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Na madrugada em que começou a guerra, D. Pavlo, o bispo de Kharkiv, acordou na casa da Cúria com as explosões às 4h30 da manhã, confirmou no telemóvel que era um bombardeamento, virou-se para o lado e voltou a dormir. Esta aparente e inusitada serenidade não significa indiferença; nem inconsciência; e menos ainda a fé de que Deus trataria de evitar males maiores. Explica-se por ter sido capelão militar muitos anos; por já estar à espera do início da guerra; e por ter preparado os 43 padres católicos da sua diocese, pelo menos desde o Natal, para a chegada deste momento.
As instruções eram muito claras e pragmáticas: os padres deviam ter sempre os carros com o depósito o mais cheio possível para poderem fugir em caso de ataque; deviam ter os documentos mais importantes numa “mochila de crise”, juntamente com um mapa, uma bússola e outros objetos essenciais para uma fuga; deviam saber que estradas procurar, em caso de tiros e bombardeamentos; e ainda deviam ter os objetos mais sagrados prontos a serem transportados.
“Deus quer que Putin acorde. Nós queremos que ele acorde e pare de fazer o mal”
Naquela manhã de 24 de fevereiro, depois de mais duas horas de sono, pelas 7h, reuniu-se com o chanceler da diocese e começou a comunicar com os padres que estavam em locais mais atacados e a receber pedidos de ajuda de alguns residentes, que precisavam de refúgio ou auxílio para sair da cidade. Ao mesmo tempo, manteve-se em comunicação com o arcebispo de Lviv e os outros 15 bispos ucranianos. Os contactos com o Vaticano foram feitos através do Núncio Apostólico: o embaixador do Papa na Ucrânia não saiu de Kiev desde que a guerra começou, contou o bispo durante uma entrevista ao Observador na sua residência.
Chegou a colocar-se a hipótese de uma visita do Papa Francisco a Kiev, mas entretanto esse cenário foi afastado. Acha que o Papa devia vir à Ucrânia?
É muito difícil avaliar essa situação, porque está sempre tudo a mudar a cada minuto. Por exemplo, até foram lançados rockets a meio da visita do secretário-geral da ONU [António Guterres]. Se não conseguimos organizar um encontro com o Papa, qual é o sentido de ele vir?
Acha que é muito perigoso?
Podem aproveitar-se da visita para lançar um rocket. Nem o presidente dos EUA quer vir à Ucrânia, tem medo, e ele tem um exército, tem tudo. Já o Papa… tem outro tipo de estatuto. O Papa é uma autoridade moral, mas vemos que a Rússia não distingue: simplesmente, quanto mais ucranianos mata, mais prazer tem.
Acha que a Rússia não respeitaria a presença do Papa?
O que é que a Rússia respeita?
O que pensa sobre Putin e esta invasão?
É um criminoso.
Merece o perdão cristão?
Se ele realizar todas as condições para possuir esse perdão… Mas a questão é: perdoado por quem? Pelos ucranianos? A memória de dor e sofrimento é impossível de apagar. Portanto, se falamos aqui de perdão como esquecer, isso é impossível. Perdoar significa dar outra oportunidade. E eu dou outra oportunidade quando a pessoa compreende que fez o mal, assume isso publicamente e afirma que não voltará a fazer esse mal, fazendo o possível para resolver a situação. Tenho dúvidas de que ele consiga fazer isso. Nós sabemos o que ele tem de fazer para dizer a palavra “Desculpa”. É uma questão muito difícil, porque hoje temos de nos mentalizar que ele quer destruir-nos e temos de fazer de tudo para nos defendermos.
Acharia aceitável que Putin fosse julgado e condenado a uma pena de morte?
Na minha opinião, isso seria um alívio para ele. Acho que ele deve viver e ver o que fez, para compreender e lamentar profundamente o que fez. Deus morreu por ele também, Jesus Cristo também morreu por ele na cruz. Deus quer que ele acorde, que compreenda. Portanto, nós queremos que ele acorde e pare de fazer o mal.
“Os padres de Mariupol contaram-me que aquilo foi um inferno”
A diocese liderada pelo bispo D. Pavlo chama-se Kharkiv-Zaporíjia, o que indicia desde logo a vasta extensão de território que abrange: são cerca de 700 km, ao longo de sete distritos, quase como se em Portugal houvesse uma só diocese de Trás-os-Montes ao Alentejo. Kharkiv fica bem no norte do país, colado à fronteira com a Rússia; Zaporíjia, já na parte sul, é a localidade onde têm chegado os sobreviventes de Mariupol, a cidade mais bombardeada pelos russos, ainda mais a sul, e que também é abrangida por esta diocese.
Antes da guerra tinha cerca de 40 mil paroquianos, uma minoria religiosa nesta região. O bispo sabe que alguns morreram em Mariupol, de onde fugiram os dois padres católicos que estavam na cidade, ao fim de uma semana de bombardeamentos.
Como é que acompanhou a situação dos dois padres que estavam em Mariupol?
Estivemos cinco dias sem contacto com eles. Eles planeavam ficar em Mariupol, mas no dia 2 de março perdemos o contacto com eles e apenas voltámos a conseguir comunicar no dia 7. Disseram que pensavam que era o fim. As janelas da capela tinham rebentado, estava tudo destruído.
Como é que eles conseguiram sair?
Houve uma primeira retirada de pessoas, que ia juntar autocarros e mais 100 carros. Nos locais assinalados para as pessoas se reunirem antes de subirem para os autocarros, os russos começaram a disparar, portanto muitas pessoas morreram, e os que ficaram vivos começaram a discutir se voltariam todos para trás ou se continuavam a tentar sair. Eles decidiram continuar a tentar sair para Zaporíjia.
De carro ou de autocarro?
De carro. Os autocarros foram destruídos devido ao bombardeamento, mas os carros continuaram. Os padres perceberam que poderia ser a única oportunidade para poderem sair. Pelo caminho, alguns carros foram alvejados. Por aquilo que eles me contaram, aquilo foi um Inferno.
Como estão os outros 41 padres católicos?
Estão todos vivos. Mas, por exemplo, sei que um padre também sobreviveu a um bombardeamento em Alekseevka. E aqui no nosso telhado também caiu uma mina, temos um buraco. A 500 metros daqui existem habitações destruídas.
“Eu tenho o direito de não deixar alguém matar-me”
A conversa com o bispo realiza-se numa sala da sua residência, mesmo ao lado da Igreja de Kharkiv, que está neste momento transformada num armazém de ajuda humanitária. Onde antes da guerra se juntavam cerca de 600 pessoas ao domingo, há agora paletes de comida rodeadas pelas imagens dos santos, incluindo uma réplica da Nossa Senhora de Fátima, na parte lateral do templo.
“O bispo diz que agora a catedral é para a ajuda humanitária”, explica o padre Vojtek, um sacerdote polaco, que dirige a Cáritas local, que funciona num armazém ao lado da Igreja, mas que se encontra fechado ao público, para evitar a concentração de pessoas num local que corre o risco de ser bombardeado.
“Estamos a trabalhar aqui, mas distribuímos os medicamentos e a comida, incluindo 700 pães por dia, em vários pontos da cidade.” É interrompido por uma grávida que deve dar à luz nas horas seguintes e o veio procurar para lhe pedir uma bênção.
Os católicos que iam à missa deixaram Kharkiv ou preferem não sair das suas casas. As celebrações foram transferidas para a capela na casa do bispo e são frequentadas por 24 pessoas: 12 paroquianos e 12 voluntários da Cáritas, que são ortodoxos. “Fazem muitas perguntas sobre Deus, as orações, comunhão e confissão, mas não tenho tempo agora para lhes explicar tudo. Agora não é altura de perguntar se se é católico, ortodoxo ou protestante. Somos cristãos”, sublinha o diretor da Cáritas, que quase não pára um segundo a organizar a distribuição de ajuda humanitária. Mas é ele que celebra a missa semanal na capela.
Quando o edifício da polícia foi atingido, a menos de 500 metros, estava precisamente a presidir à cerimónia no momento em que soou o estrondo — e sentiu as outras pessoas a olhar para ele, assustadas mas hesitantes, à espera de orientação. Ele pedia o mesmo, em silêncio: “Deus, ajuda-nos! É possível rezar agora ou não?” Começaram todos a chorar e a fugir. “A missa parou e corremos para o abrigo. Voltámos ao fim de 30 minutos e continuámos a missa até ao fim.”
Agora vivem 18 pessoas na cave da casa do bispo, mas ele e outros dois sacerdotes ficam nos pisos de cima. “Só quando acontece alguma coisa é que vamos para a cave. Não podemos viver constantemente com medo”, diz o bispo D. Pavlo.
Sai de Kharkiv para visitar as regiões que são mais próximas dos russos ou são mais perigosas?
Eu estou em todo o lado, onde é necessário. Mas só estar aqui já é perigoso.
Usa capacete e enverga um colete à prova de bala?
Em situações em que eu sei que pode haver tiros e noutras em que aqueles que me acompanham me dizem que é necessário vestir. Aqui em Kharkiv, é perigoso e era necessário usar o colete, por exemplo, em Saltivka e em Obriy.
Não tem medo da morte?
Tenho. O medo de morrer é um sinal de saúde mental e eu sou saudável. Tenho medo, mas tenho escolha. Acho que é necessário e decido ficar. Os militares que combatem também têm medo, mas eles tomam a decisão.
Os militares vêm pedir-lhe a bênção?
Nós encontramo-nos regularmente com os militares e nesses encontros há diálogo e a bênção. Também já celebrei funerais de militares.
As pessoas procuram-no para partilhar dilemas espirituais sobre a guerra?
Matar uma pessoa vai contra a natureza humana e cada militar que mata sente que ultrapassou esse limite. Mas nós não somos agressores, nós defendemos a nossa terra. Defendemos aqueles que esperam que os defendamos, como as mulheres e crianças, logo, a morte do agressor é responsabilidade dele. Nós não queremos matar, mas é como uma obrigação para o parar, porque, se não o pararmos, ele vem e mata-nos a nós. E eu tenho o direito de não deixar alguém matar-me, necessito de proteger a minha vida e a dos meus próximos. E, caso seja necessário matar alguém, é justificável. Portanto, nós não temos problemas em explicar isso às pessoas, existe problema é daquele lado [dos russos].
Os militares ucranianos que matam em defesa do país terão perdão divino?
Não há maior demonstração de amor do que quando alguém entrega a sua vida pelos seus amigos. Se vê alguém que vai matar a sua mulher e filhos e eles vêm com armas e já estão a disparar contra vocês, o que é que vai fazer?
Sente nas pessoas que perderam familiares um grande desejo de vingança?
As pessoas que sofreram uma tragédia grande não têm tanta vontade de vingança, querem é que seja feita justiça. Conversando com as pessoas, elas dizem que não ficarão aliviadas se acontecer o mesmo aos inimigos. Portanto, é preciso diferenciar a dor e a vontade de justiça.
Até quando tenciona permanecer em Kharkiv?
Quando deixar de fazer sentido ficar, por a morte ser certa, e se já não ficar mais ninguém, será necessário sair. Por enquanto, ainda não vejo esse tipo de situação. Eu preciso de ficar aqui, tenho de ser o último a sair.
O padre que enfrenta os bombardeamentos para ir dar comida à linha da frente
Se e quando o bispo D. Pavlo decidir retirar-se de Kharkiv, há um sacerdote que ficará com ele até esse momento derradeiro. Quando começaram os bombardeamentos e alguns padres se refugiaram na zona mais segura de Lviv (junto à fronteira com a Polónia), o padre Vladislav, 42 anos, fez o caminho inverso e veio de Lviv para a zona mais perigosa de Kharkiv.
Foi ele que tratou do acolhimento de 140 ucranianos na cave da Igreja de Saltivka, uma das zonas residenciais de Kharkiv mais bombardeadas pelos russos, logo na primeira noite da guerra. Ficaram duas semanas a viver neste bunker improvisado, mas o padre já não aguentava ver as crianças a chorar e a chamar pelas mães de cada vez que ouviam estrondos da guerra lá fora, e começou a organizar evacuações, transportando pessoalmente algumas dessas famílias até à estação de comboios ou mesmo de carro até Poltava, a uma hora e meia de Kharkiv.
Restam nesta cave da igreja duas dezenas de pessoas mais idosas que não têm para onde ir. As suas casas não têm eletricidade, nem gás, e algumas foram destruídas. Aqui têm um teto abrigado, comida, água quente, aquecimento, eletricidade para carregar os telemóveis — e ainda a proteção de outra imagem de Nossa Senhora de Fátima na sala de jantar, apesar de nem saberem quem é: são todos ortodoxos. “Não querem saber da Nossa Senhora de Fátima, mas Fátima olha por eles. E todos os domingos assistem à missa aqui na capela. Dizem-me que a igreja católica está mais perto deles do que a igreja ortodoxa, porque os deixa entrar na nossa casa”, diz o Padre Vladislav.
Esta igreja de Saltivka está praticamente cercada por marcas da guerra. Mesmo em frente, há dois carros destruídos por um rocket, que caiu 50 segundos depois de o padre lá passar. O terreno ao lado, onde o sacerdote anda com o trator, também já foi atingido por peças de artilharia, cujos restos ele vai guardando numa arrecadação. Odeia a guerra — e reconhece que não vai ser fácil perdoar este povo vizinho.
Filho de um construtor com muitas casas e de uma coronel do exército responsável pelo recrutamento, o sacerdote decidiu entrar para um mosteiro aos 19 anos, depois de um encontro na rua com uma freira, que lhe pediu ajuda para tratar de uma senhora doente, que viria a morrer dois dias depois.
Já fez cinco funerais de militares desde que a guerra começou. Um dos soldados era seu amigo e o padre pôs a viúva a viver numa das casas da sua família na Transcarpátia, no Oeste da Ucrânia. Enquanto isso, ele, que tem consciência de que a família é abastada, anda aqui sem os pais saberem numa das zonas mais perigosas da guerra, a passar os últimos checkpoints ucranianos para ir entregar comida e medicamentos a quem resiste nas zonas mais atingidas. Sabe exatamente o que faz mais falta no terreno que seja doado como ajuda humanitária, para distribuir a quem precisa: pensos higiénicos, fraldas de adultos, remédios, velas, baterias e isqueiros.
Vai de colete e capacete, mas tem noção de que isso não o protege. “Hoje, a distribuir ajuda humanitária, começámos a ver rockets por cima de nós. Parámos um bocado encostados à parede e retomámos. Noutro dia, já tinha caído um rocket a 30 metros e uma senhora que estava à espera para receber comida foi atingida. Felizmente estava comigo um voluntário paramédico que prestou os primeiros socorros e a senhora sobreviveu.”
O medo da morte dá-lhe que pensar, mas não o trava. “Não interessa ter 42 ou 102 anos, vou ter de morrer um dia. Num filme russo, um padre perguntou a um monge que dormia num caixão se tinha medo de morrer. Ele disse que o assustador não era morrer, era responder pelos seus pecados perante Deus. Sinto algum medo e quero viver mais um bocado para fazer outras coisas boas, mas não sou dono da minha vida.”