Se o cérebro de Stephen Hawking fosse feito de ouro, ninguém sabe quantos quilates teria. Nunca quis fazer um teste de quociente de inteligência, porque “as pessoas que se vangloriam com os quocientes de inteligência são umas fracassadas“, disse uma vez quando o jornalista Piers Morgan lhe perguntou se Hawking se considerava a pessoa mais inteligente do mundo. A única ambição era “compreender completamente o universo, porque é, como é e porque existe de todo”. E conseguiu-o, numa espécie de batalha entre a mente e a matéria onde a primeira venceu: progressivamente preso a um corpo imóvel numa cadeira de rodas e dependente de uma voz metálica e robótica, Stephen Hawking deu um grande passo para a humanidade descobrir de onde veio e para onde vai. Morreu na madrugada desta quarta-feira aos 76 anos, no mesmo dia em que outro génio, Albert Einstein, completaria 139 anos se ainda fosse vivo.
Morreu Stephen Hawking, o génio da Física que resistiu à doença com humor
O legado que Stephen Hawking deixou ao mundo começou a ser edificado nos anos 60, quando era um estudante de segundo ano em Cambridge e o seu caminho se cruzou com o do físico matemático Roger Penrose. “Eu estabeleci um certo teorema matemático de relevância. Com base em alguns pressupostos plausíveis, demonstrava que uma estrela extremamente maciça em colapso resultaria numa singularidade no tecido espaço-tempo, um lugar onde seria de esperar que as densidades e as curvatura se tornem infinitas, dando-nos a imagem do que agora nos referimos como um buraco negro”, explicou o próprio Roger Penrose ao The Guardian.
[Veja no vídeo algumas das intervenções mais bem humoradas de Stephen Hawking em sitcoms e talkshows]
Enquanto o físico matemático matutava sobre o assunto, Stephen William Hawking sobrevivia à depressão em que entrou depois de ter descoberto, dois anos antes, que sofria de esclerose lateral amiotrófica, uma condição que o deixaria a pouco e pouco preso a um corpo sem capacidade de resposta e onde os neurónios se desligariam até à morte. Em 1965, Hawking já tinha fintado o destino fatal que os médicos lhe tinham dado quando foi diagnosticado, acabado de completar 21 anos e prestes a casar com Jane Wilde, estudante de línguas em Londres: é que os especialistas só lhe davam dois a três anos de vida, um número que Stephen Hawking esticou até aos 55.
A doença e o primeiro casamento, na ‘breve história’ de Hawking
Mesmo assim, esse ano traria grandes conquistas a Stephen Hawking. A vida dele havia de mudar no segundo em que entrou na palestra de Roger Penrose onde se debatiam as singularidades do tecido espaço-tempo, pontos do universo onde as leis da física postuladas na Teoria da Relatividade Geral já não se aplicam. “Hawking também andava a pensar sobre este tipo de problemas com George Ellis, que estava a trabalhar num doutoramento em St John’s College, em Cambridge. Os dois estavam a estudar um tipo mais limitado de teorema da singularidade que exigia uma suposição razoavelmente restritiva”, recorda Roger Penrose. Foi por isso que Dennis Sciama, que viria a tornar-se num dos nomes mais sonantes da cosmologia moderna, apresentou os dois: “Sciama fez questão de juntar-me a Hawking. Não demorou muito até Hawking ter encontrado uma maneira de usar meu teorema de forma inesperada, de um modo que poderia ser aplicado numa forma invertida no tempo num ambiente cosmológico”, escreveu no The Guardian.
Stephen Hawking deu sustento à Teoria do Big Bang
Vamos trocar isto por miúdos: não foi Stephen Hawking nem Roger Penrose que descobriram os buracos negros. A primeira pessoa a falar desses corpos foi o geólogo John Michell numa carta dirigida ao químico Henry Cavendish em 1783 para a Royal Society. Mas o conhecimento que tínhamos sobre eles era muito limitado — ainda mais do que hoje: sabíamos que os buracos negros eram regiões que resultavam de deformações no tecido espaço-tempo e que eram ocupados por corpos tão densos que nada, nem mesmo partículas que se movam à velocidade da luz, conseguem escapar. E também sabíamos que esses buracos negros nascem quando o núcleo de uma estrela extremamente maciça, que funciona como um gigantesco reator nuclear, fica sem combustível e colapsa até se transformar numa espécie de aspirador que consome tudo o que encontra pelo caminho. O que Stephen Hawking veio dizer é que os buracos negros são um dos tipos de singularidades que ele tinha vindo a estudar com Roger Penrose, que as leis da Teoria da Relatividade Geral não se aplicam nessas regiões. E, mais importante ainda: que uma dessas singularidades é, na verdade, o berço do universo.
É isto que explica Pedro Avelino, físico da Universidade do Porto, ao Observador. “Havia duas teorias dominantes que procuravam explicar qual era a origem do universo: a do Big Bang dizia que o universo tinha tido origem na explosão de um ponto extremamente quente e denso que levou à expansão e consequente arrefecimento do universo ao longo do tempo; e a do Estado Estacionário, que descreve um universo que dilata, mas onde as características são imutáveis. Stephen Hawking teve um papel crucial na demonstração da Teoria do Big Bang e foi algo que conseguiu logo no início da carreira“, conta o cientista.
A partir daí, a carreira de Stephen Hawking orbitou sempre em redor dos buracos negros. Mas seria apenas em setembro de 1973, três anos depois de a teoria do Big Bang ter ganho pilares mais sólidos, que o físico daria outro passo em frente. Tudo aconteceu depois de Stephen Hawking ter viajado até Moscovo para se encontrar com o diretor do Instituto dos Problemas da Física da União Soviética, Yakov Boris Zeldovich: “Ele e a equipa tinham estado a estudar esta questão dos buracos negros, em particular na forma como eles interagiam com a luz. Hawking voltou para Cambridge convencido que eles estavam a tramar alguma, mas que estavam a ir pelo caminho errado“, recordam John Gribbin e Michael White no livro “Uma Vida na Ciência”.
Aliás, uns anos depois, Stephen Hawking chegou mesmo a dizer: “Eu não gostei da forma como eles tinham chegado àqueles resultados, por isso intervim para fazer as coisas como deve ser”. Stephen Hawking estava prestes a provar que os buracos negros não são tão negros assim, que não é verdade que nada lhes escapa e que alguma radiação consegue fugir àquele imenso campo gravítico, como nos explica ao Observador o físico teórico Vítor Cardoso, do Centro para a Astrofísica e Gravitação: “Até aos anos 70 julgávamos que um buraco negro era eterno, que engolia todas as coisas e que nada lhe escapava. É verdade, mas só do ponto de vista da mecânica clássica, a que sustenta a Relatividade Geral. Na física quântica, a realidade é outra“.
Afinal, os buracos negros não são assim tão negros
A tarefa não foi fácil: estamos no século XX e tudo o que sabemos sobre a física baseia-se apenas na mecânica quântica e da relatividade, mas como se esses dois campos fossem linguagens opostas. Stephen Hawking não conseguia acreditar no que a matemática lhe dizia — que as duas linguagens podem, na verdade, conjugar-se e serem ambas verdadeiras: equações atrás de equações, as contas diziam-lhe que os buracos negros não consumiam mesmo tudo o que encontravam pelo caminho, mas que havia uma parte da radiação que era emitida. Nada disso fazia sentido. Hawking passou as férias de Natal inteiras com a cabeça enfiada nos livros na esperança de encontrar respostas em algum número calculado, uma conta mal feita ou um gráfico qualquer perdido entre as fórmulas. De nada lhe valeu: o resultado era sempre o mesmo. Intrigado, Stephen Hawking decidiu encontrar-se com Dennis Sciama, o supervisor que o tinha apresentado a Penrose uns anos antes, para lhe contar o que estava a acontecer. Dennis Sciama ficou tão entusiasmado que contou ao mundo o que Stephen Hawking tinha em mãos logo a seguir.
Stephen Hawking não tinha certezas de nada. As contas dele sugeriam que, “de um ponto de vista quântico, o buraco negro pode não só emitir radiação como até explodir. E isso aconteceu numa fase da história onde não se sabia casar as correntes clássicas e a física quântica, porque até hoje ainda é difícil”, contextualiza Paulo Crawford, astrofísico da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Por isso é que os resultados de Hawking eram tão entusiasmantes. E eram entusiasmantes ao ponto de, na festa onde celebrava o 32º aniversário, o cientista ter ficado 45 minutos ao telefone com Roger Penrose, que tinha sabido das novidades através de Sciama, para conversarem sobre as boas novas. A conversa foi de tal forma prolongada que a comida arrefeceu e os convidados dispersaram. Mas não fazia mal. Em finais de janeiro, Stephen Hawking assumiu finalmente os resultados como verdadeiros e fez com que Martin Rees, um respeitado cosmólogo e astrofísico, andasse aos pulos pelos corredores do Instituto de Astronomia e entrasse de rompante no escritório de Sciama para lhe dizer: “Ouviste o que se anda por aí a dizer? O Stephen mudou tudo!”.
As viagens no tempo e o regresso ao futuro, segundo Stephen Hawking
E mudou mesmo. “O que Stephen Hawking veio dizer é que não é totalmente verdade que a luz fica aprisionada dentro dos buracos negros. Eles têm uma superfície que limita a parte de dentro e a parte de fora do buraco negro. Nessa superfície, e segundo o princípio da incerteza, há pares de partículas que se formam na vizinhança — onde há calmaria e onde as leis da física funcionam normalmente –, mas onde uma parte é engolida e outra escapa e é emitida. Essa radiação que é emitida tem características térmicas, portanto um buraco negro é um sistema termodinâmico“, explica ao Observador José Pedro Mimoso, professor de cosmologia e astrofísica relativista da Faculdade de Ciências de Lisboa.
Essa radiação recebeu o nome de “Radiação Hawking” e é à conta dela que “os buracos negros vão perdendo massa”, esclarece Vítor Cardoso. Como os buracos negros perdem mais massa do que aquela que ganham, eles encolhem progressivamente até evaporarem. “O que Stephen Hawking fez com estas descobertas foi tirar-nos do abismo. O grande contributo que deu à humanidade foi acima de tudo pô-la a pensar sobre as coisas à nossa volta. Pôs-nos a pensar sobre o que existia antes do Big Bang: será que a ideia que criámos de Deus é a entidade que existe antes do Big Bang? E será que o nosso fim é um buraco negro? Talvez não. Stephen Hawking tomava conta das coisas que nos ultrapassam“, conclui o físico teórico.
Foi em fevereiro de 1974 que Stephen Hawking revelou ao mundo o que descobrira, numa conferência no Laboratório Rutherford-Appleton em Oxford. Tentou por tudo mascarar o nervosismo, mas a comunidade já lhe conhecia os tiques: sempre que iria fazer uma grande declaração, assistia às apresentações de outros cientistas e fazia muitas perguntas capazes de colocar em xeque as teorias dos colegas. Depois chegou a sua vez: “Levaram-no até ao palco e as ilustrações foram projetadas na parede atrás dele enquanto falava em tons quase incompreensíveis aos quais os colegas já se tinham habituado. A última frase foi dita. Podia ouvir-se uma gota de água a cair enquanto a audiência de cientistas tentava absorver aquelas notícias incríveis. Depois, o ataque começou”, lê-se no livro ‘Uma Vida na Ciência’.
John G. Taylor, que era supostamente o moderador da conversa, levantou-se, apontou o dedo a Hawking, disse que aquilo não fazia sentido algum e começou imediatamente a escrever um relatório a criticar todas as descobertas que o físico teórico tinha acabado de anunciar. A revista Nature, para onde John G. Taylor enviou o texto, pediu a Stephen Hawking para comentar o documento ainda antes de o publicar: “Ele respondeu a aconselhar que se publicasse o parecer de Taylor. Não iria impedir alguém arrojado o suficiente para desancar no seu trabalho sem nunca ter estudado a matéria“, contam John Gribbin e Michael White.
Dois anos depois, no entanto, a comunidade começou a compreender a lógica de Stephen Hawking, depois de os soviéticos que o inspiraram terem eles próprios aceite as descobertas do britânico como verdadeiras e sustentadas. Tudo aconteceu quando Kip Thorne, físico americano, estava no apartamento de Zeldovich — o russo que tinha inspirado Hawking a dar os primeiros passos naquela descoberta. “Zeldovich andava a vaguear pelo apartamento quando Kip Thorne entrou, e numa teatral exibição o físico russo levantou os braços em desespero e disse: ‘Eu desisto, eu desisto. Eu não acreditava, mas agora acredito‘”.
O empurrão que Hawking deu nas ondas gravitacionais
É assumido que a fama de Stephen Hawking teve epicentro no livro “Uma Breve História do Tempo” e que, para a comunidade científica, o físico teórico ficou gravado na História à conta dos teoremas da singularidade — que nos explicaram a origem do universo — e da radiação de Hawking. Mas ainda antes de todas essas descobertas, Stephen Hawking também esteve envolvido num dos primeiros estudos sobre a análise das ondas gravitacionais, previstas por Albert Einstein na Teoria da Relatividade Geral e cuja origem nunca tinha sido comprovada até 2016.
É isso que nos recorda o físico Vítor Cardoso: “Outro aspeto menos conhecido é que Stephen Hawking também se dedicou às ondas gravitacionais. E até moveu esforços em Cambridge para se construir um detetor. O que ele dizia era que as ondas gravitacionais eram deformações no tecido espaço-tempo que podiam ser explicados pela colisão de dois corpos altamente densos, como os buracos negros”. Essas ideias foram expostas num estudo publicado em 1971 que se chamava “Radiação Gravitacional de Buracos Negros em Colisão”. E provadas no mesmo dia em que a Teoria da Relatividade Geral de Einstein foi oficialmente confirmada depois de um grupo de astrónomos ter conseguido ouvir e gravar o som de dois buracos negros a colidirem a mil milhões de anos-luz de distância, produzindo ondas gravitacionais. Esta foi a primeira prova de que essas deformações existem mesmo no tecido espaço-tempo e que perturbam os campos gravitacionais, algo que Albert Einstein tinha previsto no século passado.
Nada disto valeu a Stephen Hawking um Nobel da Física. Nada que espante o astrofísico Paulo Crawford, já que, “embora se considere todo o trabalho de Hawking válido, nunca se observou na prática nada do que ele propôs na teoria“. E é provável que isso demore muito tempo a conseguir, mesmo tendo em conta a rápida evolução tecnológica que tem servido a ciência: “Existem buracos negros aos biliões e os efeitos que Stephen Hawking teorizou são muito pequenos. É verdade que os buracos negros têm temperatura. Mas são muito baixas, mais baixas ainda do que a radiação cósmica, já perto do zero absoluto”, explica Vítor Cardoso. E José Pedro Mimoso concorda: “Quando o Hawking propõe a radiação, esse feito é um efeito quântico que acontece numa situação extrema. É difícil de provar porque, em ciência, as hipóteses só ficam provadas através da experiência e nós nunca conseguimos observar nada do que Stephen Hawking nos propõe. E quando falamos de buracos negros estamos a falar de sistemas no limite da nossa escala de existência, digamos assim”, descreve.
Provar as singularidades que Stephen Hawking disse estarem na origem do Big Bang e as características que ele previu nos buracos negros envolveria olhar para um mundo atómico 13 ou 14 milhões de vezes mais pequenos do que nós. Mas talvez seja uma questão de tempo, acredita José Pedro Mimoso: “Demorou um século, mas ainda há dois anos provámos as teorias de Einstein, uma coisa que significou uma investigação tão intensa que equivale a encontrar um cabelo a quatro anos-luz de nós”.
É que a contribuição do físico teórico vai muito além das contas matemáticas, diz Vítor Cardoso: “Enquanto espécie, ele deu-nos outros horizontes. Não sabemos o que acontece dentro de um buraco negro nem o que acontece depois, não sabemos se existe apenas o nosso universo ou vários, nem sequer sabemos o que existia antes dele ou para onde vamos. Mas pelo menos Stephen Hawking pôs-nos a pensar sobre tudo isso. Um Nobel é importante, mas não é tudo”.