Habitação, salários, Saúde e um protagonismo renovado para medidas contra os “negócios” que ganharam força durante a maioria absoluta do PS. É com estas bases que o Bloco de Esquerda se lança na pré-campanha eleitoral e começa a apresentar o seu programa, com uma certeza: apesar de entrar em campo a prometer corrigir os erros da maioria absoluta, a estratégia bloquista passa mesmo forçar uma aliança com o PS e garantir que a esquerda governa. E, agora que o Bloco mostrou as suas cartas, desafia os socialistas a fazerem o mesmo.
Com uma sala cheia à frente, e minutos depois de ter reunido a Mesa Nacional do Bloco para aprovar o programa que levará às eleições legislativas, Mariana Mortágua dedicou-se a uma longa apresentação em três partes: recuperar o slogan que promete uma “vida boa” a todas as pessoas que vivem em Portugal, explicando que isso significa que as pessoas não precisar de entrar “numa luta para ter o essencial”, de salários dignos a rendas comportáveis; identificar crises estruturais no país, mas também disparar contra a maioria absoluta do PS, que as “agravou”; e apresentar as soluções do Bloco para esses problemas.
No essencial, as áreas a que o partido quer dar atenção não diferem assim tanto daquelas em que o PS está focado — mas as soluções são, é claro, diferentes. O que o Bloco quer agora, como também deixou claro nesta apresentação, é que os partidos possam conversar e que para isso o PS apresente também as suas medidas, de forma a que os debates e a campanha já sirvam para desenhar os termos de um possível acordo que dê origem a uma nova geringonça — partindo do princípio que o PS perde a maioria absoluta e volta a precisar da esquerda para governar.
Foi por isso que a coordenadora do Bloco de Esquerda veio garantir que um voto no Bloco é “a garantia de que tudo pode mudar”: o partido não quer ficar à margem do debate sobre a governação e, mesmo que a estratégia do PS seja, para já, ignorá-lo, insiste em pedir “compromissos e maiorias para resolver problemas”, uma maioria feita ao lado do PS e restante esquerda “em torno de um programa político”.
Para já, fala sozinho, mas há medidas em que pode entender-se com o PS e sobre as quais já manda recados públicos a Pedro Nuno Santos — assim como propostas que prometem tornar-se um nó difícil de desatar na relação entre os dois partidos.
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CGD a baixar juros e limites para as rendas
O setor a que o Bloco quer dedicar-se com especial ênfase é o da Habitação, uma vez que é aqui que se atravessa a “crise das crises”, agravada pelo PS, segundo Mariana Mortágua. As soluções do Bloco de Esquerda estão apresentadas: tectos para as rendas segundo a zona e a tipologia das casas, (de novo) a proibição de venda de casas a não residentes, limitações ao alojamento local, garantia de 25% da nova construção para fins de habitação acessível e o fim de benefícios fiscais para os residentes não habituais. E uma medida que vai mais longe do que a proposta do PS, sugeriu, embora sem as propostas escritas essa avaliação seja difícil de fazer: limites à atualização de rendas tendo em conta o poder de compra das famílias e “não a inflação” (Pedro Nuno tinha prometido ter em conta a evolução dos salários quando a inflação for superior a 2%).
A estas propostas, Mortágua juntou uma outra envolta em críticas às taxas de juro aplicadas nos créditos à Habitação pela Caixa Geral de Depósitos. Acusando o banco público de “entre as pessoas e o lucro, ter escolhido o lucro — fez a mesma escolha que os bancos privados”, exigiu que a CGD “atue como um banco público” e reduza os seus juros. A ideia do Bloco é que, se o fizer, as pessoas transferirão os seus créditos para a Caixa e o sistema bancário seguirá os mesmos valores, por arrasto. Por fim, para o Bloco a banca deve também pagar uma contribuição para ajudar a financiar as medidas da Habitação.
No capítulo dos impostos, o Bloco juntará ao seu programa medidas para obrigar as empresas a pagar pelos lucros extraordinários; taxas sobre as grandes fortunas; e, em sentido inverso, o aumento da dedução específica no IRS em 582 euros.
O nó das leis laborais
Uma dificuldade que a maioria que o Bloco pede poderá ter é em torno das leis laborais. Se Pedro Nuno contornou o assunto no seu programa eleitoral interno, defendendo que é preciso “estabilidade” nessa área, o Bloco volta à carga com algumas das propostas que ajudaram a romper com a geringonça, nomeadamente o fim da caducidade da contratação coletiva.
Mortágua identificou os baixos salários como um dos principais problemas do país — é assim que a direita e a maioria absoluta do PS “expulsam os jovens que não conseguem ter aqui uma vida”, acusou, garantindo que “quem sai sai porque os salários são baixos e a vida é cara”. E juntou a essas medidas um aumento do salário mínimo para 900 euros em 2024 e 50 euros acima da inflação a partir daí, uma licença paga de cinco dias para os pais estarem com os filhos, o regresso aos 25 dias de férias, às 35 horas de trabalho semanais e a semana de trabalho de quatro dias.
Quanto a prestações sociais, o Bloco quer criar um um “Rendimento Social de Cidadania” que unifique os apoios não contributivos — abrangendo pessoas que não recebem nem subsídio de desemprego nem RSI, e integrando ambos, numa segunda fase, nesta nova prestação. Já as pensões ficariam, segundo a proposta bloquista, acima do limiar de pobreza após 20 anos de descontos — e os cortes nas reformas antecipadas entre 2014 e 2018 acabariam (uma luta antiga em que o partido não tem tido sucesso).
Professores descongelados já “amanhã”
Falando noutras crises que acusa o PS de aprofundar, voltou à recuperação total do tempo de serviço dos professores que ficou congelado. Mais uma farpa a Pedro Nuno e a quem vai prometendo datas diferentes para concretizar essa recuperação: o Bloco quer que aconteça “sem demoras, sem atrasos, sem negociações”.
“Um quer amanhã, outro quer depois de amanhã, daqui a uma legislatura… É já. Foi um erro e deve ser corrigido”. Também para os médicos, e se o PS tem defendido um regime de “dedicação plena”, insiste em “exclusividade a sério”, com majoração de 40% dos salários. E na Saúde avança com uma medida de comparticipação a 100% dos medicamentos para pessoas com rendimentos inferiores ao salário mínimo, “porque há coisas que não se regateiam”.
A estas medidas juntam-se uma proposta para vincular todos os professores precários e a abertura de 125 mil novas vagas para criar, como a esquerda há muito deseja, uma rede pública de creches. O Bloco, que se tem batido pela criação e aprofundamento do estatuto do cuidador informal, vai insistir também na criação de um Serviço Nacional de Cuidados, para que o peso desses cuidados dos mais velhos e frágeis não recaia “nas mulheres” e sobretudo “nas mulheres racializadas” — a responsabilidade deve ser partilhada “por toda a sociedade”.
Medidas contra “negociatas” da maioria absoluta
Sendo um dos eixos centrais da campanha bloquista o combate ao legado da maiora absoluta do PS, neste programa também ganham destaque medidas que já existiam mas que recebiam menos protagonismo. São as que se focam em impedir “negócios à medida”, como Mortágua lhes chamou, como a do data center de Sines, no centro da Operação Influencer.
Criticando o que diz ser um modelo económico insustentável e em crise — deu exemplos como a agricultura intensiva baseada na exploração de emigrantes, a exploração mineira com custos ambientais, os data centers instalados em zonas protegidas e o “turismo desenfreado” nas mesmas condições — propôs medidas como a revogação das leis PIN (para Projetos de Interesse Nacional) e o “simplex ambiental”.
“As regras não existem para serem quebradas em nome de negócios privados”, defendeu. E também inscreve no programa novas regras para exploração de recursos nacionais, limites para a agricultura intensiva e “turismo agressivo” em zonas protegidas, assim como uma redução do consumo energético (e uma insistência na habitual proposta de redução do IVA da energia para 6%).
Leques salariais nas empresas — para que não haja disparidades gritantes entre os salários de gestores e trabalhadores — e, como sempre, a nacionalização das empresas de energia também entram nas propostas do Bloco. Nas próximas semanas, o partido conta ir apresentando as suas medidas com mais pormenor e chegar aos debates com propostas frescas em cima da mesa. E confia que o PS faça o mesmo — para que possa deixar de falar sozinho sobre o tal programa à esquerda que quer que construam em comum.