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Caetano Veloso lançou o movimento Tropicalismo

Bettmann Archive

Caetano Veloso lançou o movimento Tropicalismo

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Caetano: um doce bárbaro com 80 anos

Se nestas oito décadas não o tivéssemos ouvido, as mesmas oito teriam sido outra coisa qualquer. Porque o mundo é admirável, mas não tão admirável até ter sido cantado por Caetano Veloso.

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Em 1997, Caetano Veloso lançou um disco chamado Livro e um livro que podia ter-se chamado Disco, tanta foi a dedicação do músico brasileiro à arte de compor, mas que acabou por intitular-se Verdade Tropical, numa referência ao movimento que o tornou popular, o Tropicalismo, ao lado de Tom Zé, Gilberto Gil e muitos outros.

A páginas tantas de Verdade Tropical, surge a primeira referência às futuras amizades que viriam a definir o futuro de Caetano: “Caetano, venha ver o preto que você gosta”, dizia dona Canô ao filho, e o filho (o próprio Caetano) anuía e sentava-se à frente da televisão, em cujo ecrã surgia Gilberto Gil. Caetano, que faz hoje 80 anos, leva uma vida disto: citar ou homenagear aqueles que admira nas letras das canções ou na sua própria biografia – dizem que não há génios humildes, e certamente Caetano tem o seu lado de diva, mas há pelo menos génios gratos pelo génio dos outros, génios que se espantam com o mundo e que não acham que este se reduz ao seu umbigo ou à sua garganta. De todos os génios que o mundo conheceu, Caetano será talvez o génio mais agradecido pelo génio dos outros.

A capa de "Verdade Tropical", na edição da Companhia das Letras

É importante regressar a Verdade Tropical porque, mesmo que Caetano tenha acrescentado ou retirado um ponto a esta ou àquela história, é ali que ficamos a conhecer como Caetano olha para a sua infância, para as suas parcerias musicais, para a Bahia onde cresceu, para a infinita cultura brasileira, para o Brasil, para a América que o fascinava – enfim, ficamos a conhecer como Caetano olhava para o mundo.

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Não ficamos, no entanto, a conhecer como Caetano conheceu Paula Lavigne, sua ex e atual mulher, que mesmo durante o período em que estiveram separados continuou a ser a empresária dele. E não ficamos a saber porque Lavigne contou esses detalhes numa entrevista à revista Playboy, o que provocou um escândalo de tal monta que a levou a exigir a Caetano que retirasse do livro as referências à intimidade do casal.

Caetano Veloso and Maria Bethania in concert The Brazilian brothers Veloso-Bethania in a concert during Saint Isidro Feasts

Certamente dona Canô não imaginaria nada disto há 80 anos, quando deu à luz o quinto filho; mas alguma coisa musical haveria nos genes da família porque dois filhos mais tarde nasceria Maria Bethânia

Cover/Getty Images

O que está em causa, à luz da lei atual, é um crime de pedofilia: Paula confessou ter perdido a virgindade com Caetano, quando ela tinha 13 anos e ele 40. A confissão foi feita no período em que ambos estavam divorciados e houve movimentos cívicos a querer levar Caetano a tribunal – mas à época dos acontecimentos não havia leis que punissem este tipo de situação, pelo que Caetano nunca sofreu qualquer tipo de acusação.

Este é apenas um dos muitos escândalos que marcaram a carreira de Caetano (embora o único de cariz sexual), a maior parte dos quais culturais e políticos – a sua aparição na Música Popular Brasileira foi uma revolução que abalou os valores conservadores da cultura da época (e atiçou a censura); a sua posição sobre a ditadura brasileira valeu-lhe o exílio, que ele considera o período mais difícil da sua vida.

Coração de Caetano é coração vagabundo

Certamente dona Canô não imaginaria nada disto há 80 anos, quando deu à luz o quinto filho; mas alguma coisa musical haveria nos genes da família porque dois filhos mais tarde nasceria Maria Bethânia, a mais nova dos sete irmãos de dona Canô com Seu Zezinho. A Bahia ainda não era a entidade mítica em que se tornou mais tarde na obra de Caetano – Santo Amaro, onde viviam, era uma terra pequena, rural, de escassa sofisticação.

Mas às vezes a sofisticação não está no que nos rodeia, mas dentro de nós – ou, no caso de Caetano, nos ouvidos: aos 17 anos ouviu “Chega de Saudade”, a canção e álbum de João Gilberto, descobriu a bossa-nova e, com ela, todo um novo mundo, uma forma de fazer canções que desconhecia. A sua voracidade não ficou por aí: mais tarde absorveria o rock que vinha de Inglaterra e dos Estados Unidos com a ferocidade dos devotos, mas um devoto que só sabe fazer as coisas à sua maneira – a génese do Tropicalismo é essa: ir buscar a cultura baixa e esquecida do Brasil e misturá-la com a pop estrangeira.

A obra de Caetano, seja em single ou LP, seja cantada por si ou por outros, é tão vasta e admirável que por vezes parece que ele conseguiu escrever uma canção para homenagear tudo o que de belo há no mundo: da beleza concreta de São Paulo à Baía da Guanabara, dos Mutantes a João Gilberto, do pagode ao camarão ensopadinho com xuxu.

Mas antes do Tropicalismo houve o primeiro êxito – pela voz da irmã, que gravou “Sol Negro”, uma extraordinária canção e uma das primeiras das quais Caetano se orgulhou. Pela vida fora Caetano faria muito dinheiro a compor para outros ou a permitir que artistas mais populares fizessem versões de canções suas. Na altura, compor para os outros era uma necessidade, uma forma de sobreviver financeiramente, mas também de começar a sua carreira musical, quando ainda ninguém o conhecia.

O seu primeiro êxito em nome próprio seria “Coração vagabundo” (que permanece um clássico muito apreciado), incluído no seu primeiro LP, Domingo, de 1967, a meias com Gal Costa. Nesse mesmo ano, Caetano lançou o seu primeiro e homónimo disco inteiramente a solo, que incluía um trio de canções que antecipou a revolução que vinha aí: “Tropicália” diz ao que vem logo no nome, tal como “Soy loco por ti América” – mas foi “Alegria, Alegria” a causar escândalo, com as suas guitarras elétricas; a comoção que a canção causou ao ser apresentada no Festival de Música Popular Brasileira não fez com que Caetano recuasse na sua vertigem revolucionária – antes pelo contrário, fê-lo crer que estava no caminho certo (até porque os músicos da sua geração estavam do seu lado).

Um ano volvido e saía essa obra-prima coletiva que foi Tropicalia ou Panis et Circencis (julho de 1968), o disco que anunciou ao Brasil e ao mundo que a música popular brasileira nunca mais seria a mesma. O facto de ser um disco coletivo (que incluía Tom Zé, Os Mutantes, Gal Costa, Nara Leão, Gilberto Gil ou Torquato Neto, entre outros) é importante porque assinalava que o Tropicalismo, que rejeitava a ideia de baixa cultura e fazia questão de ir buscar géneros musicais tidos como baixos e misturá-los com a rock, a pop e o sinfonismo, não era uma ideia solta de um artista, mas um movimento, uma forma de olhar o mundo partilhada por toda uma geração.

Photo of Gilberto GIL and Caetano VELOSO

Uma das muitas ocasiões em que Caetano Veloso dividiu o palco com Gilberto Gil, provavelmente uma das parcerias mais frutuosas da história da música popular brasileira

Redferns

O que levou a mais um escândalo: durante a apresentação de “É Proibido Proibir”, numa eliminatória do 3.º Festival Internacional da Canção da TV Globo, Caetano – que escrevera o tema e se fazia acompanhar pelos Mutantes, reagiu às vaias do público e do júri improvisando um discurso em que dizia “Vocês não estão entendendo nada!”, frase que ficou para a história da MPB.

1968 é, portanto, um ano marcante na vida de Caetano e é-o mais ainda porque no final do ano ele e Gilberto seriam presos, o que não foi propriamente surpreendente, tendo em conta as posições de esquerda de ambos e o facto de ambos já terem visto várias canções suas serem censuradas (não no sentido atual de “cancelado”, mas verdadeiramente impedidas de passar na rádio). Um par de meses depois o par seria solto, mas a vida no Brasil tornar-se-ia impossível – em 1969 Caetano, Gil e as respetivas mulheres aterravam em Londres (onde viriam a conhecer José Afonso, na gravação de um disco do cantor português).

“Com fé em Deus, eu não vou morrer tão cedo”

Uma possível definição de ironia é o disco que mais se odeia da própria discografia tornar-se, durante anos, o mais vendido (o que não é o mesmo que dizer que as suas canções são as mais populares da discografia de Caetano). Foi o que aconteceu com Transa, de 1971: cantado em português e inglês, misturava baião e forró com blues e reggae – e o seu som rústico sofisticado era e é uma bomba, uma obra-prima, tanto nos ritmos escolhidos como nas melodias como no delicado equilíbrio entre melancolia, raiva e alegria de estar vivo: “Nine out of ten movie stars make me cry / I’m alive”, cantava Caetano em “Nine Out of Ten”, uma das mais míticas canções de Transa.

A entrada nos anos 80 vê Caetano tornar-se uma estrela, em particular quando edita Totalmente Demais, delicioso disco ao vivo, de 1985; é nesta altura que Caetano entra na sua fase clássica, num suceder de obras-primas, uma sequência imbatível em que Caetano combina géneros rurais com técnicas sofisticadas de arranjos ou com o rock, entregando grande canção atrás de grande canção atrás de grande canção.

Caetano nunca tocou Transa na íntegra ao vivo e só muito recentemente conseguiu tocar uma ou outra faixa do disco em palco – durante anos recusou-se mesmo a falar do disco, assinalando-o como o disco que menos apreciava na sua discografia; mas é muito possível que essa tenha sido uma reação a ver um disco seu tornar-se (ao longo dos anos) um êxito no seu Brasil natal, quando o disco, para ele, significava falta de liberdade.

Esta é a fase mais experimental de Caetano, cujo expoente máximo é Araçá Azul (de 1973), um disco em que praticamente não existe aquela estrutura (verso-ponte-refrão) a que vulgarmente chamamos canção. O descalabro comercial foi de tal ordem que o disco foi retirado de circulação – o tempo, contudo, tornou-o numa peça de coleção, muito à conta da extraordinária faixa homónima com que o disco fecha: “Araçá Azul” dura 1m20 de absoluta perfeição e é o mais próximo que os homens alguma vez estiveram de Deus, e quem diz isto é um não-crente:

“É sonho-segredo
Não é segredo
Araçá azul fica sendo
O nome mais belo do medo

Com fé em Deus
Eu não vou morrer tão cedo

Araçá azul é brinquedo”

Cateano voltou ao Brasil em 1972, dando início a uma época confusa: apesar de todos os discos dessa década e do início da década de 80 terem grandes temas, eram um pouco desequilibrados e por vezes sentia-se uma certa falta de fio condutor; mas isto não invalida que nesse período Caetano não tenha escrito uma série de canções extraordinárias, certamente das melhores da sua carreira, e que foram êxitos na sua voz ou de outros – “Tigresa”, por exemplo, começou por se tornar popular na voz de Gal Costa, antes de o próprio Caetano (entre muitas outras pessoas) a regravar; “Um índio” é dessa época, a extraordinária “A Tua presença morena” é dessa época, “Cajuína” é dessa época e ainda hoje toda a gente no Brasil as conhece.

Prenda dele, prenda nossa

A entrada nos anos 80 vê Caetano tornar-se uma estrela, em particular quando edita Totalmente Demais, delicioso disco ao vivo, de 1985; é nesta altura que Caetano entra na sua fase clássica, num suceder de obras-primas só possível em alguém no topo da forma: Circuladô (de 1991), Circuladô Vivo (o ao vivo de Circuladô, de 1992), Tropicália 2 (de 1993, a meias com Gilberto Gil), Fina Estampa (de 1994 e o correspondente ao vivo, de 1995), Livro (de 1997), Prenda Minha, o admirável ao vivo de 1998, repleto de canções desconhecidas de outros e novas e velhas canções suas, sumptuosamente arranjadas, e Noites do Norte, de 2000, constituem uma sequência imbatível em que Caetano combina géneros rurais com técnicas sofisticadas de arranjos ou com o rock, entregando grande canção atrás de grande canção atrás de grande canção.

Caetano Veloso no palco do Coliseu dos Recreios, onde atuou ao vivo em setembro de 2021

KIMMY SIMÕES/OBSERVADOR

De certa maneira, o grande Caetano acaba aí; houve novas polémicas, em particular à volta da sexualidade das letras de (2006), um disco mais pop, colaborações que merecem palmas (como a sua produção para João, Voz e Violão, disco de regresso de João Gilberto e, como cantou Caetano, “melhor que silêncio só João”), houve inúmeros prémios (incluindo um Grammy e mais outras duas nomeações, isto para não falar de vários Grammys Latinos), variadíssimas causas, mas o que não houve mais foi um disco imbatível, uma obra-prima de uma ponta à outra.

Mas também não é necessário: a obra de Caetano, seja em single ou LP, seja cantada por si ou por outros, é tão vasta e admirável que por vezes parece que ele conseguiu escrever uma canção para homenagear tudo o que de belo há no mundo: da beleza concreta de São Paulo à Baía da Guanabara, dos Mutantes a João Gilberto, do pagode ao camarão ensopadinho com xuxu, nada ficou de fora, nem os géneros menores da música brasileira, nem o cinema brasileiro (“E o samba quis dizer/ Eu sou o cinema”, cantava, a meias com Gilberto Gil, na genialíssima “Cinema Novo”, de Tropicália 2), nem as comidas do Brasil, nem Gaudí, nem Lévy-Strauss, nem João, sempre João, melhor que silêncio só João.

E, se me permitem a heresia, melhor que João só as visões das coisas grandes e pequenas que há no mundo e saíram mais belas da garganta de Caetano. Porque o mundo é admirável, mas nada é admirável até ter sido cantado por Caetano.

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