitetónica e de decoração do espaço.
Não se sabe ao certo quando terão começado a ser construídas as primeiras capelas dos ossos. A mais antiga ainda existente encontra-se no mosteiro ortodoxo de Santa Catarina (século VI) na península do Sinai, no Egipto. De acordo com Paul Koudonaris, historiador de arte e autor do livro Empire of Death sobre capelas dos ossos e ossários, a criação de capelas tornou-se popular durante o final da Idade Média, intensificando-se nos séculos XV e XVI.
Para José António Falcão, as capelas dos ossos “colocam-nos, à sua escala, perante o espetáculo da morte” e “perante aquilo que tem de mais terrível, mas também de mais estético”, através da conjugação de conhecimentos científicos, anatómicos e estéticos. Têm por base “uma reflexão teológica sobre o destino, a vida o humana e sobre o que é efémero e duradouro no mundo”, apelando ao mesmo tempo à “curiosidade visual, à imaginação. Representam a morte em ação, mas são também “um retrato de nós próprios”.
A versão portuguesa
A prática da construção de capelas dos ossos em Portugal estende-se, tanto quanto se sabe, do século XVI ao século XIX. Atualmente existem ainda de pé nove capelas, um número que, de acordo com Paul Koudounaris, é apenas igualado pela República Checa.
As capelas estão localizadas nas regiões do Alentejo e Algarve, colocando-se assim a hipótese de ter existido uma expansão de norte para sul. Carlos Veloso, no livro As Capelas de Ossos em Portugal, afirma que não é “categórico que não existam mais, sendo perfeitamente possível encontrarem-se outras em ruínas ou encerradas e praticamente desconhecidas da maioria dos moradores locais”.
Apesar de mais comuns no sul da Europa, provavelmente todos os países europeus cristãos se dedicaram à construção de capelas dos ossos, mas nem todos têm ainda exemplares intactos, como refere Paul Koudounaris. As razões são variadas — em alguns locais simplesmente caíram em desuso ou foram abandonadas, enquanto em outros ruíram ou foram destruídas, como aconteceu na Alemanha na sequência da Reforma protestante. Portugal também não é alheio a esse fenómeno. Carlos Veloso não põe de lado a possibilidade de muitas capelas portuguesas terem sido extintas ou demolidas, como é o caso da do Mosteiro de Santa Cruz em Coimbra. Outro caso conhecido é o da capela da Igreja de São Francisco no Funchal, que existiu pelo menos até ao XIX, segundo o relato de alguns viajantes.
A capela de Évora, Campo Maior e outras tantas mais
A mais antiga capela dos ossos ainda existente em Portugal é a conhecida capela de Évora, integrada na igreja do mosteiro de São Francisco. A história da igreja remonta ao século XIII, data em que os franciscanos se instalaram na cidade. A construção da capela dos ossos é, porém, mais tardia. Julga-se que tenha sido criada no século XVII, durante o período filipino, apesar da estrutura arquitetónica ser datada do século anterior.
A capela foi construída no local do antigo dormitório quinhentista, no prolongamento da Casa do Capítulo. As paredes foram decoradas com milhares de ossadas humanas, provavelmente retiradas dos cemitérios das igrejas e conventos da cidade, em especial da própria igreja de São Francisco, um dos principais locais de enterro de Évora. Ao todo estimam-se que as paredes sejam compostas por cerca de cinco mil crânios.
Um pormenor que distingue a capela de Évora das restantes é a inclusão de dois corpos semi-mumificados, um adulto e um infantil. Apesar de ser a única em Portugal com esta particularidade, existem algumas capelas europeias que também têm múmias expostas. Porém, ao contrário do que acontece nessas capelas, os dois corpos mumificados de Évora não pertencem a nenhum frade do antigo convento. Apesar de não se saber o porquê da inclusão das múmias, Koudounaris avança com uma explicação. “As múmias foram incluídas para deixar uma mensagem sobre as fases da vida, de criança a homem e, claro, até à morte. São uma espécie de memento mori, com a intenção de inspirar as pessoas a viverem de acordo com uma conduta correta e a fazerem penitência”.
A capela de São Francisco de Évora terá servido de modelo para as outras capelas na região do Alentejo e Algarve, construídas posteriormente nos séculos XVIII e XIX. A segunda mais antiga parece ser a de Campo Maior, situada junto à igreja de Nosso Senhor do Calvário. A capela foi construída na sequência de um incêndio no paiol do castelo causado por um raio e que, segundo os cronistas, dizimou dois terços da população local em 1732. Em memória das vítimas foi construída a Capela das Almas em 1766.
A apenas 36 quilómetros dali, encontra-se uma outra capela, anexa à igreja de Santa Maria da Graça em Monforte, e em Faro existem outras duas, que ladeiam o antigo cemitério privado da igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo. Mais tardia, é a da igreja de São Sebastião em Lagos, que é praticamente desconhecida dos habitantes locais, e a de Alcantarilha em Silves, construída na igreja de Nossa Senhora da Conceição. Existem ainda duas mais pequenas, uma anexa ao claustro da Sé de Faro e uma outra junto à Matriz de Pechão, no concelho de Olhão.
Mas afinal, porque é que existem tantas capelas em Portugal?
Para Paul Koudounaris a questão é outra. “A verdadeira questão é porque é que sobreviveram tantas, porque a determinada altura eram muito comuns na Europa”, explicou. Apesar disso, o historiador parece não ter encontrado uma resposta para o enigma. “Talvez os portugueses sejam mais protetores da sua história eclesiástica e não quisessem ver estas lembranças do passado destruídas”, admitiu.
Para José António Falcão, a resposta pode estar na influência franciscana em Portugal, que era especialmente forte no sul do país. “Se fizéssemos um quadro nacional, uma boa parte das capelas tem que ver com a influência franciscana”, referiu. “Geralmente onde há capelas dos ossos há uma grande influência dos franciscanos”, acrescentou.
As capelas portuguesas, à semelhança de muitas outras, estão ligadas à ordem franciscana, mais especificamente à ordem dos frades menores (a ordem masculina) ou, pelo menos, à família espiritual dos franciscanos. O fundador da ordem, São Francisco de Assis, foi um homem que renovou a espiritualidade da altura, deixando marcas profundas no catolicismo. Por outro lado, procurou também desmistificar a morte. Para ele, a vida era efémera e, por isso, era conveniente encarar a morte com naturalidade. “Sendo a capela dos ossos integrada na igreja de São Francisco, que fazia parte de um grande mosteiro franciscano, faz todo o sentido que ai exista”, disse José António Falcão ao Observador, referindo-se à capela de Évora.
Apesar de provavelmente não ter sido a primeira a ser construída, a capela de Évora terá servido de exemplo às outras que se seguiram. “É normal que quando um fenómeno resulta que seja replicado”, referiu Falcão. Também Paul Koudounaris aponta que o fenómeno eborense terá inspirado outros franciscanos a construírem réplicas. “Provavelmente inspirou a construção das mais pequenas nas cidades mais próximas, como é o caso de Monforte”, referiu.
Apesar de não haver certezas, em Portugal poderá ter havido uma preferência pela construção de capelas em vez de ossários subterrâneos, mais comuns em outros países onde já existia uma tradição anterior, como é o caso de Itália. Esta preferência poderá também explicar a existência de tantas capelas dos ossos no país.