O Banco Central Europeu (BCE) não deixará de reforçar as medidas de apoio à economia europeia no combate ao choque causado pelo novo coronavírus, garantiu Christine Lagarde esta quarta-feira, num discurso que lamentou não poder fazer em Sintra, mas que terminou com a promessa de que num futuro próximo será possível sair dos ecrãs e voltar ao resort português onde este Fórum anual do banco central habitualmente decorre. O “BCE esteve cá na primeira vaga, estará cá na segunda vaga também“, sublinhou, embora tenha passado boa parte do discurso a defender que os governos e a política orçamental têm um papel ainda mais importante a desempenhar – e foi a respeito disso, até, que Lagarde escapou ao “guião” e se congratulou pelo acordo obtido na terça-feira pelo Conselho da UE e o parlamento europeu sobre o novo orçamento plurianual.

O discurso de Lagarde não trouxe notícias capazes de mover o mercado – o seu antecessor, Mario Draghi, é que adorava usar este momento para atirar alguns “ossos suculentos” aos mercados financeiros. A francesa foi muito terrena, procurou uma linguagem simples e deu exemplos práticos que ilustram os desafios desta crise – só pecou por não fazer referência aos riscos futuros de tantos anos de política monetária tão expansionista. Além disso, muito importante: sossegou alguns investidores que pudessem ter achado que, com as notícias que saíram esta segunda-feira de uma vacina eficaz, o BCE poderia de alguma forma ter agora menos vontade de reforçar os estímulos no próximo dia 10 de dezembro.

Nas entrelinhas, ficou uma garantia de que daqui a um mês serão anunciadas novas injeções de liquidez na banca, a juros amigos e prazos longos, e uma aceleração das compras de dívida pública nos mercados de obrigações.

Embora todas as opções estejam em cima da mesa, o PEPP e as TLTROs têm provado a sua eficácia no ambiente atual e podem ser ajustados à forma como a pandemia evolui. Portanto, estes deverão provavelmente continuar a ser as principais ferramentas que usaremos para ajustar a nossa política monetária.”

Quando Lagarde anunciou, a 29 de outubro, que a retoma estava a “perder força mais rapidamente” do que o previsto e que mais estímulos seriam anunciados em dezembro (altura em que o staff de economistas do BCE irão atualizar as projeções económicas para a zona euro) a imprensa especializada fez várias tentativas de perceber exatamente que medidas poderiam ser anunciadas. Lagarde, na altura, respondeu que “todo o leque” de instrumentos poderia ser usado e que seria um pacote de medidas de vários tipos.

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Ora, neste discurso, a francesa indicou claramente que mais do que voltar a mexer nas taxas de juro – que já estão negativas, em 0,5% – o BCE tenderá a privilegiar um reforço dos montantes que o banco central usa mensalmente para comprar títulos de dívida pública (e pacotes de dívida privada) ao abrigo do programa PEPP [Programa de Compras na Emergência Pandémica, de 1,35 biliões] e, por outro lado, irá avançar com mais operações de injeção de liquidez nos bancos (TLTRO] que serão convidados a receber financiamento do banco central com prazos longos e juros muito baixos. Isto porque, como também disse Lagarde no seu discurso:

O que importa não é apenas o nível das condições financeiras, mas, também, a duração dos apoios. Todos os setores da economia têm de ter a confiança de que as condições financeiras irão continuar excecionalmente favoráveis por quanto tempo for necessário – especialmente porque sabemos que o impacto económico da pandemia irá agora prolongar-se até ao próximo ano.”

A presidente do BCE voltou a falar sobre as características “pouco comuns” desta crise económica, que tem a particularidade de ser uma crise causada por um “fecho deliberado da economia”. Por não ter sido uma crise de financiamento ou de quebra na procura, por alguma razão, esta foi uma crise que os países provocaram – e sabiam que estavam a provocar – ao obrigar setores produtivos a encerrar ou a limitar fortemente a sua produção.

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Isto contrasta, lembrou Lagarde, com o que aconteceu na crise após o colapso do Lehman Brothers. Nesse momento, “a indústria contribuiu com 2,8 pontos percentuais para a recessão e os serviços contribuíram com 1,7 pontos percentuais” – porém, “neste ano, a perda foi de 9,8 pontos percentuais nos serviços e muito menos, 3,2 pontos percentuais, na indústria”. Uma das implicações disso é que “a pesquisa económica revela que a recuperação de uma recessão em que os serviços têm pior desempenho tende a ser uma recuperação mais lenta do que uma recessão em que a indústria foi a mais penalizada”.

E porque é que isso acontece? Lagarde deu um exemplo prático de porque é que há uma perda económica mais irreversível: “as pessoas não irão, provavelmente, fazer o dobro das férias no estrangeiro no próximo ano, para compensar o facto de este ano não terem viajado para fora este ano”.

O programa PEPP tem uma flexibilidade que nos permite reagir de forma cirúrgica e combater riscos de fragmentação.”

Esta é uma frase que demonstra que Christine Lagarde compreende hoje, melhor do que quando tomou posse, a necessidade de dar este tipo de garantias aos investidores. Caso contrário, as taxas de juro dos países podem dilatar-se de forma a gerar, como se viu na última crise, os tais “riscos de fragmentação”, isto é, desmembramento de uma zona euro em que alguns países tiveram taxas de juro a caminhar para zero e outros taxas de juro de dois dígitos.

Numa das primeiras conferências de imprensa à frente do BCE, Lagarde cometeu o erro de dizer que o BCE não está cá “para reduzir spreads” nas taxas de juro dos países – um erro que depois corrigiu desdobrando-se em textos e entrevistas nos dias seguintes. Agora, a francesa já fala com maior consciência dos tempos imprevisíveis que vivemos e é por isso que se mostra sensível ao “impacto desnivelado nas economias” de uma “pandemia que tem um curso imprevisível”. A intervenção do BCE nos mercados de dívida é o que garante que esses riscos não voltam a gerar-se e que não se alargam em demasia as taxas de juro cobradas no financiamento a cada país e a cada economia.

E haveria boas razões para que isso pudesse acontecer: sabe-se que os países têm “folgas orçamentais” diferentes para investir no combate à pandemia e na retoma e sabe-se, também, que os sistemas financeiros de cada país vão sair desta crise em condições muito diferentes. E, a propósito, ainda esta quarta-feira a presidente do Mecanismo Único de Resolução veio demonstrar a desunião que existe na união bancária sobre a forma como os países devem ou não partilhar os custos económicos desta crise.

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A política orçamental tem de estar no centro do esforço de estabilização. Os planos orçamentais preliminares sugerem que haverá um apoio orçamental significativo no próximo ano, em linha com o que houve este ano, e o pacote NextGenerationEU deve entrar em funcionamento sem atrasos. E, na verdade, ontem foi um dia bom para a Europa. O Parlamento Europeu e o Conselho da UE chegaram a acordo sobre o próximo programa plurianual e sobre [a obtenção de] recursos próprios. É bom ver que a maioria das peças do puzzle orçamental começam a cair no devido lugar. Precisamos de assegurar que também as outras peças, em especial a legislação sobre o Mecanismo de Recuperação e Resiliência, sigam o mesmo caminho para que, depois, o acordo global seja finalizado com sucesso, por parte do Parlamento Europeu e do Conselho da UE”.

Um improviso, embora certamente bem preparado por Lagarde. O que está em itálico, no trecho acima, não estava no “guião”, isto é, no discurso oficial que foi divulgado pelo BCE, na íntegra, assim que a presidente começou a falar. Poderá ter sido apenas porque este discurso já tinha sido escrito há vários dias e não foi atualizado, mas, provavelmente, Lagarde quis desta forma reforçar o “recado” enviado aos outros responsáveis políticos para que avancem rapidamente com os recursos da chamada “bazuca” europeia, que foi alvo de um acordo, mas que está a tardar a entrar em funcionamento.

E pode tardar ainda mais, por mais que Lagarde faça o apelo para que “as outras peças (…) sigam o mesmo caminho”. No que toca ao Mecanismo de Recuperação e Resiliência – precisamente por implicar dívida emitida em conjunto, que por sua vez depende de uma alteração do teto dos recursos próprios – está dependente da aprovação de todos os parlamentos nacionais da UE, um processo habitualmente moroso. Isto para não falar de que a Polónia e a Hungria podem bloquear este novo acordo no Conselho Europeu, uma vez que – desta vez – está bastante mais explícito o respeito pelo Estado de Direito para aceder aos fundos europeus.

Lagarde sublinhou que esses recursos, que incluem o dinheiro resultante de uma emissão inédita de dívida por parte da própria União Europeia, são ainda mais essenciais para a retoma do que os estímulos do banco central. O investimento público, parcialmente suportado no programa de emergência da UE [o NextGenerationEU] será crucial, disse Lagarde, para “assegurar que esta recessão excecional nunca se transforma em outra coisa que não isso – excecional”, ou seja, assegurar que “não se transforma numa recessão mais convencional que se alimenta a si própria”.

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Isto é especialmente importante porque é preciso garantir, acima de tudo, que as pessoas comuns não deixam de olhar para esta crise pandémica como um “evento não recorrente”. Porque se isso acontecer poderá haver “mudanças de comportamento mais duradouras” do que aquelas que aconteceram na primeira vaga e que pareciam estar a voltar à normalidade nos meses do verão. “As famílias podem tornar-se mais receosas em relação ao futuro e dar mais prioridade à poupança”, o que pode afetar o consumo de forma perigosa. Por outro lado, “empresas que conseguiram sobreviver até agora, graças a um aumento do endividamento, podem decidir que continuar abertas já não faz sentido económico”, avisou Lagarde.

Embora as recentes notícias sobre uma vacina pareçam ser encorajadoras, podemos continuar a enfrentar ciclos recorrentes de aceleração da propagação do vírus e de medidas restritivas mais apertadas, até que uma imunidade generalizada possa ser obtida.”

Aqui está o comentário de Lagarde a algo que ainda não era conhecido na última vez que a presidente do BCE falou publicamente: a notícia de que a norte-americana Pfizer e a alemã BioNTech conseguiram produzir uma vacina que terá elevados níveis de eficácia – uma notícia que gerou uma autêntica euforia nos mercados financeiros na segunda-feira. Lagarde fez um pequeno sorriso quando se referiu a esta vacina “encorajadora” mas atirou com um banho de água morna: mesmo que haja vacina(s), “a recuperação poderá não ser linear mas, sim, instável, aos bochechos e dependente do ritmo de produção e distribuição da vacina”.

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Assim, nesta fase, “a atividade no setor dos serviços poderá ter dificuldades em recuperar totalmente”, lembrou a francesa. Conclusão: “o desafio-chave para os responsáveis políticos será fazer a ponte até que a vacinação esteja bem avançada e que a recuperação será capaz de gerar o seu próprio ímpeto”. E, pela sua parte, Christine Lagarde garante que, pela sua parte, o “BCE esteve cá na primeira vaga, estará cá na segunda vaga também”. Faltam as outras peças do puzzle.