A proposta está no programa socialista e prevê os trabalhadores possam integrar os conselhos de administração, para terem uma palavra na política de salários e dividendos das grandes empresas. O bastonário da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas não só concorda, como considera que a medida seria até “muito positiva” para reforçar o controlo financeiro das empresas.
Até porque, defende José Rodrigues de Jesus em entrevista ao Observador, a porque a auditoria e a contabilidade “são coisas de esquerda”. Admite que é “um pouco uma brincadeira”, mas pode ser vista como uma provocação aos liberais. “O auditor é que avisa o liberal que tem de pagar impostos”, alerta o bastonário. São conceitos que nasceram na esquerda, mas que hoje são mais aceites pelos gestores. “Não é possível hoje gerir uma empresa como há 20 anos, em que tudo quero, posso e mando”, diz.
José Rodrigues de Jesus reconhece falhas no trabalhos dos auditores, mas também considera que “são bodes expiatórios” do que corre mal. Sobre os casos que têm abalado a auditoria em Portugal não se alargou, porque não quer fazer julgamentos. E deixou avisos. “Não se pode ficar descansado só porque sabe que a empresa tem um auditor”. Também é necessário que haja literacia financeira. E há o risco de desaparecerem mais auditoras.
Como explica o trabalho de um auditor que fiscaliza as contas de uma empresa?
Se quiser prestar contas a alguém, tem que haver duas pessoas a verificar. E uma tem que ser independente. Para estarmos numa profissão deste tipo temos que ser independentes. O que é uma pessoa independente? Nas aulas costumo usar o jornalismos como uma exemplo de uma profissão independente. A independência obtém-se com formação, cultura, exige um esforço próprio, é preciso treinar. E tem custos. Tem de prescindir de um certo número de coisas. Tem o exemplo dos secretários de Estado que foram aos jogos de futebol (a convite de uma empresa).
Um auditor não pode aceitar esse tipo de convites?
Pode e deve, no domínio da cortesia. O limite é apenas o bom senso, como num jornalista. Há um código de conduta do auditor mas não define valores, mas sim as ameaças ao cumprimento dos princípios da profissão e como podem ser reduzidas ou eliminadas. Uma vez uma empresa pediu-me para fazer uma avaliação e eu sabia que havia um problema fiscal que acabaria por passar num tribunal. Era uma empresa que costumava convidar-me para o seu camarote para ver o Porto jogar. Sugeri que pedissem a outra pessoa e depois fui testemunha e disse ao juiz que achava que a empresa tinha razão, mas contei-lhe porque não assinei o relatório.
Mas também há problemas de independência que não se colocam no sentido de pagar ou corromper. É o caso dos trabalhos que o auditor pode fazer, para além da certificação de contas. Pode dar pareceres fiscais? Pode fazer trabalhos de consultoria? Nas grandes empresas, é preciso um conjunto forte de valências e aí é preciso ter departamentos especializados que tragam rendimento.
E há tentativas de influenciar o trabalho dos auditores?
Um auditor não tem de estar numa posição de confronto, é normalmente um trabalho de colaboração. Não são frequentes os casos em que rejeita as contas. E quando isso acontece faz um pré-aviso e o gestor da empresa ajusta as contas em conformidade.
O que faz quando lhe apresentam um papel com números? Como os verifica?
É preciso saber contar o dinheiro, ler os extratos bancários, perguntar ao banco se o dinheiro está lá. Há uma técnica que é circularização. O auditor pode obrigar a empresa a solicitar ao banco que informe diretamente o auditor e o que se passa com os bancos acontece numa fábrica com as matérias primas. Se quiser ver a informação, a primeira pessoa a quem tem de perguntar é ao presidente da instituição ou ao administrador financeiro. Quando estou a questionar alguém da hierarquia, ele sabe que estou em relação direta com o administrador. O auditor está ao nível da hierarquia máxima. As empresas são obrigadas a dar informação e ela está disponível logo. É verdade que se quiser ocultar algumas coisas também sei como fazer. Se eu, gestor, quiser fazer as contas mal feitas, faço-as e há coisas que temos de pescar.
É fácil enganar os auditores?
Não é fácil enganar os auditores. Uma das obrigações do auditor é conhecer o negócio, conhecer a empresas. Muitas vezes ando nas empresas com os capacetes e vou às fábricas ou minas. É preciso sujar as mãos. Num banco nem tanto. Agora não é fácil enganar um auditor, mas é possível.
Como é evitar a cumplicidade entre auditor e auditado? As empresas também são vossos clientes…
Esse é sempre um problema. O auditor pode cometer erros, contar mal o dinheiro, fazer cálculos errados nas existências. Mas tem de agir com independência. Existe a obrigação de rotatividade porque se pressupõem que a estadia da empresa para além de um certo número de anos, cria relações de familiaridade. A lei impõe a rotação dos auditores nas empresas grandes, mas nas outras é preciso mitigar esse risco. O próprio auditor tem de demonstrar a sua independência. Faz o trabalho de revisão das contas da empresa, mas o seu trabalho também é revisto.
Por quem?
O próprio revisor tem de ter um controlo. Uma pessoa que trabalha sozinha pode contratar um colega para fazer a revisão. Muitos auditores já o fazem. Nas grandes empresa onde há muitos revisores, há um departamento que tem a competência de fazer a revisão antes de ser emitida a opinião. A Ordem também o faz.
A história recente tem tido casos de conta ou com irregularidades ou informação omitida que os auditores deixaram passar. Houve falha ou foram enganados?
Há de tudo.
Estou a falar de casos públicos em que há processos nos reguladores contra os auditores, o Banco Espírito Santo, em que houve uma sanção, do BPN e da PT. A auditoria falhou?
Não posso dizer isso, não conheço os casos em concreto. Conheço algumas coisas e dos jornais, mas não posso fazer essa avaliação porque, honestamente, não sei. Isso implica um julgamento. Houve casos complicados na banca.
A classe não reflete sobre isto?
Isto afeta a classe e enquanto não está julgado é complicado, nem se sabe se a auditoria foi bem feita ou não. Ou se foram enganados. Ou se o supervisor sabia.
Alguma coisa mudou na sequência desses casos que levantaram dúvidas sobre a auditoria em Portugal?
As alterações e melhorias resultam muitas vezes por saltos quando temos um sinistro. Foi o que aconteceu no combate aos incêndios de 2017. Quando há coisas destas, há mudanças. Mas o que está a acontecer em Portugal está a acontecer em todo o mundo.
Essas mudanças vêm do exterior ou da própria classe?
Uma sociedade exigente que sabe o valores das pessoas e o valor social das empresas, torna a profissão mais exigente, mas isso resulta de todos nós e não apenas dos auditores. O auditor não é uma pessoa estranha à sociedade, mas deve ser uma pessoa de ponta, mais avisado. É como um padre ou um jornalista, deve ser uma espécie de elite. Os revisores têm consciência disso. Mas não estão sozinhos. A qualidade das auditorias também reflete a qualidade das empresas e da gestão.
Sente que há mudança qualitativa na gestão das empresas em reação a estes casos?
Há naturalmente. Mas os acionistas, são também os donos.
E já agora é mais fácil auditar uma empresa com muitos donos ou apenas um?
É igual, o auditor tem de medir os riscos. Mas o capital nem precisa de estar muito disperso. Se tiver uma empresa de dois amigos tenha cuidado, porque ao fim de algum tempo um divorcia-se ou vem um filho que quer um Mercedes. Também há empresas com muitos acionistas que são controlados por uma família, mas têm uma gestão mais profissionalizada. Muitos dos problemas dos auditores, estão antes de mais na gestão. Quando há uma dispersão e acionistas minoritários, há interesse da gestão em ter lá pessoas independentes.
Mas as empresas não são apenas os sócios, são também os trabalhadores, a sociedade, os problemas do género e da diversidade, Não é possível hoje gerir uma empresa como há 20 anos, em que tudo quero, posso e mando. O programa do PS defende a intervenção dos trabalhadores na fixação de salários e na distribuição de rendimentos, como existe na Alemanha. Uma das hipóteses é entrarem nos conselhos de administração para intervirem em certos aspetos.
E acha que isso do ponto de vista do controlo financeiro é positivo?
É muito positivo. A contabilidade e a auditoria são coisas de esquerda.
Porque diz isso?
É um pouco uma brincadeira, mas eu explico. O liberal é aquele que acha que pode fazer tudo, mas quando a gente (o contabilista, o auditor) lhe diz: Olha que tens de pagar impostos e tens de prestar contas certas… Um trabalhador estar num conselho de administração é uma coisa de esquerda. Mas também há capitalistas que estão a pedir esse modelo.
Quando fala em esquerda é no sentido em que as empresas também têm de devolver uma parte dos ganhos ao Estado, aos trabalhadores…
Sim. As empresas existem também num contexto de produção social. Mas não foi sempre este o conceito, lembre-se da Revolução Industrial. Isto partiu de um conceito de esquerda, mas já é uma coisa mais natural. Falando hoje com abertura, já toda a gente aceita.
Já não encontra um gestor que recuse esses conceitos?
Encontra, mas encontra menos.
Preside à comissão de acompanhamento do Novo Banco nomeada pelo Fundo de Resolução, tema sobre o qual não quer falar nesta entrevista. Mas gostava de lhe fazer perguntas sobre as imparidades na banca. Muito por causa do Novo Banco e da Caixa, ficamos com a ideia de que os bancos adiaram o reconhecimento das perdas porque não tinham capital para cobrir as perdas. Qual foi o papel dos auditores?
Até hoje, tanto quanto sei, nunca houve qualquer acusação de que as contas não estivessem bem auditadas em relação às imparidades.
Mas porque é que as imparidades começaram a aparecer nos balanços quando a economia e as empresas já estavam a recuperar?
As contas foram auditadas e não houve nenhuma contestação à certificação de contas feitas pelos auditores. Nunca ninguém levantou o problema,
A banca é mais complexa para os auditores?
O problema também se coloca nas empresas. Veja o caso da General Electric (empresa americana sobre a qual foram noticiadas suspeitas de fraude contabilística) e há o caso da Enron (empresa americana que faliu em 2001 por causa de contas falsificadas). Não é preciso ser banco.
Isso são fraudes contabilísticas, estou a falar da maior dificuldade em avaliar o valor dos ativos dos bancos, que são créditos e as respetivas garantias.
Há empresas onde essa dificuldade também existe quando estamos a falar de mercadorias. É preciso saber e ser especializado. Por exemplo, o Vinho do Porto precisa de tempo de estadia para envelhecer. E não é fácil dizer se o vinho vale aquilo ou não . Para mim, é mais difícil tratar do vinho do Porto do que de um banco.
Quando concede um empréstimo, o banco tem que saber se o cliente tem condições de pagar. É preciso saber o que aconteceu nos anos recentes, se pagou as dívidas e quais as perspetivas do negócio. O problema das imparidades passa por saber apreciar o devedor.
E não houve falhas graves na avaliação da capacidade dos devedores em Portugal?
Não tenho notícias disso.
Há casos conhecidos de dívidas de centenas de milhões de euros que quando se vai executar só há uma mota de água ou uma garagem.
Isso é hoje, mas o crédito foi dado há uma dezena de anos e há dez anos o Sr. que refere (Nuno Vasconcellos da Ongoing) não tinha só uma mota de água. Com o tempo os auditores foram impondo perdas nessas operações. Quando se fala de auditorias deste tipo, é preciso saber o que aconteceu na origem, quando foi dado o crédito, como é que foi avaliado o devedor.
Esse exercício foi feito na comissão de inquérito à Caixa. Que lições se podem tirar?
Todos nós tiramos dali lições.
Acha que o auditor é como um supervisor, sempre o bode expiatório do que corre mal?
Não acho. É. As contas estão assinadas por dezenas de pessoas, desde os auditores, até aos contabilistas, diretores e administradores financeiros. A garantia da fiabilidade da informação é fundamental e o auditor é a último barreira. Antes, há os administradores, os auditoria interna os conselhos fiscais e comissões de auditoria. E não são só as demonstrações financeiras. Há uma quantidade de informação muito importante para o mercado. Quando um banco dá crédito, não se limita a ver contas. Vai ver quem são as pessoas, como é que as empresas funcionam e como está o mercado à volta. O trabalho do auditor tem de merecer confiança, mas para tal tem que ter controlo. A partir daqui colocam-se outros problemas. E quem faz esse controlo não tem de ser controlado?
As grandes auditoras e os revisores oficiais de contas passaram a estar debaixo da supervisão da CMVM. Mas a própria Ordem faz esse trabalho. O que tem sido feito?
Para além de criar um sistema de controlo interno, há o controlo externo, A Ordem começou a fazê-lo em 1994. A auditoria deu um salto muito grande com as privatizações (anos 90). Antes disso havia empresas públicas onde o tema não era tão importante e pequenas empresas. Foi a emergência das quatro grandes auditoras em Portugal resultou daí. E já houve mais. E há um risco grande de haver menos,
Há o risco de desaparecer mais uma auditora como aconteceu com Arthur Andersen há quase 20 anos?
Sim. Uma das coisas que preocupa hoje é existirem poucas auditoras e haver risco se alguma desta cair.
O que provocou a queda da Artur Andersen foi o escândalo contabilístico da Enron, É esse o risco que fala?
Veja o caso da General Eletric (grande empresa americana), já apareceram títulos a dizer que é pior do que a Enron.
A KPMG (auditora durante décadas da General Electric) teve processos em Portugal (caso BES), mas há outras auditorias com processos a nível internacional?
Todas as auditoras terão tido coimas e contraordenações. Algumas foram banidas aqui e ali. É o risco da profissão. É público, vem nos jornais. Todos temos problemas desse tipo.
O caso Enron, na qual existia uma contabilidade paralela para esconder os prejuízos, seria possível hoje?
Há vias tão paralelas que só se juntam no infinito. Não sei. Mas eu não digo que há contas certas. Digo que há contas de acordo com normas contabilísticas e as normas de auditoria em vigor. A própria dimensão dos valores depende das normas contabilísticas e estas regras mudam bastante, até em função da economia.
Um banco quando vai aprovar um empréstimo quer saber se está de acordo com o fisco e se vale no mercado. A emergência do justo valor (valor de mercado a cada momento) é muito importante para a tomada de decisão. As contas auditadas servem para alguma coisa, mas é preciso fazer auditorias específicas. Se eu quiser comprar a tasca da esquina, as contas não servem para muito mesmo que estejam certas. Eu preciso de saber qual é o volume de receitas efetivas.
Uma coisa é a realidade contabilística e outra coisa é a realidade…
Exato. Se olhar para o PSI 20 (índice das maiores empresas da bolsa) e comparar o valor de cotação bolsista e o capital próprio da empresa, não tem nada a ver. Em alguns casos, o valor contabilístico dos bancos é maior do que a cotação. Se quisermos comprar um banco, temos de fazer uma due dilligence.
O que não pode acontecer, é o cidadão – o interessado na informação da empresa – ficar descansado só porque sabe que a empresa tem um auditor. É necessário ler o relatório do auditor, a informação prestada pela empresa e é necessário que haja literacia financeira.
A Ordem tem competências disciplinares?
Sim, mas a maioria dos processo não são sobre a fiabilidade da auditoria. Há uma comissão de controlo de qualidade e faz-se a análise de alguns processos todos os anos. Cada revisor é visitado uma vez pelo menos durante três anos. Temos 1400 associados. O controlador faz o relato do que viu no trabalho de cada ROC e tem de observar duas coisas: o modo como a pessoa está organizada e atua, se tem meios, se faz formação, se e tem as quotas em dias. Além disso, é escolhido o processo de uma empresa para ver de fio a pavio o que o auditor fez. A partir de 2016, os auditores que têm clientes que são considerados entidades de interesse público, e são muitos, passaram para a supervisão da CMVM.
Um dos casos de contas estranhas validadas por um ROC, foi o da Yupido, uma empresa desconhecida com capital social de 29 mil milhões de euros.
A Ordem viu esse caso que é público, não posso dizer o que fez.
Se não se pode saber, o resultado do trabalho de fiscalização, não tem muita utilidade….
Não é bem assim. O nosso trabalho de fiscalização é controlado pela CMVM. Mas hoje há um regime de proteção de dados pessoais e não posso dar informação sobre o que acontece nos processos disciplinares.
Mas este auditor está a trabalhar?
Não está a trabalhar.
Queria tentar perceber como se pode validar um valor absurdo para capital social de uma empresa em Portugal?
Sabe o que estava em causa? Não. Eu também não sei. Sei que consequências teve na Ordem, mas não posso dizer. Se houver uma sanção e se o órgão disciplinar quiser que seja pública, determina que assim o seja.
O caso da Yupido deu muita visibilidade às questões de auditoria e de validade dos números contabilísticos. Qual é a vantagem para uma empresa ter um capital de 29 mil milhões de euros no papel?
Percebo o problema que coloca. Se causou um alarido, haverá um interesse público e uma lesão desse interesse. Mas não percebo como é que perante uma magnitude dessas, o Ministério Público arquivou. Se houve uma lesão do interesse público….
Não se percebe quem ganhou com isto?
E quem é que perdeu? Alguém perdeu. Se o interesse público foi lesado, o Ministério Público teria investigado. Nem era preciso prender ninguém, mas podia ter dissolvido a empresa e que eu saiba não o fez.