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Café Gelo: os 60 anos de um grupo que nunca existiu

Depois de Costa e Buíça dali terem saído para matar o rei D. Carlos, o Gelo voltou a ser um café normal. Por isso, quando em 1957 começaram a aparecer ali jovens pintores e poetas, ninguém desconfiou.

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Em 2014, o escritor Helder Macedo telefonou ao velho amigo e poeta Herberto Helder para ver se o convencia a colaborar no projeto de um livro sobre o chamado Grupo do Café Gelo. Herberto respondeu: “o Gelo nunca existiu” e o livro não se fez. Esta é, pois, a tentativa de contar uma história que talvez nunca tenha acontecido, que não passe de um mito urbano, de uma lenda das enigmáticas noites da Lisboa salazarista. Uma história cuja força irradia mais do anonimato e da utopia do que das presenças e dos factos. Perseguimos rastos, vestígios daqueles quase trinta rapazes que, entre 1957 e 1962, vinham não se sabe bem de onde, desciam escadas, atravessavam ruas, saiam de autocarros, de elétricos e desaguavam no Café Gelo do Rossio como um bando de condenados chega ao inferno.

Se, vindos dos Restauradores, pararmos na primeira porta do Rossio, um pouco antes do Nicola, temos o discreto Café Gelo. Se entrarmos e atravessarmos o corredor podemos ver a sala das traseiras e, em mais uma noite sem história, algures no ano de 1957, podemos ainda ver ali misturados com clientes habituais, com trabalhadores da pequena burguesia que jantam por ali, com casais de namorados devidamente acompanhados pelos pais, um grupo de rapazes que bebem bicas, cervejas e bagaços, uns falam alto, gesticulam, outros escondem-se em silêncios atentos ou indiferentes.

Fachada do Café Gelo em 1961

Há os que ironizam, os melancólicos, os ternos, os que falam dos quadros que vão pintar, dos poemas que andam a escrever. Outros gozam com esses utópicos futuros. Alguns são particularmente altos e belos, outros estão de costas e não lhe vemos os rostos. Alguns ainda não chegaram, outros não virão nessa noite. De vez em quando haverá ali raparigas, daquelas poucas que frequentam os cafés à noite. E marinheiros como aquele que escrevia poemas e levou António Barahona ao Café Gelo para lhe apresentar Mário Cesariny de Vasconcelos. Haverá por ali bufos da PIDE? Não sabemos. Eles também não sabem e por isso não é qualquer um que deixam sentar-se àquelas mesas. Também não apreciam neo-realistas, pessoas felizes e auto-satisfeitas, escritores premiados. Mortos por mortos preferem a companhia de António Maria Lisboa, que está sempre por ali, como um anjo melancólico.

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A desconfiança, a paranóia e a loucura andam por ali. Reparamos que um dos jovens tem pousada ao seu lado uma tabuleta onde se pode ler: “Aqui não se vende”. Anda sempre com ela. É um aviso aos incautos. Chama-se Manuel de Castro, o pai Governador em Goa, tinha-o posto num seminário de onde ele fugiu. Falava sete línguas, sobrevivia de trabalhos precários e traduções. Escreverá dois livros de poesia Paralelo W (1958) e Estrela Rutilante (1960).

Já tinham lido todos os livros, mesmo os que supostamente não tinham sido publicados ou tinham sido confiscados, mesmo Shakespeare e, por isso, sabiam que quando Cesariny exclamava You Are Welcome to Elsinore, ele não estava senão a dizer que o reino podre de Hamlet não era na Dinamarca. Era mesmo aqui, Portugal.

O barulho aumenta quando chega Mário Cesariny de Vasconcelos que acabou de editar o seu livro Pena Capital, na editora Contraponto de Luiz Pacheco, que nessa noite não veio. Não sabemos, nem saberemos porque é que Cesariny, já com 34 anos, a passagem polémica por dois grupos Surrealistas, livros editados, publicamente homossexual, começou a juntar-se àqueles jovens de vinte e poucos anos, acabados de entrar na universidade, uns pintores, outros ilustradores, outros aspirantes a poetas, que paravam ali, por acasos vários, por solidões, equívocos, desencontros vários. Certamente todos conheciam Cesariny, ou pela poesia ou pela pintura e muitos não escondiam o fascínio que tinham por ele.

Se olharmos com atenção os rostos percebemos que aqueles rapazes talvez não sejam assim tão novos. Já viajaram, já perderam mães e pais e irmãos. Conhecem bem a violência. Já foram meninos prodígio de suas mães, criados como príncipes nas suas famílias da alta e média burguesia de Portugal e das Colónias. Já tinham lido todos os livros, mesmo os que supostamente não tinham sido publicados ou tinham sido confiscados, mesmo Shakespeare e, por isso, sabiam que quando Cesariny exclamava You Are Welcome to Elsinore, ele não estava senão a dizer que o reino podre de Hamlet não era na Dinamarca. Era mesmo aqui, Portugal, e que os emparedados eram eles, em busca de palavras que cumpram o seu dever de falar.

Sala traseira do Café Gelo em 2017. Nenhum rasto da presença daqueles rapazes

Mais tarde chega o velho poeta Raul Leal, que fez parte do Grupo Orpheu e conheceu Fernando Pessoa. Vem, como sempre, acompanhado do amante, um ex-pugilista, que se sentava ali como se um deles fora. Leal contava histórias dos dias com “Ferrrnanadinho”, e os rapazes gostavam daquela excentricidade de quem já tinha gasto três fortunas, vivido em Paris e carregava muito nos “rrr”. Alguns levantam-se e vão embora. O dinheiro é curto. Quando uns saem outros parecem de repente ter chegado. Mas não. Estiveram sempre ali sem ninguém dar por eles. Nunca se sabia para quem ia impender as maldades e as crueldades nessa noite. Qualquer um podia ser a vitima.

Ilustração publicada no Diário de Lisboa

Não podemos fotografá-los. Eles também não se fotografam, nem se pintam. Apenas este cartoon de Benjamim Marques, um dos ilustradores que passaram por lá. De qualquer forma, nenhuma fotografia que houvesse poderia resolver o mistério daquelas existências, o instante efémero daqueles corpos ou as feridas que por eles alastravam. Não eram ninguém. Durante décadas, talvez para sempre, eis a sua circunstancia: o anonimato.

“Na clientela do Café Gelo, nos anos 50-60, não teria homogeneidade etária, coexistiam tipos dos 8 aos 80, do José Carlos González, caco infantil, ao Raul Leal, do Orpheu, caquético total. Escassa identidade ideológica, dos fascistas aos anarcas como o Forte, o Henrique Tavares, o Saldanha da Gama. Prostitutas, bêbados e maricas. Maluquinhos como o António Gancho. Nenhuma programação estética. Dali não saiu revista, doutrina, escola que se aproveitasse. Então?! Havia, isso sim, um espaço de convívio em liberdade plena, feroz e mútua crítica, nenhuma contemplação pelo arrivismo…” [Luiz Pacheco]

No circo de feras

Daquela sala traseira do Café Gelo, assim chamado porque terá sido o primeiro o ter gelo, saíram, na tarde de 1 de fevereiro de 1908, Alfredo Costa e Manuel Buiça para a praça do Comércio com as carabinas debaixo do casaco. Quem os visse descer a rua não diria que iam matar o rei D. Carlos e o filho D. Luís Filipe. Que aquele regicídio que levaria à proclamação da República e com ela uma mudança de sentido na História de Portugal. Ironicamente os fervorosos republicanos deste país nunca inscreveram nos seus mitos este lugar que parece inegavelmente destinado às figuras mudas da história. Aos que não vêm de sitio nenhum, aos que estão de passagem, sem outro comando que não sejam as suas paixões e apetites que o mundo julgará sempre como “insanos”.

Evocação do Regicídio, por Costa e Buiça, na sala das traseiras do atual Café Gelo, no Rossio

Mas não foi por isso que entre 1956 e 1957 o Gelo passou a ser a toca de outros seres agitados, perseguidos pelos seus fantasmas, violentos, revolucionários de nenhuma revolução, assassinos de um único rei: eles mesmos. Não eram um grupo, eram passageiros na noite, nos dias. Não eram os heróis. Eram os fracos, os que não tinham força para serem aquilo que as famílias, a sociedade, a pátria queriam que eles fossem: advogados, médicos, funcionários burocráticos respeitáveis, com uma sexualidade igualmente respeitável e, preferencialmente, tementes a Deus. Todos, os quase todos sofriam de uma “impericia absoluta de estar no mundo”, como dirá o poeta Ernesto Sampaio. O que os juntava ali era a revolta impotente, ou como Helder Macedo, lhe chamou uma “utopia da negação.”

“O que todos nós, os do Café Gelo, tínhamos em comum era uma atitude de recusa, uma partilhada vontade de quebrar amarras, um só sabermos o que não queríamos para podermos deixar um espaço livre para o que pudéssemos talvez querer. A recusa de normas estabelecidas era a nossa única norma. O questionamento de valores impostos o nosso único valor. As noites eram os nossos dias. Se vivíamos num mundo às avessas, tínhamos de conseguir viver no avesso das avessas. Estávamos todos muito zangados com o que queriam fazer de nós: o governo, as universidades, as várias polícias que não nos queriam deixar ser quem ainda não sabíamos que poderíamos querer ser, os intelectuais estabelecidos que nos queriam ensinar a sermos quem não queríamos ser. Desdenhávamos rótulos, desprezávamos preconceitos(…) O que havia de comum em todos nós era um grande nojo partilhado em modos convergentes de o exprimirmos. A utopia da negação. Uma ‘utopia’ é um não-lugar. É isso que a palavra etimologicamente significa. É a transformação da impossibilidade em metáfora, é uma metáfora do desejo inalcançado.” [Helder Macedo, Camões e Outros Contemporâneos]

Por cima do café Beira-Gare (que ainda existe) na esquina da estação de Comboios do Rossio, havia umas águas furtadas que uns jovens estudantes de pintura alugaram para usar como atelier: Gonçalo Duarte, René Bertholo, João Vieira, Costa Pinheiro, José Escada, Lurdes Castro. Uma assoalhada tão pequena que não dava para estarem lá todos ao mesmo tempo.

Não se viam como um grupo, não se pensavam como um grupo. E ainda hoje ninguém encontrou um nome que lhes acente, talvez porque eles não caibam dentro de nenhum nome, de nenhuma designação. Como sabemos as palavras são sempre epitáfios da experiência viva.E estes rapazes recusam-se a morrer de qualquer morte que lhes seja atribuída.

Como sempre, não há história, há acasos que à força da razão juntamos como contas num rosário para fazermos uma narrativa-prece que nos aquiete. Por cima do café Beira-Gare (que ainda existe) na esquina da estação de Comboios do Rossio, havia umas águas furtadas que uns jovens estudantes de pintura alugaram para usar como atelier: Gonçalo Duarte, René Bertholo, João Vieira, Costa Pinheiro, José Escada, Lurdes Castro. Uma assoalhada tão pequena que não dava para estarem lá todos ao mesmo tempo. Nos entretantos iam para o Gelo, porque era só descer a escada. Por ali começaram a aparecer os amigos, colegas do liceu recém terminado ou da faculdade recém iniciada: Helder Macedo, Manuel de Castro, José Manuel Simões, José Sá Caetano, João Rodrigues.

Helder Macedo, Edmundo Bettencourt e António Salvado a caminho do Gelo, circa 1957. Foto: cortesia de HM

Nesses anos era hábito os estudantes reunirem-se na café Martinho ali mais acima e alguns começaram a debandar para o Gelo, como António Salvado, José Sebag, José Carlos Gonzalés. Eram naturalmente os mais problemáticos, os que faltavam às aulas, os que já bebiam demais, os que liam o que não deviam ler, os muito politizados, muito antagonizados com as famílias, a figura paterna, a pátria. Não eram portanto um grupo no sentido convencional do termo. Iam e vinham, passavam por lá, espreitavam pelo vidro para verem quem era o Mário Cesariny. Outros chegaram vindos não se sabe de onde. Uns queriam conhecer o Cesariny, outros procuravam afinidades electivas, outros ainda não saberemos o que procuravam, nem se procuravam alguma coisa. Aconteceu que nessas tardes e noites vieram também o Ernesto Sampaio, o António José Forte, o Vírgilio Martinho, o Manuel de Lima, o Ricarte Dácio

Eram naturalmente os mais problemáticos, os que faltavam às aulas, os que já bebiam demais, os que já tinham passado por prisões pidescas, os que já estavam suficientemente destruídos para não terem medo de lhes colarem o titulo de marginais, homossexuais, preguiçosos, malucos.

António Barahona, aos 18 ou 19 anos desenhado por Cesariny

O Café Gelo não era o espaço de um ritual fechado, embora quem chegasse fosse submetido a uma cruel iniciação prévia, que consistia em aguentar a ironia, o sarcasmo, o aviltamento, a má língua. Não, estes não eram bons rapazes. E o seu gostar uns dos outros exprimia-se muitas vezes de forma distorcida, num pôr à prova constante a ver se não está podre. Não eram uma irmandade alimentada pelo elogio fácil. Era uma comunidade irreal, cujos laços se faziam e desfaziam à passagem das horas, da ansiedade, da força, do medo, da euforia, da quantidade de álcool ingerida. António Barahona era o mais jovem do grupo, também um dos mais belos e talvez por isso conquistou as atenções de Cesariny. Rindo muito recorda: “O Mário gostava muito de andar a pé pela cidade, andar sem destino e eu acompanhava-o. Outras vezes íamos para o atelier dele ouvir música. Ficávamos horas deitados no chão a ouvir Chopin. Ele sabia que eu tinha um romance com a minha prima e por isso a família estava toda contra mim. Quando fez o quadro veio oferecer-mo e disse na brincadeira: agora dê-me um beijo como dá á sua prima.”

Sobre esses entendimentos, estes pactos feitos em silêncio, escreveu Herberto Helder no livro Photomaton & Vox:

“Naquela sociedade canibal os que não estavam a deixar-se devorar contavam-se por não muitas caras. Que caras! Começou-se a ver. Houve incursões psiquiátricas, suicídios, prisões. Alguns destinavam-se a si próprios ao estrangeiro. Quando subiu a temperatura, os que se aproximaram com os seus engraçados aparelhos da curiosidade afastaram-se depressa. Dispensámos. Digamos para aí uma dúzia. Cada um mergulhou à sua maneira nas confusões. Se passava alguém, via cadáveres. Não sei qual de nós, de um modo ou de outro, se não transformou em cadáver (…) a nossa alegria nesse tempo e sitio era uma coisa truculenta, desesperada, um tanto sinistramente indesculpável. Gostávamos uns dos outros não muito por amor mas por inquieta cumplicidade. Praticávamos juntos tanta ironia feroz, tanta decifração incomoda e pormenorizada malevolência, que já não era possível pensarmos em ser de outra raça (…) Não era mansidão o que havia para dizer e fazer. Mas ligava-nos a comoção, sabíamo-nos mutuamente, e por isso praticávamos a honestidade de não facilitar a nossa própria dificuldade.(…) Carnívoros sim, mas tocados também pela secreta fragilidade de quem anda perdido no escuro(…) Existe quem não entenda destes divertimentos. Entendiamos, nós. Entender unia-nos. Uma das exressões asperamente cultivadas era:’está podre!’. Entendíamos.”

Durante cerca de cinco anos, entre 1957 e 1962, os que ousaram entraram nessa arena e permanecer tempo suficiente para se tornarem, à vez, gladiadores e feras, ficaram tocados pela mesma comoção e pelo mesmo veneno. Não havia televisão, nem redes sociais que mediassem o desejo de cada um de se tornar uma lenda. Não se mandavam press releases para os jornais a anunciar uma terça-feira clandestina no Café Gelo, até porque isso podia atrair as atenções da PIDE e alguns deles tinham estado envolvidos na campanha do General Humberto Delgado. Helder Macedo, Herberto Helder e José Manuel Simões chegaram a estar cooptados para transportar armas para um suposto golpe de Estado que não houve.

A arte era para eles o resultado de uma terrível agitação interna, provocada, também, por factores externos. A arte não era uma acessório para vestir nos salões do regime, era um refugio contra tudo o que era apenas uma aparência. O ilustrador João Rodrigues enunciava uma revolução em forma de performance artística:

“É preciso embrulhar esta chávena. Embrulhar a mesa. Embrulhar o Café. Embrulhar Lisboa. Embrulhar o País. E deitar o embrulho ao mar.” [João Rodrigues]

Se voltarmos à sala traseira do café Gelo percebemos que é um lugar aberto. Que contém a cidade e a sua atmosfera alegre e triste, os seus ritmos, os seus meandros, do Texas Bar, ao Submarino ou ao Bolero, a casa da Natália Correia. Outros iam para outros lados das suas vidas insondáveis que não eram de todo partilhadas uns com os outros. As suas vidas familiares conflituantes, a relação difícil que quase todos eles mantinham com a figura paterna, a desistência dos estudos (quase todos eles deixariam os cursos a meio), a inadaptação às instituições sociais faziam das ruas a sua casa. Cesariny há-de contar no documentário de Miguel Gonçalves Mendes “nunca escrevi um só poema em casa, escrevi sempre na rua, nos cafés”.

No entra e sai, nos meses convertidos em anos encontravam-se afinidades eletivas, havia zangas, cenas de pancada, insultos, ensaios de suicídios, livros, começados, acabados, deitados ao mar. Este depoimento de Carlos Loures, poeta, ligado à revista Pirâmide e frequentador da tertúlia, ilustra bem o ambiente:

“…Diria que Manuel de Castro era uma pessoa tímida e sem jeito para o convívio. Não fazia concessões nem fretes – se lhe liam um poema e se ele não gostava, dizia-o logo de forma brutal e demolidora ou de maneira delicada, mas consistente, consoante estava em dia sim ou em dia não. Tinha uma personalidade vincada e, sobretudo, era um grande poeta a quem nunca foi dado o merecido valor. Éramos muito amigos. Uma vez até andámos à porrada (e há lá melhor maneira de selar uma amizade!). Uma piada envenenada que ele disse sobre a ‘Pirâmide’ e que eu levei a mal. Felizmente que estávamos ambos com os copos e, diz quem assistiu à cena, que a maioria dos murros acertou no vácuo. Ele tinha uma direita potente e aleijou os dedos nos azulejos da parede.”

“Até nisso, de andarmos à porrada uns com os outros ou de cultivarmos a morte e o suicídio, éramos mais românticos que surrealistas”, dirá António Barahona recordando, com o Observador, esses anos no Gelo. “Claro que o surrealismo foi marcante, em parte pela presença do Cesariny, mas também porque aquilo representava uma forma completamente nova de pensar a poesia, a escrita, a vida. Não posso explicar o quanto A Pena Capital mudou a minha vida. Mas tínhamos outras influências. Não creio que valha a pena estarem a tentar classificar-nos”. Quando começou a frequentar o Gelo, António Barahona, que vem de uma família monárquica com origens na alta aristocracia espanhola e portuguesa, tinha 17 anos e um desejo: queria conhecer o Mário Cesariny. Hoje, ao 79 anos, é um dos últimos argonautas vivos dessa nave e escreve:

(…) De cima da parede espreito e vejo
uma mesa ocupada por nós todos:
assembleia de pássaros ignotos
em ilhas de desejo.

Vejo o corpo de glória de Lisboa

reclinado no ombro do Ernesto
para ler bem o seu ensaio honesto
dedicado a Pessoa.
Vejo o Herberto a discutir mui louco
com o Gonçalo Duarte e o D’Assumpção;
o Forte tem o coração na mão
esquerda e fala pouco.
Vejo o perfil do Saldanha da Gama,
o Virgílio em tríptico esboçado,
Raul Leal, d’Orpheu, Henoch irado
com lucidez de flama.
Vejo um adolescente que sou eu
e que aspirava tanto a morrer jovem,
sentado, entre nós outros, quase à margem
numa fresta de céu.
Manuel de Castro bebe o seu bagaço,
João Rodrigues faz desenho à pena
e Mário Cesariny põe em cena
a sua luz no espaço.
Passaram para mais de cinquenta anos
e uma tal luz persiste, não esmorece:
ilumina a leitura até ao vértice,
em versos soberanos.

Poeta engalanado de galfarros,
noctívago andador com pés de jade
e poesia, amor e liberdade,
e mais de mil cigarros.
Nas nuvens, que se formam ao redor,
repousam borboletas d’asas pandas,
inebriadas pelo fumo às ondas
e cada vez maior.
Rio de fumo espesso que atravessa
o jovem mágico, o das mãos de oiro,
esse que a remar não se cansa muito
e olha tão depressa
tal se fosse de moto a singrar
no Tejo até à foz, do céu suspenso
por um fio de voz, vindo do imenso
cintil azul do mar.
Na sombra, Cesariny d’alto porte,
agora dá mais luz, arde a cidade,
em poesia, amor e liberdade,
até matar a morte.”

Na nave dos argonautas, no navio de espelhos

O Gelo quando muito foi a nave para os argonautas fazerem uma viagem iniciática. Nem todos tiveram a coragem dessa aventura que é sempre terrivelmente solitária de buscar o velocino de ouro, a liberdade de se ser o que se é. A autópsia em vida que faziam uns aos outros tinha como reverso a capacidade de entreajuda. Por isso, mesmo depois desta viagem, mesmo depois de muitas metamorfoses muitos deles permaneceram ligados para o restos das suas vidas.

Um grupo de franco-atiradores, é verdade; um grupo de poetas, sem dúvida. Que disparava ao acaso sobre a multidão, que inventava os seus infernos e paraísos, que usava a liberdade de expressão ora voando, morrendo, desaparecendo, escrevendo às vezes.” [António José Forte sobre o Gelo]

O mainstream literário lisboeta classificava-os como "uma cambada de panascas", conta Luiz Pacheco numa entrevista. Até porque a malevolência praticada entre eles chegava e sobrava para atacarem também tudo e todos em redor, em especial os Neorrealistas. Isso teria como consequência a marginalização dos artistas e uma tentativa constante de menorização do seu trabalho.

No ano de 1957 estreiam-se Helder Macedo com Vesperal e Ernesto Sampaio com Luz Central. Já em 1958 e 1959 Herberto publica na Contraponto de Luiz Pacheco o Amor em Visita, título sugerido por José Manuel Simões. Mário Cesariny há-de organizar uma sessão de leitura para fazer uma espécie de auto de fé ao livro. Helder Macedo justificá-lo-á em conversa com o Observador: “Não era por mal. Era a nossa maneira de dizermos uns aos outros: ‘não te leves a sério'”. Manuel de Castro publica Paralelo W, António José Forte publica 40 Noites de Insónia de Fogo de Dentes Numa Girândola Implacável e Outros Poemas. Mário Cesariny organiza a antologia Surrealismo/Abjecionismo, onde inclui a poesia de vários destes novos poetas. Ernesto Sampaio edita o seu primeiro ensaio sobre o Surrealismo intitulado Para uma Cultura Fascinante. Virgílio Martinho escreve Festa Pública. João Rodrigues ilustra as capas de Vesperal de HM e de Paralelo W de Manuel de Castro. Em 1959 José Sebag fará uma edição de autor de Poeta Precário, oferece alguns exemplares aos amigos e atira todos os restantes livros ao mar porque, como escreveu num poema desse mesmo livro perdido: “Cada um de nós deve ser o momento / de recusar férias à ferida”.

o herbário sou eu voluntário das guerras
a coronha na cara suicida na reserva
o herbário sou eu como um rio triste
ou um país que nova praga infeste
o herbário sou eu a chuva que não veio
o hortelão que jura que a terra é que não presta
a metáfora intrometida de permeio
o herbário sou eu passo a passo vidrado
passo a passo no asfalto espelhado
o herbário sou eu sozinho como todos
os que fazem ou são tamanha multidão [José Sebag]

Tentam-se duas revistas Folhas de Poesia (1957-59) mais abrangentes e com o objetivo de dar a conhecer vários tipos de vozes e grandes poetas esquecidos. Assim, ao invés de se publicarem apenas a si mesmos numa espécie de incesto do qual só poderiam nascer monstros, homenagearam os poetas Edmundo Bettencourt e Ângelo de Lima, Teixeira de Pascoaes, convidaram a escrever para a “revistinha” poetas mais velhos e já com algum reconhecimento público como Jorge de Sena, Alexandre O’Neill, Carlos de Oliveira. Saíram 4 números, onde também publicaram José Sebag, Helder Macedo, Manuel de Castro. E a Pirâmide, da qual sairam três números (1959-1960). Mais acentuadamente surrealizante, teve textos de Pedro Oom, de Artaud (traduzido por Ernesto Sampaio), António José Forte, Carlos Loures, Vírgilio Martinho, Natália Correia.

Primeiro número da revista Folhas de Poesia, feitas por alguns poetas e pintores do Gelo, 1957

O mainstream literário lisboeta classificava-os como “uma cambada de panascas”, conta Luiz Pacheco numa entrevista. Até porque a malevolência praticada entre eles chegava e sobrava para atacarem também tudo e todos em redor, em especial os Neorrealistas. Isso teria como consequência a marginalização dos artistas e uma tentativa constante de menorização do seu trabalho. Apesar de alguns deles se terem tornado autores de culto, a verdade é que o reconhecimento, pelo grade público, das obras de Cesariny ou Herberto é recente e muitos outros estão totalmente esquecidos ou ignorados. Foi preciso chegarmos ao século XXI, 60 anos depois, para que estes poetas vejam as suas obras serem publicadas, lidas e apreciadas, ainda que num circuito muito restrito. Foi preciso esperar quase 60 anos para que alguém publicasse a obra completa de Manuel de Castro, o que aconteceu em 2014, com Bonsoir Madame, pela Língua Morta/Alexandria. Mas Manuel sabia que eles eram “os ultimos dos últimos”.

Texto de Luiz Pacheco sobre a morte de João Rodrigues

José Manuel Simões teve a sua obra poética publicada apenas em 2016, na Abysmo, Sobras Completas, António José Forte terá a obra completa Uma Faca nos Dentes editada numa edição definitiva pela Antigona, já este mês. O poeta Carlos Alberto Machado, vai publicar em 2018/19 a obra completa de José Sebag, cujo espólio foi descoberto recentemente na biblioteca da cidade da Horta, nos Açores.

“Aos dezoito anos, aos vinte e oito, a vida posta à prova da raiva e do amor, os olhos postos à prova do nojo. Entrar de costas no festival das letras, abrir passagem a golpes de fígado para a saída do escarro. Se não temos saúde bastante sejamos pelo menos doentes exemplares.” [António José Forte]

Mas vale também a pena ler a descrição que Ernesto Sampaio faz da literatura portuguesa, no livro Para Uma Cultura Fascinante:

“Ninguém pode viver senão ardendo. Mas aqui gela-se. Aqui a santidade é loucura, a abjeção virtude. Aqui, no meio da cãozoada portuguesa, um homem tem que se ocultar, isolar todas as suas virtualidades da influencia dos espíritos abortados, simisescos, dementes, que enchem páginas e páginas da hortaliça podre que trazem no cérebro e envenenam o ar com a miséria que exalam adormecendo a vida”.

Uns voltarão a Portugal mas já não ao Gelo. Outros não regressarão mais, como Helder Macedo, Costa Pinheiro, Gonçalo Duarte, René Bertholo, Saldanha da Gama. António Barahona casa com a poeta Luiza Neto Jorge e vai viver para Faro.

Em 1959 começaram as partidas. Os protagonistas da sala traseira do café Gelo vão mudando, embora Cesariny continue a exercer uma forte influencia sobre os poetas mais jovens. Saem os pintores. Deixamos de ver de vez em quando aquela rapariga de olhos muito azuis e cabelo escorrido, que lá ia com o namorado, a Lurdes Castro. Ela e René seguem para Munique e depois para Paris, tal como Costa Pinheiro. É lá que reencontram José Escada, João Vieira e Gonçalo Duarte. Uns conseguem bolsas de estudo outros vão mais ou menos à aventura, trabalham no que podem. Passam fome. Vivem amores fou como João Vieira e a pintora Menez, assumem a sua homossexualidade como José Escada. Na primeira exposição em Roma, em 1962, o pintor aproveita a atenção dos jornais para denunciar a ditaura e as perseguições em Portugal. É impedido de voltar a entrar no pais. O mesmo já tinha acontecido, em 59, com Helder Macedo. A sua participação na campanha de Delgado leva-o a ser perseguido pela PIDE. Durante dias é no 1.º andar do Gelo que foca escondida a sua mala. Parte para a África do Sul e depois para Londres. É proibido de regressar a Portugal. Herberto é outro dos que parte pela Europa a dentro para poder enlouquecer. Uns voltarão a Portugal mas já não ao Gelo. Outros não regressarão mais, como Helder Macedo, Costa Pinheiro, Gonçalo Duarte, René Bertholo, Saldanha da Gama. António Barahona casa com a poeta Luiza Neto Jorge e vai viver para Faro. Em 1962, os rapazes — que até então despertavam o interesse da polícia política sobretudo pelo liberalismo sexual (até porque um cadavre exquis é difícil de decifrar se não se manejar bem os símbolos) — são apanhados numa rusga policial ao Café Gelo. Luiz Pacheco recorda-se desse dia, 1 de Maio de 1962:

“Era um 1º de Maio. Havia uma manifestação muito grande em Lisboa… havia greve, talvez… opá houve mortos e tudo, houve polícias que foram parar dentro do lago do Rossio… aquilo foi a sério… foi a primeira manifestação a sério que houve em Lisboa… foi a primeira vez que apareceram carros de água com metilene para marcar as pessoas, tinta que não saía… ele aí apanharam muita porrada, na rua da Madalena, no Largo da Anunciada… então a malta do Gelo, estava lá o Virgílio Martinho, que disse: ‘o que é que a gente veio cá fazer?’ Respondi-lhe: ‘então a gente veio cá mostrar o casaco… dar porrada? o que é se pode vir fazer…’ E de facto estivemos no dia 1 de Maio muito sossegados. Eu sentei-me num cantinho, tinha ao meu lado o pai da Fernanda Alves [atriz e namorada de Ernesto Sampaio], que era funcionário do DN, por isso é que o genro aparece no DN, ele estava ao meu lado, também muito choné, e mostra-me a arma que era um canivete com uma coisa deste tamanho… também devia estar o Ernesto Sampaio, o João Rodrigues… ao lado do Gelo havia uma pensão residencial e acho que uma estrangeira qualquer, americana ou inglesa, saiu da pensão para a rua, sabia lá o que se passava, e os gajos vieram atrás da mulher, pareciam verdadeiras feras, ela vinha assarapantada, vieram a sacudir a mulher… disseram: ‘ninguém se levanta daqui, ninguém sai!’ O João Rodrigues tinha ido mijar ao 1º andar, vinha a descer a escada, disseram, ‘ei você…’ E a malta disse: ‘é daqui! é daqui! é daqui deste grupo que está aqui sentado…’ Quando os gajos iam a sair, já de costas voltadas, não sei porque carga de água começámos ‘uhuhuhuhuhuh’. Quando a malta faz o ‘uhuhuhuhuhu’ os gajos regressam e começam a dar porrada à maluca… eu estou no canto, vem um gajo a distribuir cacetadas… eu aponto para os óculos e fizemos um passo assim de dança, ele para um lado eu para outro, depois começou a dar porrada num gajo que estava sentado e eu pirei-me, pirei-me para outro canto… nós não podíamos sair… Havia uns açucareiros de metal, que eram assim uma meia esfera de metal, cheios de açúcar, aquilo era chato, os açucareiros voaram, estava um gajo com a pinha toda partida, cheia de sangue e de açúcar… havia lá um gajo que era careca, diziam que era bufo, levou porrada dos polícias. O gerente, que era um gajo chamado Sequeira, um gajo muito simpático, foi chamado à esquadra nacional e perguntaram-lhe: ‘quem são esses gajos?’. ‘Ah, aquilo é malta, estudantes, artistas, pintores, poetas…’ ‘Não quero lá esses gajos’. De maneira que quando voltámos, 3 ou 4 de Maio, o gerente disse: ‘vocês não podem estar aqui’. Fomos expulsos do Gelo. Foi quando a malta se passou para o café Nacional, um café enorme, que agora já não há, que era lá ao fundo, na rua 1º de Dezembro, do lado direito.” [entrevista publicada originalmente no blogue Esplanar e posteriormente no livro O Crocodilo que Voa: entrevistas a Luiz Pacheco“, de João Pedro George, Tinta da China, páginas 214, 215]

KWY, o triunfo do Gelo em Paris

Foram os rostos mais discretos desta história, ainda hoje há quem não associe o famoso grupo KWY, o grupo de artistas plásticos que mais sucesso internacional teve, ao café Gelo, às tardes de facas longas, ao surrealismo de Cesariny, ao singular misticismo de Manuel de Castro, ao longínquo de Herberto Helder. No entanto, essas ligações estão lá, mais uma vez à espera que alguém que goste fazer história a partir do invisível e as estude.

A revista, cujo título representava as três letras ausentes do alfabeto português reuniu Lourdes Castro, René Bertholo, António Costa Pinheiro, João Vieira, José Escada e Gonçalo Duarte, búlgaro Christo [ hoje conhecido por embrulhar monumentos inteiros e espaços públicos de Nova Iorque, em pano cor-de- laranja] e pelo alemão Jan Voss.

Um dos livros-objecto feito pelos KWY, que afinal foram também os fundadores da tertúlia do Café Gelo em 1956/57

Os KWY conseguiram publicar essa revista em Paris entre 1958 e 1964. Saíram 14 números em formato de livro manufaturado onde se juntam vários tipos de artes plásticas e poesia. Procurando escapar aos vários ismos (academismos, surrealismos, neorealismos, etc) fazem uma fusão de várias linguagens artísticas de uma forma e arrojada traduzindo a experiência de uma nova liberdade impossível aqui em Portugal.

Em muitos sentidos, os KWY serão um não-grupo como o Gelo, mas pessoas que se encontraram no tempo e no espaço com vontades comuns. Mais vontade de fazer coisas do que vontade de pertencer a tribos. Em entrevista a Alexandra Lucas Coelho, Lourdes Castro fala disso: “Um grupo é uma coisa que não se pode agarrar. Cada um fez o que quis, estando na mesma aventura. Não tínhamos dinheiro, imprimimos os três primeiros números no nosso quarto. Foi como uma carta aos amigos. E o René [Bertholo] chamou-lhe KWY porque nós queríamos mesmo sair de Portugal, ser outra coisa”.

“Dente por dente: a boca no coração do sangue: escolher a tempo a nossa morte e amá-la.”

Em 1967, a primeira partida definitiva: João Rodrigues, mirabolante e frágil ilustrador, atira-se do 3º andar da casa paterna: “sinto-me sempre como uma crisálida demasiado exposta à luz solar”, costumava dizer.

Em 1969, suicida-se o pintor Manuel D’ Assumpção.

Rui Sousa, no ensaio A Presença do Abjecto no Surrealismo Português (Esfera do Caos, 2016), vai analisar o percurso de alguns destes poetas do Gelo e a sua relação com os movimentos artisticos Surrealismo e Abjecionismo, com os quais eles são muitas vezes conotados, ainda que à revelia dos seus membros (é sabido que tanto Helder Macedo, António Barahona ou Herberto Helder rejeitam sempre serem classificados como surrealistas ou abjecionistas). Neste mesmo livro ele mostra como estes artistas cultivavam também uma certa marginalidade, a escuridão, o mergulho nos abismos da alma, o infernal. Não será por acaso que ali se cultuavam autores como Artaud, Henri Michaux, Isadore Ducasse (Lautréamont), Sade, Sacher Masoch, mas também os existêncialistas, Borges ou a geração beat americana.

Trabalho do pintor Manuel D’Assumpção

“Os poetas verdadeiros aceitam oferecer-se em sacrifício, vivendo conscientemente a voa da miséria, e da descida ao inferno pessoal para alcançarem a percepção dos interstícios crepusculares da existência humana(…) Não será alheia a esta aceitação de fatalidade e o negativismo exacerbado que acompanham a grande maioria dos membros desta segunda geração surrealista e outros poetas das décadas de 50 e 60…” [João Rui Sousa]

Esta posição de recusa, de auto-sacrifício, conferia-lhes, ante si próprios, uma espécie de superioridade moral, que os ajudava a suportar os embates constantes com o mundo em redor. E, para muitos, esta ética de recusa da mundanidade, prémios, prendas, foi mantida até ao fim da vida. A recusa dos previlégios, a que todos eles poderiam ter tido acesso.

Em 1971 Manuel de Castro morre de cancro no pancreas em consequência do alcoolismo. Uma morte lenta, consciente, como dirão os amigos. António José Forte, um dos mais insurgentes do grupo, com ligações ao PCP, que só nos anos 80 consegue publicar com mais regularidade também morre em consequencia do alcoolismo, em 1988. José Sebag morre do mesmo cancro pancreático que matara os outros dois, em Setembro em 1989, dois meses depois de entregar na editora o que será o seu primeiro livro depois do outro deitado ao mar em 1959, Cão até Setembro.

José Escada assume a sua homossexualidade e vive-a também sacrificialmente, cultivando ligações violentas e parasitárias que o levam ao consumo de drogas. Morre em 1980.

Helder Macedo desenhado por José Escada, para ilustrar um texto de Alfredo Margarido sobre o livro Vesperal, 1957

António Gancho passou a vida em instituições psiquiátricas, tal como Pacheco a passou na miséria, em quartos alugados e hospitais.

Sem nunca regressar a Portugal José Manuel Simões morre em Paris em 1999, recusando ser tratado e recusando a ajuda de João Vieira e Sá Caetano que se meteram num carro e foram a Paris para o trazer, sabendo que ele vivia com grandes dificuldades.

Antes de morrer em consequência de uma operação ao coração, o pintor João Vieira, que entretanto se tornou muito reconhecido, fez um quadro para Herberto Helder. A ideia era que ele tivesse a feliz ideia de o vender para ficar com algum dinheiro que o ajudasse na sua vida também difícil. O quadro nunca chegou a Herberto e, provavelmente, ele pendurá-lo-ia na parede e continuaria a não ter dinheiro para a bilha de gaz.

Ricarte Dácio, depois de uma vida dedicada a ajudar os outros, mata a tiro de caçadeira a mulher, o filho de 15 anos e o gato. Deixa um bilhete à empregada a pedir desculpa pela confusão e uma carta a Herberto Helder sobre a qual este nunca disse mais do que estas palavras: "Obviamente rasguei-a".

Ernesto Sampaio deixou-se morrer, em 2001, menos de 1 ano depois do desaparecimento da mulher, a actriz Fernanda Alves. “Morreu de amor”, dirá Cesariny sem uma ponta de ironia. “Foi a única pessoa que conheci que morreu de amor.”

O próprio Cesariny morre quase assim, entrando num processo depressivo profundo depois da morte da irmã, com quem viveu durante décadas. O poeta sobreviveu menos de dois anos à morte de Henriette.

Ricarte Dácio, depois de uma vida dedicada a ajudar os outros (durante meses alojou e cuidou de Cesariny e João Rodrigues para estes poderem ficar a viver em Londres), mata a tiro de caçadeira a mulher, o filho de 15 anos e o gato. Deixa um bilhete à empregada a pedir desculpa pela confusão e uma carta a Herberto Helder sobre a qual este nunca disse mais do que estas palavras: “Obviamente rasguei-a”.

Nós os intocáveis, os imundos, recusamos
nossa vida à condição comum
Porque é intemporal a rosa que nos leva
entre o dia e a noite.
Nós os derrotados, impuros oferecemos
nossa miséria a um significado
oculto e diferente —
asa branca na varanda
nome escrito nos telhados
estrada atravessando a terra de ninguém
Nós os últimos dos últimos coroamos
impérios e jardins.” [Manuel de Castro]

Como escreve Maria Filomena Molder, poucas coisas têm tanta “força magnética” como o anonimato. No recuo do Eu engendra-se uma força fecunda: a reflexão dos que olham. Perante estes quase trinta rapazes, homens, figuras, poetas, pintores, cineastas, editores, tudo o que podemos fazer hoje, 60 anos depois, é olhá-los sabendo que tudo o que se pode ver é aquilo que não se vê. Tudo o que podemos saber é aquilo que não sabemos. Dos mais assíduos apenas dois estão vivos (Helder Macedo, 81 anos, e António Barahona, 79 anos). Tocados pelo terror primitivo da luz solar mas sofrendo os efeitos devastadores da noite, podemos olhá-los mas não os poderemos tocar jamais. Eles não existem. O Gelo nunca existiu.

Alexandre Saldanha da Gama (pintor e poeta), António Barahona (poeta), António Gancho (poeta), António José Forte (poeta), António Maria Lisboa (poeta), António Salvado (poeta e professor), Costa Pinheiro (pintor), Ernesto Sampaio (poeta/tradutor/ensaista), Gonçalo Duarte (pintor), Helder Macedo (poeta, romancista, professor), Herberto Helder (poeta/tradutor), José Escada (Pintor), José Sebag (poeta/realizador de programas de rádio), João Rodrigues (ilustrador), João Vieira (pintor), José Sá Caetano (realizador de cinema), João César Monteiro (realizador de cinema), João Fernandes “zanaga” (jornalista), José Manuel Simões ( tradutor/poeta), José Carlos Gonzalés (poeta), Luiz Pacheco (editor/escritor/tradutor), Mário Cesariny (poeta/pintor), Manuel D’ Assunção (pintor), Manuel de Castro (poeta/tradutor), Manuel de Lima (poeta), René Bertholo (Pintor), Ricarte Dácio (livreiro), Raul Leal (poeta), Vicente Sanches (dramaturgo/guionista de Manoel de Oliveira), Virgílio Martinho (romancista/dramaturgo).

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