Se o acordo de Sexta-feira Santa fosse uma borracha usada para apagar décadas de conflito entre as Irlandas, seria, seguramente, uma daquelas divididas em duas cores — uma parte laranja-tijolo para apagar escritos a lápis, outra, mais pequena, azul-velho para resolver erros deixados a caneta. Nunca faltava nos estojos dos alunos, ainda que todos soubessem o mesmo: a parte laranja até apagava alguma coisa, mas tingia sempre o papel; a parte azul só com muita sorte não fazia também um buraco na folha. Pior que não cumprirem a sua função, aquelas duas metades deixavam marcas que nunca mais iriam desaparecer.
A 10 de abril de 1998, depois de anos de ruptura entre católicos e protestantes, de luta armada e de divisão profunda entre unionistas e nacionalistas, essa borracha foi passada ao longo dos 499 quilómetros da linha que divide a República da Irlanda e a Irlanda do Norte, num acordo histórico que esperava resolver um conflito feito guerra civil, com manifestações violentas, execuções, confrontos nas ruas e atentados à bomba. A fronteira desapareceu, os acordos trouxeram cooperação e laços económicos, mas os borrões alaranjados e os buracos nas folhas continuaram lá, ainda que aparentemente adormecidos em murais pintados com tributos aos grupos paramilitares em casas e lojas, nos desfiles anuais a lembrar as vitórias de uns e de outros, quando essa guerra os separava, ou nas convicções de quem aceitou a vida conjunta, mas continua a não concordar com a solução. Será sempre assim, com o passado — nunca desaparece.
Os que assinaram o Acordo de Sexta-feira Santa, contudo, não imaginariam que, 20 anos depois, o reerguer daquela fronteira voltaria a estar em debate, não por desentendimentos entre os dois povos, por tensões políticas ou por uma escalada de violência, mas pelas consequências comerciais e aduaneiras do divórcio entre o Reino Unido e a União Europeia. E que, duas décadas depois, essa possibilidade não só despertaria de novo os fantasmas do tempo de divisão entre as Irlandas — com consequências imprevisíveis –, como seria também o obstáculo fundamental para fechar o acordo da saída do Reino Unido da UE. Não apenas pelas razões históricas, mas pela execução prática e, sobretudo, porque fará romper laços económicos e sociais.
Sem fronteira, Irlanda do Norte e República da Irlanda não passaram a ser um país único, mas, estando ambas dentro da União Europeia, aproveitaram a livre circulação e fizeram dela modo de vida: atualmente, 30 mil pessoas atravessam a linha que separa as duas nações todos os dias, porque têm negócios e empregos ou famílias e interesses do outro lado. Mais: as trocas comerciais entre os dois países representam 3 mil milhões de euros, segundo a Bloomberg. Com o Brexit, tudo isso pode acabar.
A fronteira é inevitável. Mas que fronteira?
A questão surgiu na lista de pontos a resolver entre o Reino Unido e a União Europeia, entre temas como a imigração, a soberania, relações comerciais, segurança ou regulação. E logo depois de a maioria dos britânicos ter votado “Leave” (sair), percebeu-se que seria uma das mais difíceis de resolver.
O problema é relativamente fácil de explicar: com o Brexit, todo o Reino Unido abandona a UE. Isso inclui os países da Grã Bretanha (Inglaterra, Escócia, País de Gales) e a Irlanda do Norte. Sair do grupo implica deixar também de fazer parte do mercado único e da união aduaneira, o que obriga a reativar as fronteiras: no caso da Grã Bretanha, fronteiras marítimas; no caso da Irlanda do Norte, a fronteira terrestre com a República da Irlanda.
Neste caso, Reino Unido e União Europeia querem evitar aquilo a que chamam de “hardborder”, uma fronteira física, com controlos formais, e nesse ponto estão de acordo, mas não se entendem em como pode ser a solução alternativa — porque alguma fronteira terá de haver. O problema está na diferença entre aquilo que a UE definiu como aceitável e o ponto ao qual o Reino Unido está disposto a chegar.
Como ter uma fronteira sem, realmente, a ter? A questão foi debatida ainda em dezembro de 2017, sobretudo perante o bloqueio do Partido Unionista, que recusou que a Irlanda do Norte fosse tratada de forma diferente do resto do Reino Unido depois do Brexit. Face ao impasse, e antevendo que o problema seria de resolução demorada, Reino Unido e os países da UE concordaram que seria necessário criar uma espécie de rede de segurança, chamada de backstop, até ser encontrada uma solução tecnológica capaz e um acordo comercial e aduaneiro firme. Uma solução de recurso que garantisse que eram cumpridos três objetivos: manter a cooperação transfronteiriça, apoiar a economia de toda a ilha e proteger o Acordo de Sexta-feira Santa.
A proposta da União Europeia
Nessa tal “rede de segurança”, a UE propôs que, até que uma solução seja encontrada, a Irlanda do Norte continue a obedecer às regras do mercado único, garantindo uma fronteira livre de “fricção”. Na prática, nesses termos, a Irlanda do Norte, apesar de ser uma das nações constituintes do Reino Unido, continuaria, nessas questões específicas, como que a fazer parte da UE. Isto, claro, apenas e se a tal solução tecnológica ou acordo mais lato não fossem encontrados.
A ideia consta de um documento, revelado em fevereiro deste ano, com o resumo dos pontos de acordo que já tinham sido alcançados. Entre eles estava a criação de “uma área sem fronteiras internas, na qual é assegurado o movimento livre de produtos”, incluindo também questões alfandegárias, tributárias, da energia, da agricultura e de outros sectores em toda a ilha da Irlanda. “O território da Irlanda do Norte”, lê-se no documento, “deve ser considerado parte do território alfandegário e aduaneiro da UE”.
Esta proposta não tem um peso qualquer: o grupo dos 27 Estados-membros vê o backstop como premissa essencial para admitir um período de transição, já depois do Brexit, e uma discussão mais substantiva sobre questões comerciais e aduaneiras. Dito de outra forma: sem backstop, o Reino Unido perde a margem que teria com o período de transição e a possibilidade de vir a negociar um mercado comum específico com a UE.
A resposta de Theresa May
A posição do Governo britânico tem evoluído (ou recuado, depende da perspetiva), muito por força da pressão política que a própria Theresa May enfrenta internamente. Não basta saber que agradar a todos é historicamente impossível — a primeira-ministra tem tentado assegurar um acordo com a UE, sem perder os Unionistas (que querem garantir que as mesmas condições são aplicadas a todo o Reino Unido) e os que exigem um hard Brexit, uma saída total, sem meios termos. É assim em todas as questões que rodeiam a saída e, ainda mais, no caso da fronteira entre as Irlandas.
Aceitar o proposto pela UE significa que, na prática, seria criada uma fronteira aduaneira e regulatória dentro do próprio Reino Unido, a meio do Mar da Irlanda, já que Inglaterra, Escócia e País de Gales ficariam fora do mercado comum, mas a Irlanda do Norte continuaria dentro. O que significa que, por exemplo, os produtos de trocas comerciais não teriam de ser controlados entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda, mas sim entre a Irlanda do Norte e o resto do Reino Unido. Uma situação “inaceitável”, respondeu, de imediato o Governo britânico, por poder ser “potencialmente perigoso” para a união do Reino Unido como um todo. Theresa May diz, aliás, que “nenhum primeiro-ministro poderia concordar” com uma solução que “ameaça a integridade constitucional do país”. E garantiu que ia deixar muito clara a oposição à proposta, quando confrontada com as críticas dos deputados unionistas e de alguns conservadores.
Um reação estranhada, de imediato, pelo negociador chefe da UE, Michel Barnier, que assegurou que a proposta não era “uma surpresa”, mas apenas a tradução legal daquilo que tinha ficado acordado nas negociações anteriores, abrindo, ainda assim, espaço para uma contraproposta do Reino Unido.
Mas a margem de Theresa May ficaria muito curta, meses depois. Em julho, o Parlamento britânico aprovou uma regra muito clara: “Será ilegal o Governo de Sua Majestade aceitar acordos pelos quais a Irlanda do Norte passe a fazer parte de um território aduaneiro diferente do da Grã Bretanha”.
O backstop do backstop
É neste contexto que surge uma segunda proposta. Na alternativa apresentada por Theresa May, desenhada em Chequers, a residência de Verão da primeira-ministra, o backstop seria aplicado não apenas à Irlanda do Norte, mas a todo o Reino Unido, na perspetiva de, no futuro, ser possível construir com a UE um mercado livre, com regimes alfandegários interligados e sistemas regulatórios idênticos para a indústria e para a agricultura. Ou seja, até ser alcançado esse acordo comercial, aduaneiro e regulatório com a UE, o país mantinha-se alinhado no mercado comum, tal como proposto apenas para a Irlanda do Norte. Com um detalhe: esse backstop teria uma data limite — ainda por definir, mas sempre depois de 2020, que corresponde ao período transitório pós-Brexit já planeado.
Uma hipótese rejeitada de imediato pela União Europeia, por duas razões: em primeiro lugar, a ideia de May é vista como uma tentativa de, abandonando a comunidade europeia, poder ficar com as maiores vantagens do mercado único. Depois, a UE entende que a tal rede de segurança não é viável se tiver uma data limite — sobretudo porque ninguém sabe se será possível chegar a um acordo abrangente até essa altura e, assim não sendo, não haveria qualquer garantia. Solução? Um backstop do backstop: caso não haja, no final desse mecanismo de salvaguarda, qualquer acordo, o Reino Unido fica fora, mas a República da Irlanda permanece no mercado comum.
Pelo caminho, o negociador chefe da UE tentou “desdramatizar” a possibilidade de o backstop aplicado à Irlanda do Norte traduzir, na prática, uma fronteira no meio do país, com sistemas diferentes. “Estamos a clarificar quais os produtos que, chegando à Irlanda do Norte vindos do resto do Reino Unido, teriam de ser inspecionados e onde, quando e por quem esses controlos poderiam ser feitos”, assegurou Michel Barnier. “A UE respeita a integridade territorial do Reino Unido, acrescentou, esperando que os dois lados “consigam encontrar uma posição na qual este backstop melhorado seja aceitável”.
A ameaça de independência
Não será por acaso que se diz que Leo Varadkar, o primeiro-ministro da República da Irlanda, é o primeiro governante naquela posição a tratar a Irlanda do Norte apenas como “Irlanda”. É ele um dos principais opositores de uma saída do Reino Unido sem acordo ou da reposição de uma fronteira física, por saber que o caminho de paz e cooperação feito entre os dois territórios é importante demais para que tudo se perca às mãos do Brexit. Foi essa, de resto, a mensagem reforçada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros da República da Irlanda ainda esta semana, dias antes de mais uma cimeira decisiva. “Temos de insistir num mecanismo de proteção para a ilha da Irlanda e as duas jurisdições aí presentes, garantindo que o que construímos nos últimos 20 anos — desde o acordo para o processo de paz, que prevê um comércio normal e sem atrito entre as comunidades — não é prejudicado”, disse Simon Coveney à Euronews.
Do outro lado, na Irlanda do Norte, essa certeza é levada ainda mais longe. Depois de Donald Tusk ter vindo dizer que a possibilidade de não haver qualquer acordo para o Brexit era cada vez maior e de os receios de um “no deal” terem ganhado corpo, o partido republicano Sinn Fein deixou claro que, nesse caso, será obrigatório avançar para um referendo sobre a independência da Irlanda do Norte. Depois de uma reunião com Theresa May, na segunda-feira passada, Mary Lou McDonald, a líder do partido, disse que uma fronteira física e formal “seria tão prejudicial para a paz e a prosperidade da ilha da Irlanda, que os irlandeses não poderiam apenas ficar sentados e permitir que acontecesse” e que se, “por acidente ou decisão”, isso vier a acontecer “a sra. May ou quem estiver no n.º 10 [de Downing Street] terá de entender que a questão constitucional terá de ser colocada perante o povo”. McDonald referia-se ao princípio da autodeterminação da República da Irlanda, que ficou fixado no Acordo de Sexta-feira Santa e que permite a possibilidade de uma reunificação da ilha, caso a maioria da população assim o decida.
Em tese, esse ponto — e os outros impasses no acordo para o Brexit — deveriam estar decididos nas próximas semanas. No calendário previsto, o acordo final seria fechado em novembro, para depois ser votado pelo parlamento britânico, a que se seguiria a ratificação pelos outros 27 Estados-membros. Haverá, ainda assim, margem até 13 de dezembro, dia para que está marcada uma nova cimeira. Será, contudo, sempre em contra-relógio. Às 11 de noite do dia 29 de março, com ou sem acordo, o Reino Unido deixa de fazer parte da União Europeia.