Vários clientes estão a perguntar ao banco se é possível renegociar o crédito à habitação, para atenuar o impacto da subida rápida das Euribor. Em resposta estão a ser avisados de que isso seria comunicado ao Banco de Portugal e, por essa razão, poderia “influenciar” futuros pedidos de crédito. Quem avançar com renegociações ao abrigo da nova legislação apresentada pelo Governo, alertam os bancos, vai passar a ser considerado “cliente de risco” – não só por aquele banco mas por todos: e vai perder acesso a novos créditos ou terá de pagar juros mais pesados em futuros empréstimos.

Foi exatamente isso que foi dito a um cliente do Novo Banco que contactou a gestora de conta, por e-mail, para saber se seria possível baixar a prestação com um prolongamento do prazo do crédito. Esta é uma das principais soluções possíveis previstas pelo Governo na nova legislação que veio forçar uma negociação entre clientes e bancos quando as taxas de esforço ultrapassam certos patamares. Quem tiver margem para adicionar mais alguns anos ao crédito, sem ultrapassar os limites de idade, pode fazê-lo – e o Governo até colocou na lei a possibilidade de voltar atrás nos primeiros cinco anos após essa extensão dos prazos.

Mas a inquirição pelo cliente não é bem recebida. “Adicionalmente informo”, lê-se no e-mail enviado pela gestora de conta do Novo Banco, que se o cliente pedir o alargamento do prazo o banco “vai ter de informar o Banco de Portugal que o seu crédito foi reestruturado”, o que “naturalmente poderá ter influência em futuros pedidos de concessão de crédito nesta ou em outras instituições bancárias”. E reforça: se pedir ajuda, a pessoa “deve ficar ciente que um crédito reestruturado significa que passou a ser um cliente com potencial risco de incumprimento“.

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O e-mail visto pelo Observador está longe de ser caso único. Natália Nunes, coordenadora do gabinete de proteção financeira da DECO, diz que estes avisos e “entraves” estão a ser recorrentes. Referindo-se sobretudo a casos relatados por pessoas que foram presencialmente ao balcão, Natália Nunes afirma que aos clientes está a ser dito que “se mexerem no crédito isso vai para a Central de Responsabilidades de Crédito [plataforma gerida pelo Banco de Portugal] e depois ficarão sem poder obter mais créditos, no futuro, ou ficarão mais caros“.

“Não digo ‘os bancos‘ porque pode haver casos de excesso de zelo por parte de alguns funcionários, mas há funcionários que estão a dar a entender que podem advir daqui problemas para o futuro“, diz Natália Nunes. Isso “acaba por desmotivar as pessoas em relação a prosseguir com a renegociação”, acrescenta coordenadora do gabinete de proteção financeira da associação de defesa do consumidor.

Pior: segundo relatos que chegaram à DECO, há pessoas que estão a receber o mesmo tipo de aviso quando vão ao banco pedir apenas uma redução do spread, mesmo que seja apenas por razões comerciais e não necessariamente por dificuldades financeiras. Estes são clientes que pedem uma redução do custo cobrado pelo banco simplesmente porque o mercado bancário tem vindo a cobrar spreads cada vez mais baixos nos últimos anos – sendo o spread a margem que o banco cobra além do indexante (Euribor).

Pode ou não haver marcação? Secretário de Estado esclarece pouco

Os avisos dos bancos fazem ou não sentido? Pode afinal haver lugar, ou não, à tal “marcação”? Depois de alguns banqueiros terem avisado que isso aconteceria nos casos de reestruturação dos créditos, o Observador questionou diretamente o secretário de Estado responsável pelo diploma, João Nuno Mendes, sobre que mensagem é que queria transmitir à população sobre esta matéria.

A pergunta foi feita em conferência de imprensa a 3 de novembro. E a resposta do secretário de Estado das Finanças foi a seguinte: “Os bancos, o regulador, as pessoas, as entidades de defesa do consumidor, estão muitíssimo habituadas ao regime do Plano de Ação para o Risco de Incumprimento (PARI)“, o regime que existe há vários anos (e foi reforçado no fim das moratórias lançadas na pandemia). O que a legislação apresentada em novembro fez foi clarificar e padronizar o acesso a esse regime existente – o PARI – determinando, por exemplo, que quem passou a ter uma taxa de esforço superior a 36% (com subida de cinco pontos percentuais no último ano) deve renegociar a dívida com o banco.

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O secretário de Estado continuou a resposta dizendo que a nova legislação criava “um espaço de trabalho entre o banco e o cliente“. E as questões lançadas pelo Observador “são questões podem ser debatidas entre o banco e o cliente”.

O objetivo do Governo com esta legislação foi “encontrar soluções” para quem se vê em dificuldades devido à subida repentina das Euribor. “Não é para gizarmos todas as dificuldades possíveis e imaginárias antes de o processo começar”, acrescentou, sublinhando que o Governo estava “muito confortável com o diploma” que, sublinhou várias vezes, foi elaborado sempre em articulação próxima com o Banco de Portugal.

E o Banco de Portugal, pela voz do governador Mário Centeno, diz que “não há no quadro legal vigente, nem no decreto-lei [apresentado em novembro], nenhuma inevitabilidade de que uma renegociação naqueles moldes resulte numa ‘marcação’ por incumprimento“.

Não há uma “marcação” por incumprimento, mas pode haver “marcação” por reestruturação devido a dificuldades financeiras. Quem o confirma são os próprios bancos que sublinham que “essa situação não depende dos bancos, mas da supervisão“. Diz fonte oficial do BPI, contactada pelo Observador, que “de acordo com as regras estabelecidas pelo supervisor, o crédito renegociado ao abrigo do atual Decreto-Lei fica classificado como ‘crédito reestruturado’ na Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal e consequentemente poderá ter impacto na concessão, renegociação e/ou renovação de qualquer outro crédito“.

A mesma fonte diz que o BPI “prestará essa informação aos clientes no processo de renegociação, se ele vier a existir” e conclui dizendo que, “todavia, uma eventual renegociação não significa para o BPI uma perceção necessariamente negativa sobre o cliente“.

O “estigma” para os clientes e a penalização para os bancos

O Novo Banco não respondeu a um pedido de comentário acerca do e-mail partilhado pelo seu cliente com o Observador. Já o Millennium BCP foi o primeiro a falar publicamente sobre esta matéria: ainda antes da apresentação oficial do diploma, o presidente-executivo Miguel Maya avisou que poderia haver um “estigma” associado a estas renegociações.

BCP avisa clientes do “estigma” de pedir reestruturações de crédito devido às subidas da Euribor

O banqueiro avisou no final de outubro que a nova legislação trazia o risco de se “criarem incentivos errados, se tiverem implícito que uma reestruturação não tem custos”. “Tem sempre custos, não é uma questão de marcar os clientes mas há um estigma“, alertou o presidente da comissão executiva do BCP, avisando os clientes que não podem achar que “é tudo de graça”.

Já o presidente da Caixa Geral de Depósitos, Paulo Macedo, recusou a ideia de que os clientes sejam “marcados” ou passem a ser alvo de um “estigma” caso peçam essa reestruturação. O que a Autoridade Bancária Europeia (EBA, na sigla mais utilizada) exige é que os clientes que foram reestruturados sejam assinalados no sistema – isso não depende do Governo nem dos bancos, esclareceu Paulo Macedo.

Mas nenhum desses clientes ficará afetado na relação com o banco, garantiu o banqueiro. “Há clientes que podem pedir a renegociação e, por exemplo, têm uma relação positiva antiquíssima connosco e até têm depósitos”, referiu Paulo Macedo.

Porém, mesmo que para as pessoas Paulo Macedo garanta que não há consequências, se houver muitas pessoas a pedir reestruturação isso será negativo para o balanço dos bancos e para a qualidade dos seus ativos. Nas regras contabilísticas da EBA, um crédito em stage 1 indica que não houve deterioração da condição financeira, stage 2 denota alguma deterioração da situação financeira e stage 3 refere-se a um incumprimento ou reestruturação já consumados.

Os créditos que forem objeto de reestruturação passam para stage 2“, confirmou Paulo Macedo.