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GEORGES GOBET/AFP/Getty Images

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Benoît Hamon: o Bernie Sanders francês quer taxar robots e legalizar a marijuana

Hamon é favorito nas primárias socialistas francesas de domingo. Propõe a introdução de um rendimento universal de 750 euros e a legalização das drogas leves. Referências? Varoufakis e Bernie Sanders

A conspiração começou a orquestrar-se no início de 2014. Manuel Valls, então ministro do Interior do governo de François Hollande, acreditava que o primeiro-ministro Jean-Marc Ayrault não tinha capacidade para liderar o governo e ambicionava tomar o seu lugar. Nesse sentido, aproximou-se de duas importantes figuras da ala esquerda do Partido Socialista (PS) francês – Benoît Hamon e Arnauld Monteburg —, prometendo-lhes mais influência no novo executivo em troca de apoio na pressão interna para derrubar Ayrault.

As possibilidades de êxito deste pacto eram remotas. Embora se conhecessem há 20 anos, do tempo em que todos militavam na Juventude Socialista e pertenciam à falange de seguidores do reformador Michel Rocard, os três homens não podiam estar em campos ideológicos mais longínquos no PS – Valls era a cara da via liberal e até já tinha proposto a eliminação do termo “socialista” do nome do partido, enquanto Hamon e Monteburg se mantinham fiéis às políticas sociais e repudiavam as medidas económicas cada vez mais austeras tomadas por Hollande. Contudo, o acordo consumou-se. E, pouco depois, Valls era indigitado chefe de governo, Monteburg via fortalecida a sua posição como ministro da Economia e Hamon estreava-se como ministro com a pasta da Educação.

A parceria durou menos de cinco meses. Incompatibilizados com o rumo que a governação estava a tomar, Hamon e Monteburg bateram com a porta. Desde então, tornaram-se deputados frondeurs (rebeldes); juntaram-se a um grupo de cerca de 40 parlamentares de esquerda que votaram contra quase todas as propostas apresentadas pelo executivo, forçando a dupla Valls/Hollande a recorrer sistematicamente a emendas constitucionais de exceção para aprovar legislação.

A parceria durou menos de cinco meses. Incompatibilizados com o rumo que a governação estava a tomar, Hamon e Monteburg bateram com a porta. Desde então, tornaram-se deputados frondeurs (rebeldes).

Os velhos camaradas seguiam por caminhos totalmente opostos. Mas a política é pródiga em reencontros inesperados. No verão do ano passado, Hamon, primeiro, e Monteburg, dias mais tarde, apresentaram as suas candidaturas às primárias do partido que iam determinar o candidato do PS às eleições presidenciais de 2017. No outono, foi a vez de Valls anunciar a sua participação, após o Presidente François Hollande ter tomado a inédita decisão de não se recandidatar – nunca antes na República francesa um Presidente tinha abdicado da corrida a um segundo mandato depois de um quinquénio no poder (nem nunca um Presidente tinha tido apenas 4% de aceitação pública).

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O embate aconteceu a 22 de Janeiro. Nessa manhã, poucos socialistas acreditariam que o relativamente desconhecido Hamon poderia vencer os adversários: Valls era o favorito, embora com a imagem desgastada pela liderança do governo mais impopular da história da democracia francesa, e Monteburg estava bem posicionado para apurar-se para a segunda volta. A noite trouxe resultados surpreendentes: com 36,2% dos votos, Hamon venceu as eleições, deixando o antigo primeiro-ministro a cinco pontos de distância e Monteburg fora da corrida (apelando imediatamente a um voto maciço dos seus apoiantes em Hamon na segunda volta). Como é que o político bretão, de 49 anos, baixo e franzino, conseguiu cativar mais de 600 mil eleitores socialistas?

Benoit Hamon e Manuel Valls chegaram a formar uma aliança, mas durou apenas meses

BERTRAND GUAY/AFP/Getty Images

“Os resultados podem ter sido surpreendentes para os analistas políticos, mas não para mim”, diz Nadège Soubiale, de 51 anos, professora e investigadora de Psicologia da Comunicação na Universidade de Bordéus, há quatro anos militante do PS. “Valls representa a decadência do Partido Socialista com a sua ideologia neoliberal e colagem à direita. Foi ele, juntamente com Hollande, que defraudou todas as expectativas do eleitorado socialista nos últimos anos. Hamon, por seu lado, apresentou na campanha ideias que, embora criativas e inovadoras, reaproximam o partido da sua génese de esquerda e da social-democracia”.

Hamon agitou o debate com ideias disruptivas como a introdução do rendimento universal com o pagamento de 750 euros a todos os franceses maiores de idade.

Enquanto Valls baseou a sua campanha numa plataforma estritamente realista, aborrecida para alguns, de crescimento económico sustentado e fortalecimento da lei e da ordem, Hamon agitou o debate com ideias disruptivas como a introdução do rendimento universal com o pagamento de 750 euros a todos os franceses maiores de idade. Para a financiar, sugeriu a angariação de receitas fiscais através da legalização da canábis e a taxação de robots, ou seja, passar a cobrar impostos às empresas pela riqueza gerada pela automação e não pelo trabalho dos seus funcionários.

As propostas deram origem a todo o tipo de reacções – aplausos, risos e críticas —, mas surtiram o efeito desejado: tornaram-se o centro da discussão na campanha. “O discurso de Valls foi sempre direccionado para uma vitória nas presidenciais, que todos sabem ser impossível. Hamon, que muitos acusam de ser utópico, foi mais realista. Consciente da impossibilidade de se tornar Presidente, optou por aliciar o eleitorado socialista com propostas inteligentes e apelativas, de forma a tomar as rédeas do partido e ser líder da oposição nos próximos cinco anos”, diz Martin Vaugoude, editor do jornal Le Télégramme, que, por ser da Bretanha, região natal de Hamon, tem sido o que há mais tempo acompanha o progresso do político socialista.

Cartaz com os candidatos à primeira volta das primárias francesas da esquerda

PASCAL PAVANI/AFP/Getty Images

Na última semana, a troca de palavras entre as comitivas dos dois candidatos endureceu. Manchou-se de lama. O deputado Malek Boutih, apoiante de Valls, acusou Hamon de ser “islamo-esquerdista” — um termo pejorativo que pegou de moda em França para descrever um alegado laxismo em relação ao islamismo. Franz-Olivier Giesbert, comentador político da France 2, rotulou a sua política como “trumpismo de esquerda”. Hamon reagiu com descontração: “Quanto mais críticas recebermos de pessoas do velho mundo, mais estaremos seguros de seguirmos o rumo certo”. O candidato tem usado frequentemente a expressão “velho mundo” para se referir ao sistema político dominante em França.

Aquele que é agora o favorito à liderança socialista nasceu há 49 anos na pequena povoação costeira de Saint-Renan, perto de Brest, no nordeste da Bretanha.

Contudo, Hamon faz parte há três décadas desse sistema. Tempo em que, maioritariamente, foi crítico e subversivo no interior da sua própria organização. Aquele que é agora o favorito à liderança socialista, nasceu há 49 anos na pequena povoação costeira de Saint-Renan, perto de Brest, no nordeste da Bretanha. Vive em união de facto com Gabrielle Guallar, francesa com ascendência catalã e dinamarquesa, relações públicas do grupo de luxo Louis Vuitton, com quem tem duas filhas. Gosta de literatura e tem um gosto musical eclético, que vai de Django Reinhardt aos rappers NTM. É apaixonado pelo rugby e joga numa equipa de deputados e senadores. É o primogénito de quatro irmãos, criados por um pai que trepou de operário a engenheiro-chefe no estaleiro de Brest e por uma mãe secretária. “Nunca conheci a pobreza mas percebi desde muito cedo que nem todos nascem com as mesmas oportunidades”, disse Hamon, em 2007, ao Le Télégramme.

Uma França demasiado branca

Quando Benoît tinha oito anos, o pai foi colocado no Senegal e a família mudou-se para Dakar. Estudou do 2.º ao 5.º ano numa escola de freiras maristas: “Tinha colegas africanos, brancos e libaneses. A educação era muito religiosa, mas o ambiente era profundamente multicultural”, contou ao jornal bretão. Com o divórcio dos pais, regressou a Brest, onde revelou sérias dificuldades de readaptação: “Estranhei tudo… o frio, o silêncio, os cheiros. Mas o que mais me incomodou foi a constatação de que tudo era demasiado branco, demasiado louro, uniforme”.

Brest quase não tinha imigrantes e Benoît irritava-se por, mesmo assim, muitos dos seus colegas manifestarem ódio contra estrangeiros. Na mesa do refeitório, lembra, havia apenas quatro colegas de esquerda. Já a Frente Nacional (FN), o partido de extrema-direita, contava com dezenas de apoiantes. A luta contra o racismo foi, assim, a primeira que abraçou. Aos 15 anos estava a colar cartazes à porta de um bar onde havia um concerto de rock, quando viu um grupo de skinheads espancar dois paquistaneses. “Ficámos tão revoltados que fomos tentar defendê-los e andámos à pancada”, contou na sua entrevista ao Le Télégramme. Foi a sua primeira escaramuça com nacionalistas. No passado mês de Dezembro, num programa de política da France 2, voltou a pegar-se com a FN, desta feita com palavras e não com os punhos, dirigidas a Julien Sanchez, presidente de câmara eleito pelos nacionalistas em Beaucaire: “Vocês têm uma ideia completamente errada da França. Vocês envergonham a França”.

Hamon já revelava na adolescência dotes de liderança. Era nas traseiras da sua casa, na Rue Véronèse, em Brest, que a canalha se juntava para experimentar os primeiros bafos em cigarros. Ele tornou-se num compulsivo fumador de Marlboro. “Aqueles 100 metros de asfalto eram o meu círculo mágico. Foi ali que conversei, brinquei e fumei horas atrás de horas com os meus amigos do liceu. Foi lá que estive sem fazer nada o máximo de tempo possível e o mais assiduamente possível em toda a minha vida”, revelou à revista Paris Match.

Hamon é acusado pela campanha do seu adversário de ser “islamo-esquerdista”

BORIS HORVAT/AFP/Getty Images

O ócio terminou com a entrada na Universidade da Bretanha-Ocidental, onde se licenciou em História. Porém, por esta altura, já era na política que estava focado. Depois da passagem pelo SOS Racismo, onde ajudou a desenvolver o mediático lema “Não toques no meu amigo” (hoje adaptado e usado pela FN: “Não toques no meu povo”), alistou-se aos 19 anos na secção de Brest do Partido Socialista. O timing não podia ter sido melhor: participou activamente nas acesas manifestações estudantis contra o projecto de reforma educativa do ministro Alain Devaquet.

“Ele tinha a consciência de pertença a uma geração e de ter uma grande responsabilidade na longa cadeia daqueles que fizeram avançar a sociedade francesa”.

Enturmou-se no clube Forum, uma organização de jovens socialistas que apoiava Michel Rocard, presidido por Manuel Valls, seu actual oponente nas eleições primárias. Foi então, há trinta anos, que os dois políticos se conheceram. Hamon começou a construir a sua rede de contactos na juventude socialista e, no final dos anos 80, mudou-se para Paris, onde ficou a viver numa república com quatro militantes co-partidários. “Fazíamos grandes tertúlias todos os dias, em que discutíamos a actualidade política. Era um momento de grandes decisões. O PS era o nosso cimento, o nosso ponto comum”, conta à revista Les Inrocks, Olivier Faure, líder parlamentar da bancada socialista, que se recorda de ver sempre os dois volumes de Génération, a obra de Hervé Hamon e Patrick Rotman sobre a odisseia do Maio de 68, no meio da roupa espalhada e das beatas amarfanhadas no quarto de Hamon. “Ele tinha a consciência de pertença a uma geração e de ter uma grande responsabilidade na longa cadeia daqueles que fizeram avançar a sociedade francesa”.

Diante da proeminência de outros rocardiens, como Valls ou Alain Bauer, Benoît teve dificuldade em destacar-se. Em 1991, porém, teve a sua primeira oferta de trabalho político, como assistente parlamentar do deputado Pierra Brana, que lhe ofereceu 2.000 francos (pouco mais de 300 euros) como primeiro salário. “Não é um homem superficial”, diz Brana. “Quando ele se mete num tema, fá-lo a fundo, não é daqueles que pára de ler um livro nas primeiras páginas”.

“Petit Ben” cresceu e ninguém reparou

Em 1993, Benoît viveu o episódio que lhe permite estar actualmente na calha para ser o candidato presidencial do PS. De modo a silenciar os militantes mais ambiciosos, os dirigentes do clube Forum decidiram entregar-lhe a presidência do Movimento dos Jovens Socialistas (MJS), que, à época, estava debaixo da alçada do partido. Em ano de eleições, a decisão foi vista como temporária. Porém, há muito que o MJS reclamava a independência em relação à casa-mãe e o bretão era uma das vozes desse coro reivindicativo. Sem meias medidas, convocou a direcção nacional que, de surpresa, decretou unilateralmente a autonomia. “Convocámos a reunião às três pancadas e escrevemos o comunicado de imprensa a anuciar a morte do velho MJS”, recordou Hamon ao Le Monde.

Em dois anos, impulsionou as adesões e organizou algumas acções espectaculares, como uma manifestação noturna em pijama diante do Hotel Matignon, onde o primeiro-ministro Edouard Balladur estava alojado.

Inicialmente, o PS tentou pôr cobro à rebelião da sua juventude nomeando um emissário para lhes cortar o ímpeto. Mas seguiu-se uma pesada derrota legislativa e o fim da era de François Mitterrand, com a ascensão de Rocard, a figura de proa da “segunda esquerda” e ídolo dos dirigentes do MJS, como primeiro-secretário dos socialistas. “Esta é a tua oportunidade. Bateste-te pela autonomia quando eras estudante, agora tens a possibilidade de a estabelecer”, disse Rocard a Hamon, segundo testemunho do último. Ele agarrou a oportunidade: em dois anos, impulsionou as adesões e organizou algumas acções espectaculares, como uma manifestação noturna em pijama diante do Hotel Matignon, onde o primeiro-ministro Edouard Balladur estava alojado.

“Esse foi o trampolim da carreira política de Hamon, graças ao qual ele conseguiu construir uma rede de apoio muito forte junto da juventude socialista que ainda hoje o segue e, em muitos casos, o venera”, diz Régis Juanico, seu sucessor no MJS e braço-direito da campanha para as primárias. Tal como Régis, o seu grupo de fiéis seguidores tem 20 anos e raízes no MJS autónomo.

Hamon num encontro promovido pelo Movimento de Jovens Socialistas

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Daí em diante, o crescimento de Benoît Hamon na esfera socialista foi lento mas sustentado. Em 1997, foi convidado por Martine Aubry, então ministra do Emprego e da Solidariedade, para incorporar o seu gabinete com o dossier de emprego jovem. Foi ela quem inventou a alcunha pela qual o bretão é conhecido nos bastidores do Partido Socialista – Petit Ben (pequeno Ben). O mote adequava-se à sua fisionomia, mas escondia também, alegam alguns dos seus apoiantes, uma crença por parte dos altos quadros do PS de que Benoît, prestável e humilde, nunca iria deixar de ser subordinado e almejar posições de chefia. “As pessoas que trabalharam com ele tiveram sempre a tendência para o subestimar”, diz Régis Juanico. “Mas ele soube retirar aprendizagens de cada gabinete por onde passou, amadurecer e construir a sua própria casa”.

Hamon teve apenas um emprego no sector privado: entre 2001 e 2004, na direcção da Ipsos, uma empresa de sondagens. O resto da carreira fê-la ao serviço do partido. Entre 2004 e 2009, foi eurodeputado, tornando-se vice-presidente da delegação para as relações com os EUA e deixando a sua assinatura em dois relatórios: um sobre a revisão estratégica do FMI e outro sobre a luta contra os paraísos fiscais e o sigilo bancário. Internamente, votou contra o tratado europeu, em 2005. Em 2008, concorreu à liderança do PS mas ficou fora da segunda volta, com 22,6% dos votos. Foi, contudo, chamado para ser porta-voz do partido, posição que desempenhou até 2012 e que lhe conferiu mais notoriedade mediática. Neste período, foi acusado de plágio na sua obra Tourner la Page. Em 2012, teve a sua primeira importante aventura governativa, assumindo o cargo de secretário de Estado da Economia Social e Solidária e do Consumo.

“Tentei focar-me somente no meu trabalho como ministro da Educação e ignorar o resto. Não consegui. Se continuasse, seria em piloto automático e dessa maneira não consigo viver”, revelou ao Le Monde.

Era esse o seu trabalho quando Valls o desafiou para a remodelação do governo. “É inútil dizer que a decisão de apoiar Valls nos deixou estupefactos”, comentou um dos seus aliados à Les Inrocks. “Benoît defendeu-se dizendo que lhe daria mais capacidade de influência sobre a linha governativa, mas nós estávamos longe de partilhar o seu ponto de vista”. Hamon devia ter ouvido os amigos. Quando acompanhou o seu colega ministerial Monteburg nas críticas às reformas laborais e fiscais, Hollande deu-lhe a escolher entre a sua imagem e o seu posto. “Tentei focar-me somente no meu trabalho como ministro da Educação e ignorar o resto. Não consegui. Se continuasse, seria em piloto automático e dessa maneira não consigo viver”, revelou ao Le Monde.

Sacrificou o posto. Nos dois anos seguintes, opôs-se cabalmente às reformas laborais propostas pelo governo de Valls, foi uma das principais vozes contra a penalização do uso do “burqini” nas praias francesas e a destituição de nacionalidade para os suspeitos de ligação ao fundamentalismo islâmico. O “pequeno Ben” já não existia. Hamon atingira a maturidade política e estava pronto para assaltar o comando do PS.

Um partido entrincheirado

Hamon foi bastante pragmático desde 16 de agosto de 2015, o dia do anúncio da sua candidatura às primárias: “Contra a direita total de François Fillon (candidato presidencial do Partido Republicano), um programa de esquerda total”. Acolhimento de refugiados, reforma do Estado social, combate à pobreza e, sobretudo, ecologia, marcam o inventário de medidas propostas pelo mais esquerdista dos candidatos. “Não posso nunca afirmar-me como socialista, sem afirmar-me primeiro como ecologista”, anunciou, na apresentação da campanha, traçando como meta até 2025 a produção de 50% da energia nacional a partir de fontes renováveis.

Opôs-se cabalmente às reformas laborais propostas pelo governo de Valls, foi uma das principais vozes contra a penalização do uso do “burqini” nas praias francesas e a destituição de nacionalidade para os suspeitos de ligação ao fundamentalismo islâmico.

A medida que rapidamente centrou o debate público não foi, todavia, ecológica, mas sim a introdução do rendimento universal – Hamon prometeu substituir as pensões sociais por um novo sistema, a implementar faseadamente, que prevê o pagamento de 750 euros a todos os franceses maiores de idade, independentemente dos seus rendimentos e contribuições fiscais. Este modelo, já rejeitado em referendo na Suíça e actualmente em teste na Finlândia, tem recebido cada vez mais atenção por ser uma das possíveis vias de resposta à revolução tecnológica e ao gradual desaparecimento de postos de trabalho. Segundo o Fórum Económico Mundial, cerca de 5 milhões de empregos irão desaparecer até 2020. “Não pode ser feito de um dia para o outro, mas é realista”, defendeu Hamon, na rádio Europe 1.

Hamon prometeu substituir as pensões sociais por um novo sistema, a implementar faseadamente, que prevê o pagamento de 750 euros a todos os franceses maiores de idade, independentemente dos seus rendimentos e contribuições fiscais.

Muitos não pensam o mesmo. Segundo Hamon, o custo do subsídio universal seria de 300 mil milhões de euros — quase todo o Orçamento do Estado francês para 2016 (374 mil milhões). “O que propõe Hamon é um quinquénio que custa 500 mil milhões. Ninguém pode achar isso credível. Não nos podemos fiar nesse projeto porque a esquerda se vai afundar e perder credibilidade. Eu sou o candidato do realismo, não o da utopia e folia fiscal, deixo isso para o meu oponente”, disse Manuel Valls ao jornal Le Opinión.

De modo a financiar esta medida libertária, Hamon sugere a cobrança de impostos aos robots incorporados pelas empresas e o aumento de receitas proveniente da taxação da venda legal de canábis. Se não chegar, prevê um aumento da carga fiscal, mas só para os mais ricos. “É muito interessante que Hamon tenha trazido o rendimento universal para o debate público”, diz Marc de Basquiat, presidente da Associação para a Instauração do Rendimento Universal (AIRE). “Mas este é um tema bastante complexo para ser abordado numa campanha. As ideias de Hamon são para já muito vagas e desfiguradas, mas pode ser o início de algo mais concreto”.

As propostas revolucionárias não ficam por aqui: o bretão pretende reduzir a semana de trabalho para 32 horas e revogar a Constituição francesa. A 5ª República, existente desde 1958, daria lugar a uma 6ª República, em que os poderes do Presidente seriam encurtados e a sua jurisdição subtraída para um único mandato de sete anos. Na 6ª República de Hamon, qualquer petição assinada por mais de 450 mil cidadãos forçaria o Parlamento a vetar ou analisar a lei em questão.

“Nestas primárias, os eleitores socialistas queriam o candidato com o programa mais claramente à esquerda, que lhes desse esperança, sonhos e temas de debate. Valls afirma que as pretensões de Hamon não são exequíveis mas não conseguiu encontrar argumentos legítimos, até porque está descredibilizado. Assim, a esquerda utópica superiorizou-se à esquerda realista na primeira volta”, analisa Martin Vaugoude. Não foram os mais jovens que se deixaram seduzir pelos sonhos de Hamon: o resultado na franja eleitoral dos 18 aos 34 anos deu um empate técnico (33% para Valls, 32% para Hamon). Foi o grupo etário dos profissionais jovens, com idades entre os 34 e os 49 anos, que lhe deu uma vitória esmagadora: “Ideias como o rendimento universal ou o futuro das condições de trabalho agradam muito aos trabalhadores que, embora economicamente desfavorecidos, têm um capital cultural elevado”, analisa Bruno Jeanbart, director-adjunto do centro de análise política Opinion Way. “Benoît Hamon seduziu a esquerda urbana.”

“Nestas primárias, os eleitores socialistas queriam o candidato com o programa mais claramente à esquerda, que lhes desse esperança, sonhos e temas de debate. Valls afirma que as pretensões de Hamon não são exequíveis mas não conseguiu encontrar argumentos legítimos, até porque está descredibilizado. Assim, a esquerda utópica superiorizou-se à esquerda realista na primeira volta”
Martin Vaugoude, editor do jornal Le Télégramme

O francês foi buscar inspiração para a sua campanha a alguns dos mais prestigiados porta-estandartes da nova esquerda mundial. Em Setembro de 2015, reuniu-se nos EUA com Bernie Sanders, candidato derrotado às primárias do Partido Democrata, para discutir “a importância da mobilização dos jovens activos e dos cidadãos que estão à margem da sociedade”. No início deste mês, foi a vez de se cruzar com o ex-ministro das Finanças grego Yanis Varoufakis, desta feita para debater o conceito de “desobediência construtiva”. Varoufakis congratulou prontamente Hamon pela vitória na primeira volta. O líder do Partido Trabalhista britânico, Jeremy Corbyn, e o espanhol Podemos, de Pablo Iglésias, são duas das suas outras musas. “Todo o mundo se sente inspirado pelo que está a acontecer nos EUA, em Inglaterra e em Espanha. Por todo o mundo, face a esta crise, podemos construir soluções solidárias e inovadoras”, disse o francês.

Bernie Sanders é um dos políticos que Benoît Hamon admira

SAUL LOEB/AFP/Getty Images

Em Portugal, o PS acompanha estas primárias com um distanciamento muito maior do que o protagonizado em 2012 pelo antigo secretário-geral, António José Seguro, que manifestou um forte apoio às promessas anti-austeridade de François Hollande. “O PS francês é hoje, por culpa de uma governação falhada, um partido descredibilizado e a viver uma profunda crise ideológica”, diz o deputado socialista Tiago Barbosa Ribeiro. “O último governo, de que Valls foi parte fundamental, caracterizou-se pelo afastamento dos valores da social-democracia, das classes médias e trabalhadoras e dos sindicatos. O nosso grande interesse é observar como é que o PSF se vai reencontrar consigo próprio e com o eleitorado. E não é com certeza com uma ala de direita, porque o que é esquisito é ter uma ala de direita num partido de esquerda”.

As sondagens mais recentes indicam que qualquer dos vencedores do sufrágio do próximo domingo não tem quaisquer possibilidades de lutar pelas presidenciais – Hamon chegaria aos 7% e Valls aos 10%. Estão a milhas de distância do conservador François Fillon e da nacionalista Marine Le Pen, que encabeçam a tabela de intenções de voto. Como se não bastasse, o candidato socialista vai ficar entrincheirado entre duas opções à esquerda – mais ao centro, o carismático ex-ministro da Economia Emmanuel Macron, que concorre como independente para prevenir qualquer contaminação pela fraca popularidade do PS, e, no extremo, Jean-Luc Mélenchon, apoiado pelos comunistas, que vai arrecadar os votos da esquerda mais radical. Ambos se posicionam à frente de Valls e de Hamon nas previsões. Se o defensor do rendimento universal vencer no domingo, Macron será o maior beneficiado: nele serão concentrados os votos dos eleitores de centro-direita. Se o vencedor for Valls, Mélenchon será o escolhido entre a franja mais esquerdista dos socialistas. O PS está no que parece ser um beco escuro e sem saída.

Hamon diz que conhece uma saída. O seu percurso político calculista e paciente indica que o seu derradeiro objectivo possa estar em 2022 e não neste ano. “Hamon pode estar a planear tornar-se em Junho presidente do partido para, nos cinco anos seguintes, reconstruir a identidade do PS e apresentar-se às presidenciais de 2022 com hipóteses de vencer”, diz o analista Bruno Jeanbart.

A professora Nédage Soubiale vai votar neleeste domingo: “Não porque acredito que ele vá ser Presidente ou porque me revejo em todas as suas propostas, diz. “Vou votar nele porque entre os dois candidatos ele é o único socialista.”

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