910kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Brexit. 5 pontos para compreender o impasse provocado por uma fronteira

Nas Irlandas, os dois lados querem uma fronteira invisível, mas discordam de tudo o resto. 5 respostas para entender o impasse que pode atirar o Reino Unido para um Brexit à força.

Se o acordo de Sexta-feira Santa fosse uma borracha usada para apagar décadas de conflito entre as Irlandas, seria, seguramente, uma daquelas divididas em duas cores — uma parte laranja-tijolo para apagar escritos a lápis, outra, mais pequena, azul-velho para resolver erros deixados a caneta. Nunca faltava nos estojos dos alunos, ainda que todos soubessem o mesmo: a parte laranja até apagava alguma coisa, mas tingia sempre o papel; a parte azul só com muita sorte não fazia também um buraco na folha. Pior que não cumprirem a sua função, aquelas duas metades deixavam marcas que nunca mais iriam desaparecer.

A 10 de abril de 1998, depois de anos de ruptura entre católicos e protestantes, de luta armada e de divisão profunda entre unionistas e nacionalistas, essa borracha foi passada ao longo dos 499 quilómetros da linha que divide a República da Irlanda e a Irlanda do Norte, num acordo histórico que esperava resolver um conflito feito guerra civil, com manifestações violentas, execuções, confrontos nas ruas e atentados à bomba. A fronteira desapareceu, os acordos trouxeram cooperação e laços económicos, mas os borrões alaranjados e os buracos nas folhas continuaram lá, ainda que aparentemente adormecidos em murais pintados com tributos aos grupos paramilitares em casas e lojas, nos desfiles anuais a lembrar as vitórias de uns e de outros, quando essa guerra os separava, ou nas convicções de quem aceitou a vida conjunta, mas continua a não concordar com a solução. Será sempre assim, com o passado — nunca desaparece.

Os murais paramilitares mantêm a memória da divisão entre as Irlandas e mostram que o passado, para muitos, não está assim tão longe (Charles McQuillan/Getty Images)

Getty Images

Os que assinaram o Acordo de Sexta-feira Santa, contudo, não imaginariam que, 20 anos depois, o reerguer daquela fronteira voltaria a estar em debate, não por desentendimentos entre os dois povos, por tensões políticas ou por uma escalada de violência, mas pelas consequências comerciais e aduaneiras do divórcio entre o Reino Unido e a União Europeia. E que, duas décadas depois, essa possibilidade não só despertaria de novo os fantasmas do tempo de divisão entre as Irlandas — com consequências imprevisíveis –, como seria também o obstáculo fundamental para fechar o acordo da saída do Reino Unido da UE. Não apenas pelas razões históricas, mas pela execução prática e, sobretudo, porque fará romper laços económicos e sociais.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Sem fronteira, Irlanda do Norte e República da Irlanda não passaram a ser um país único, mas, estando ambas dentro da União Europeia, aproveitaram a livre circulação e fizeram dela modo de vida: atualmente, 30 mil pessoas atravessam a linha que separa as duas nações todos os dias, porque têm negócios e empregos ou famílias e interesses do outro lado. Mais: as trocas comerciais entre os dois países representam 3 mil milhões de euros, segundo a Bloomberg. Com o Brexit, tudo isso pode acabar.

Ao longo da linha da antiga fronteira ainda há velhos postos de controlo abandonados, como este em Ravensdale (Charles McQuillan/Getty Images)

Getty Images

A fronteira é inevitável. Mas que fronteira?

A questão surgiu na lista de pontos a resolver entre o Reino Unido e a União Europeia, entre temas como a imigração, a soberania, relações comerciais, segurança ou regulação. E logo depois de a maioria dos britânicos ter votado “Leave” (sair), percebeu-se que seria uma das mais difíceis de resolver.

O problema é relativamente fácil de explicar: com o Brexit, todo o Reino Unido abandona a UE. Isso inclui os países da Grã Bretanha (Inglaterra, Escócia, País de Gales) e a Irlanda do Norte. Sair do grupo implica deixar também de fazer parte do mercado único e da união aduaneira, o que obriga a reativar as fronteiras: no caso da Grã Bretanha, fronteiras marítimas; no caso da Irlanda do Norte, a fronteira terrestre com a República da Irlanda.

Neste caso, Reino Unido e União Europeia querem evitar aquilo a que chamam de “hardborder”, uma fronteira física, com controlos formais, e nesse ponto estão de acordo, mas não se entendem em como pode ser a solução alternativa — porque alguma fronteira terá de haver. O problema está na diferença entre aquilo que a UE definiu como aceitável e o ponto ao qual o Reino Unido está disposto a chegar.

Vários outdoors foram erguidos em Belfast pelo partido Sinn Fein com a exigência de um estatuto especial para a República do Norte e contra uma fronteira física (PAUL FAITH/AFP/Getty Images)

AFP/Getty Images

Como ter uma fronteira sem, realmente, a ter? A questão foi debatida ainda em dezembro de 2017, sobretudo perante o bloqueio do Partido Unionista, que recusou que a Irlanda do Norte fosse tratada de forma diferente do resto do Reino Unido depois do Brexit. Face ao impasse, e antevendo que o problema seria de resolução demorada, Reino Unido e os países da UE concordaram que seria necessário criar uma espécie de rede de segurança, chamada de backstop, até ser encontrada uma solução tecnológica capaz e um acordo comercial e aduaneiro firme. Uma solução de recurso que garantisse que eram cumpridos três objetivos: manter a cooperação transfronteiriça, apoiar a economia de toda a ilha e proteger o Acordo de Sexta-feira Santa.

A proposta da União Europeia

Nessa tal “rede de segurança”, a UE propôs que, até que uma solução seja encontrada, a Irlanda do Norte continue a obedecer às regras do mercado único, garantindo uma fronteira livre de “fricção”. Na prática, nesses termos, a Irlanda do Norte, apesar de ser uma das nações constituintes do Reino Unido, continuaria, nessas questões específicas, como que a fazer parte da UE. Isto, claro, apenas e se a tal solução tecnológica ou acordo mais lato não fossem encontrados.

A ideia consta de um documento, revelado em fevereiro deste ano, com o resumo dos pontos de acordo que já tinham sido alcançados. Entre eles estava a criação de “uma área sem fronteiras internas, na qual é assegurado o movimento livre de produtos”, incluindo também questões alfandegárias, tributárias, da energia, da agricultura e de outros sectores em toda a ilha da Irlanda. “O território da Irlanda do Norte”, lê-se no documento, “deve ser considerado parte do território alfandegário e aduaneiro da UE”.

A fronteira entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte estende-se por 499 quilómetros e tornou-se invisível por força do Acordo de Sexta-feira Santa (PAUL FAITH/AFP/Getty Images)

AFP/Getty Images

Esta proposta não tem um peso qualquer: o grupo dos 27 Estados-membros vê o backstop como premissa essencial para admitir um período de transição, já depois do Brexit, e uma discussão mais substantiva sobre questões comerciais e aduaneiras. Dito de outra forma: sem backstop, o Reino Unido perde a margem que teria com o período de transição e a possibilidade de vir a negociar um mercado comum específico com a UE.

A resposta de Theresa May

A posição do Governo britânico tem evoluído (ou recuado, depende da perspetiva), muito por força da pressão política que a própria Theresa May enfrenta internamente. Não basta saber que agradar a todos é historicamente impossível — a primeira-ministra tem tentado assegurar um acordo com a UE, sem perder os Unionistas (que querem garantir que as mesmas condições são aplicadas a todo o Reino Unido) e os que exigem um hard Brexit, uma saída total, sem meios termos. É assim em todas as questões que rodeiam a saída e, ainda mais, no caso da fronteira entre as Irlandas.

Aceitar o  proposto pela UE significa que, na prática, seria criada uma fronteira aduaneira e regulatória dentro do próprio Reino Unido, a meio do Mar da Irlanda, já que Inglaterra, Escócia e País de Gales ficariam fora do mercado comum, mas a Irlanda do Norte continuaria dentro. O que significa que, por exemplo, os produtos de trocas comerciais não teriam de ser controlados entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda, mas sim entre a Irlanda do Norte e o resto do Reino Unido. Uma situação “inaceitável”, respondeu, de imediato o Governo britânico, por poder ser “potencialmente perigoso” para a união do Reino Unido como um todo. Theresa May diz, aliás, que “nenhum primeiro-ministro poderia concordar” com uma solução que “ameaça a integridade constitucional do país”. E garantiu que ia deixar muito clara a oposição à proposta, quando confrontada com as críticas dos deputados unionistas e de alguns conservadores.

A Primeira-ministra britânica, Theresa May, garantiu ao Parlamento que se oporia "com toda a clareza" à proposta de backstop apresentada pela União Europeia

ANDY RAIN/EPA

Um reação estranhada, de imediato, pelo negociador chefe da UE, Michel Barnier, que assegurou que a proposta não era “uma surpresa”, mas apenas a tradução legal daquilo que tinha ficado acordado nas negociações anteriores, abrindo, ainda assim, espaço para uma contraproposta do Reino Unido.

Mas a margem de Theresa May ficaria muito curta, meses depois. Em julho, o Parlamento britânico aprovou uma regra muito clara: “Será ilegal o Governo de Sua Majestade aceitar acordos pelos quais a Irlanda do Norte passe a fazer parte de um território aduaneiro diferente do da Grã Bretanha”.

O backstop do backstop

É neste contexto que surge uma segunda proposta. Na alternativa apresentada por Theresa May, desenhada em Chequers, a residência de Verão da primeira-ministra, o backstop seria aplicado não apenas à Irlanda do Norte, mas a todo o Reino Unido, na perspetiva de, no futuro, ser possível construir com a UE um mercado livre, com regimes alfandegários interligados e sistemas regulatórios idênticos para a indústria e para a agricultura.  Ou seja, até ser alcançado esse acordo comercial, aduaneiro e regulatório com a UE, o país mantinha-se alinhado no mercado comum, tal como proposto apenas para a Irlanda do Norte. Com um detalhe: esse backstop teria uma data limite — ainda por definir, mas sempre depois de 2020, que corresponde ao período transitório pós-Brexit já planeado.

Uma hipótese rejeitada de imediato pela União Europeia, por duas razões: em primeiro lugar, a ideia de May é vista como uma tentativa de, abandonando a comunidade europeia, poder ficar com as maiores vantagens do mercado único. Depois, a UE entende que a tal rede de segurança não é viável se tiver uma data limite — sobretudo porque ninguém sabe se será possível chegar a um acordo abrangente até essa altura e, assim não sendo, não haveria qualquer garantia. Solução? Um backstop do backstop: caso não haja, no final desse mecanismo de salvaguarda, qualquer acordo, o Reino Unido fica fora, mas a República da Irlanda permanece no mercado comum.

O impasse está agora no modelo que deve ser adotado até haver um acordo comercial, aduaneiro e regulatório definitivo no pós Brexit (AFP/Getty Images)

AFP/Getty Images

Pelo caminho, o negociador chefe da UE tentou “desdramatizar” a possibilidade de o backstop aplicado à Irlanda do Norte traduzir, na prática, uma fronteira no meio do país, com sistemas diferentes. “Estamos a clarificar quais os produtos que, chegando à Irlanda do Norte vindos do resto do Reino Unido, teriam de ser inspecionados e onde, quando e por quem esses controlos poderiam ser feitos”, assegurou Michel Barnier. “A UE respeita a integridade territorial do Reino Unido, acrescentou, esperando que os dois lados “consigam encontrar uma posição na qual este backstop melhorado seja aceitável”.

A ameaça de independência

Não será por acaso que se diz que Leo Varadkar, o primeiro-ministro da República da Irlanda, é o primeiro governante naquela posição a tratar a Irlanda do Norte apenas como “Irlanda”. É ele um dos principais opositores de uma saída do Reino Unido sem acordo ou da reposição de uma fronteira física, por saber que o caminho de paz e cooperação feito entre os dois territórios é importante demais para que tudo se perca às mãos do Brexit. Foi essa, de resto, a mensagem reforçada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros da República da Irlanda ainda esta semana, dias antes de mais uma cimeira decisiva. “Temos de insistir num mecanismo de proteção para a ilha da Irlanda e as duas jurisdições aí presentes, garantindo que o que construímos nos últimos 20 anos — desde o acordo para o processo de paz, que prevê um comércio normal e sem atrito entre as comunidades — não é prejudicado”, disse Simon Coveney à Euronews.

A possibilidade de um "no deal" levou o Sinn Fein a avisar que pedirá um referendo sobre a independência da Irlanda do Norte (Dan Kitwood/Getty Images)

Getty Images

Do outro lado, na Irlanda do Norte, essa certeza é levada ainda mais longe. Depois de Donald Tusk ter vindo dizer que a possibilidade de não haver qualquer acordo para o Brexit era cada vez maior e de os receios de um “no deal” terem ganhado corpo, o partido republicano Sinn Fein deixou claro que, nesse caso, será obrigatório avançar para um referendo sobre a independência da Irlanda do Norte. Depois de uma reunião com Theresa May, na segunda-feira passada, Mary Lou McDonald, a líder do partido, disse que uma fronteira física e formal “seria tão prejudicial para a paz e a prosperidade da ilha da Irlanda, que os irlandeses não poderiam apenas ficar sentados e permitir que acontecesse” e que se, “por acidente ou decisão”, isso vier a acontecer “a sra. May ou quem estiver no n.º 10 [de Downing Street] terá de entender que a questão constitucional terá de ser colocada perante o povo”. McDonald referia-se ao princípio da autodeterminação da República da Irlanda, que ficou fixado no Acordo de Sexta-feira Santa e que permite a possibilidade de uma reunificação da ilha, caso a maioria da população assim o decida.

O impasse sobre a questão irlandesa tem de ficar resolvido até ao final do ano, como parte do acordo para o Brexit que os Estados-membros terão de ratificar (PAUL FAITH/AFP/Getty Images)

AFP/Getty Images

Em tese, esse ponto — e os outros impasses no acordo para o Brexit — deveriam estar decididos nas próximas semanas. No calendário previsto, o acordo final seria fechado em novembro, para depois ser votado pelo parlamento britânico, a que se seguiria a ratificação pelos outros 27 Estados-membros. Haverá, ainda assim, margem até 13 de dezembro, dia para que está marcada uma nova cimeira. Será, contudo, sempre em contra-relógio. Às 11 de noite do dia 29 de março, com ou sem acordo, o Reino Unido deixa de fazer parte da União Europeia.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.