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Foi a Europa que fez de Kissinger aquilo em que Kissinger se tornou
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Foi a Europa que fez de Kissinger aquilo em que Kissinger se tornou

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Centenário de Kissinger — o europeu ambíguo

A maioria dos grandes estadistas define-se pelo que fizeram, pelos seus sucessos e fracassos. Kissinger, não. Kissinger define-se pela sua personalidade. Ensaio de André Abrantes Amaral.

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Este artigo foi publicado originalmente em maio de 2023 e é agora recuperado na sequência da morte de Henry Kissinger.

“We believe peace is at hand.” A frase que Henry Kissinger proferiu em finais de Outubro de 1972 tornou-se famosa. O então Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos referia-se ao Vietname e aos acordos de paz de Paris que estavam praticamente fechados. A frase ganhou fama porque era tão promissora quanto enganadora. Na verdade, não foi mais que uma tentativa de forçar o sucesso das negociações que acabaram por falhar porque Kissinger não pôs Saigão a par de certos pormenores. Semanas mais tarde, William Safire (o homem que escrevia os discursos de Nixon) congratulou Kissinger por a sua intenção ser a de garantir a Hanói que Washington continuava interessada na paz e não a de enganar o eleitorado norte-americano, que ia a votos no mês seguinte. Kissinger não gostava que o julgassem ingénuo e, quando Safire afirmou que antes ingénuo que insidioso, a sua pronta resposta foi: ‘Not in this job.’

O episódio descrito por Walter Isaacson na biografia de Henry Kissinger retrata a ambiguidade do gigante da diplomacia internacional. Para Kissinger, a acção humana, qualquer que esta seja, tem inúmeras consequências, sem contar com as diversas interpretações do que se diz ou faz. Kissinger possui uma visão ampla do mundo e para ele existe sempre mais do que uma forma de ultrapassar um problema. A moralidade não tem apenas uma leitura. Para Kissinger, nada pode ser dado como adquirido, há nuances, a política não se sujeita às mesmas regras que regem as relações de amizade, de família e até dos negócios. Para Kissinger, a fronteira entre o certo e o errado muda conforme as situações, conforme o momento, conforme a urgência, conforme o que se ganha e o que se perde, e tendo em conta o valor do que se adquire e daquilo que se prescinde. Nesse Outubro de 1972, Kissinger fez os possíveis e os impossíveis para que os acordos de paz no Vietname fossem assinados antes da reeleição de Richard Nixon. Tanto fez que irritou o próprio Presidente. Ao contrário do seu Conselheiro de Segurança Nacional, Nixon queria os acordos fechados depois das eleições porque entendia que, nessa altura, seria mais fácil aos EUA imporem as suas condições para a paz. Ademais, Nixon desconfiava de Kissinger. Via nos esforços deste um pretexto para que a sua reeleição dependesse dos feitos de um homem que nem sequer nascera nos EUA. Nixon era daqueles que desconfiava de quase toda a gente porque não confiava em sim mesmo, mas relativamente a Kissinger tinha uma certa razão. O Presidente sabia que o seu conselheiro era demasiado ágil, demasiado rápido, demasiado repentino e demasiado calculista. Com ele todo o cuidado era pouco.

Nixon teve sorte. Kissinger tanto quis apressar a paz que não contou toda a história às partes envolvidas. O falhanço das negociações teve como resultado os bombardeamentos de Natal sobre o Vietname do Norte que visavam, não forçar Hanói a aceitar o acordo, mas garantir a Saigão que os EUA não cediam aos comunistas. A ambiguidade, uma vez mais. E se falhou em Outubro, desta vez acertou. A paz foi alcançada em Janeiro de 1973, nos termos que Kissinger desejava e no tempo que Nixon preferia.

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"Kissinger podia ter terminado os seus dias num campo de concentração juntamente com vários dos seus familiares. Tal não aconteceu porque a mãe era uma mulher determinada e com visão, ao contrário do pai, um homem bom e ingénuo."

O europeu

É difícil explicar quem é Henry Kissinger. A maioria dos grandes estadistas definem-se pelo que fizeram, pelos seus sucessos e fracassos. Kissinger, não. Kissinger define-se pela sua personalidade. Tal pressupõe a sua pessoa, já de si complexa, mas também o período em que nasceu e cresceu.

Henry Kissinger nasceu, faz este sábado (27) 100 anos, no seio de uma família judia, na cidade de Fürth, no estado da Bavaria, na Alemanha. Esta frase revela os perigos e ameaças que o esperavam e que à altura eram desconhecidos. Na verdade, Kissinger podia ter terminado os seus dias num campo de concentração juntamente com vários dos seus familiares. Tal não aconteceu porque a mãe era uma mulher determinada e com visão, ao contrário do pai, um homem bom e ingénuo. Paula Kissinger decidiu sair da Alemanha quando a vizinhança a começou evitar na rua e as crianças judias foram proibidas de usar a piscina municipal. Escreveu a um primo direito que vivia nos EUA e pediu-lhe que recebesse os seus dois filhos. A resposta deste foi imediata: que não fossem só as crianças, mas também ela com o marido. Em 1938, partiram os quatro. Henry, na época ainda conhecido por Heinz, deixou para trás o avô e tio-avô e muitos primos. O primeiro fugiu a tempo para a Suécia, onde morreu; já o segundo proibiu a família de desistir do país que considerava seu até que ele e os seus filhos e netos encontraram a morte nos campos de concentração nazis. Mais de uma dezena de familiares de Henry Kissinger perderam a vida dessa forma. Eram Alemães, a Alemanha era a sua casa e não esperavam que Hitler se aguentasse tanto tempo no poder. Escolheram apaixonadamente e pagaram um preço elevado por isso.

Henry nunca esqueceu o papel que a mãe teve nesse momento da sua vida. Em 1991, no jantar no nonagésimo aniversário de Paula Kissinger, o ex-adolescente alemão, ex-estudante de Harvard, ex-Conselheiro da Segurança Nacional dos Estados Unidos e também ex-secretário de Estado norte-americano (o primeiro nascido em solo estrangeiro) contou que em tempos de adversidade fora ela quem os juntara com a sua coragem, espírito e devoção. Tudo o que alcançara se devera a ela. Segundo o próprio, a América para onde Paula Kissinger levou o marido e os filhos era o lugar onde Henry podia andar no passeio de cabeça erguida. Isso fê-lo amar o país que o recebeu, mas não foi suficiente para o fazer esquecer as lições que a Europa lhe deixou: que a vida é trágica; que nem a paz nem a prosperidade são realidades garantidas à partida; que as guerra são mais comuns que os períodos de paz; que os países lutam entre si porque desconfiam uns dos outros; que a confiança nem sempre surge da boa vontade, mas da necessidade e, se preciso, por via da força.

"Foi a Europa que fez de Kissinger aquilo em que Kissinger se tornou. Metternich garantiu décadas de paz mantendo em vigor um sistema que tinha os dias contados; Bismarck deu o golpe fatal no equilíbrio europeu e preparou o caminho para as duas guerras mundiais do século XX."

Na América, Kissinger encontrou um país que hesitava entre uma ideia idílica de viver afastado dos conflitos do mundo (Washington e Jefferson) e uma visão messiânica de os resolver para todo o sempre (Wilson). No final dos anos 30 do século XX, os isolacionistas impunham as suas perspectivas e Theodore Roosevelt fora até então o único presidente norte-americano a entender as relações internacionais numa perspectiva de equilíbrio de poder.

Enquanto europeu, Kissinger admirava Metternich e Bismarck. O primeiro, pela habilidade demonstrada em evitar crises ou, quando não possível, desviá-las para longe do Império Austríaco. Klemens von Metternich teve um papel crucial no equilíbrio de poder que marcou a Europa no século XIX porque, à semelhança de Kissinger, possuía uma visão ampla das relações internacionais, tinha noção das consequências que uma palavra poderia ter no desenrolar dos acontecimentos. Mas também porque, e novamente tal como Kissinger, tinha perfeita consciência da fragilidade da paz. Se Kissinger assistiu aos horrores do nazismo, Metternich recebeu as notícias do horror descontrolado que se seguiu à Revolução Francesa, vivenciou as invasões napoleónicas e o caos que estas espalharam pela Europa. Como Kissinger, Metternich lutou pela paz. Não uma paz ideal, mas factual. Não uma paz abstracta, mas concreta. Não uma paz como um valor em si mesmo, mas como fruto do pragmatismo de quem trabalha com o que há, de quem exerce o poder externo do Estado na medida do possível e forja um mundo sem guerras, pois governa com moderação e cuidado. Tal como Kissinger, Metternich não se deixou levar pelas emoções do momento, era de uma frieza absoluta, desapaixonada, e o seu grande feito foi garantir décadas de paz na Europa.

Kissinger nutre também grande admiração por Otto von Bismarck. O Chanceler de Ferro foi outro estadista que geriu com mestria o equilíbrio de poder na Europa. No entanto, e ao contrário de Metternich, que fez o que pôde para evitar guerras que enfraqueceriam ainda mais o seu país, Bismarck provocou as que poderiam fortalecer a Prússia. Foi dessa forma que deu origem ao Estado alemão que conhecemos hoje e alterou de vez o equilíbrio que Metternich tanto fez por manter. De Bismarck, Kissinger retirou a frieza de quem joga o que tem a seu favor sem saber o que fazer com o poder acumulado; de Metternich, a moderação dos que têm consciência de que qualquer acto pode ter consequências imprevisíveis e que fogem do nosso controlo.

Nixon Shakes Hands with Kissinger

Nixon era daqueles que desconfiava de quase toda a gente porque não confiava em sim mesmo, mas relativamente a Kissinger tinha uma certa razão.

Bettmann Archive

A arte diplomática de Klemens von Metternich chegou a ser objecto da tese de doutoramento de Kissinger. Intitulada “A World Restored: Metternich, Castlereagh and the Problems of Peace 1812-22”, este trabalho académico deu nas vistas quando foi escrito no início da década de 50 do século XX. A tese era original porque analisava a teoria do equilíbrio de poderes, cujo estudo as armas nucleares tornaram aparentemente desnecessário. Mas a obra também reabilitava duas figuras europeias do século XIX: Castlereagh, o ministro dos Negócios Estrangeiros britânico que forjou o tratado de paz saído do Congresso de Viena em 1815, mas que acabou ostracizado no seu próprio país. Incompreendido, criticado e humilhado, Castlereagh suicidou-se em 1822. Já Metternich era visto como um conservador reaccionário que desejava evitar a propagação das correntes liberais na Europa. A tese de Kissinger era original porque mostrava que o reaccionário era Napoleão, não Castlereagh nem Metternich. Na verdade, foi Napoleão quem não aceitou a ordem legitimada, destruiu modos de vida estáveis, virou o mundo do avesso e não permitiu que uma nova organização política e liberal nascesse da revolução francesa. No entender de Kissinger, Metternich foi um moderado que fez o que estava ao seu alcance para que a paz perdurasse. Enquanto o francês condenou o continente a 12 anos de conflito armado, o austríaco alcançou décadas de paz. Ao invés de Napoleão, que quis reavivar na sua pessoa o poder absoluto do imperador, Metternich afastou os conflitos e ajudou à expansão do liberalismo. A história tem destas ironias.

Foi a Europa que fez de Kissinger aquilo em que Kissinger se tornou. Metternich garantiu décadas de paz mantendo em vigor um sistema que tinha os dias contados; Bismarck deu o golpe fatal no equilíbrio europeu e preparou o caminho para as duas guerras mundiais do século XX. Perante esta fatalidade política, e os horrores que experimentou na primeira pessoa, Kissinger tornou-se num pessimista. Quem espera o pior não se desilude. Nem com os governos nem com as pessoas. Não surpreende que o mundo actual, pejado de optimistas cheios de certezas morais, tenha tanta dificuldade em compreendê-lo.

"Kissinger costuma encarar as Relações Internacionais numa perspectiva de longo prazo. Perante um conflito, o governante devia perguntar-se qual o cenário desejável daí a 10, 15 anos."

A ambiguidade

Kissinger costuma encarar as Relações Internacionais numa perspectiva de longo prazo. Perante um conflito, o governante devia perguntar-se qual o cenário desejável daí a 10, 15 anos. Foi com este objectivo em mente que trabalhou para pôr termo à guerra no Vietname, negociou o fim da guerra do Yom Kippur entre Israel e os Estados Árabes, preparou os Acordos de Helsínquia com os Soviéticos e foi a Pequim pôr em marcha a diplomacia triangular que assustou Moscovo.

A análise a longo prazo que fazia das relações entre os Estados fê-lo negligenciar o impacto que certas negociações tinham no curto prazo e em certos países. Novamente à semelhança de Metternich, que desviava o conflito quando não o podia evitar, Kissinger não se preocupava com os danos colaterais desde que, à distância e numa perspectiva regional ou até mesmo mundial, os ganhos compensassem as perdas. O Bombardeamento de Natal sobre Hanói em 1972, para convencer Saigão das boas intenções de Washington, é um desses exemplos. Mas há outros: no Médio Oriente, o judeu Kissinger entendeu-se melhor com o egipcío Anwar Sadat que com a primeira-ministra israelita, Golda Meir. Esta enfureceu-se várias vezes com Kissinger ao ponto de perguntar porque é que andava tão obstinado com um acordo entre Israel e o Egipto. A resposta era simples, mas difícil de os Israelitas entenderem, pois o principal objectivo do secretário de Estado norte-americano era afastar a URSS do Médio Oriente e tornar os EUA imprescindíveis na região. A paz era importante? Era. Mas, de preferência, com um novo equilíbrio que desse à América a força que esta necessitava noutras negociações com a URSS.

Foi também com esse intuito que Kissinger se deslocou à China. Quando aterrou em Pequim, a 9 de Julho de 1971, os EUA e a China não tinham qualquer contacto directo entre eles. Como o próprio relata em ‘On China’ (Penguin, 2012), entre 1969 e 1970 diplomatas norte-americanos e chineses cruzaram-se em pelo menos 10 ocasiões distintas e em diferentes capitais mundiais, mas nunca se falaram. Até ao dia em que os diplomatas norte-americanos receberam instruções de Washington para contactarem os seus colegas chineses num evento de moda que ia decorrer em Varsóvia. Por desconhecerem a decisão norte-americana, os dois diplomatas chineses saíram do local logo que os norte-americanos entraram. Estes seguiram os chineses que começaram a correr pelas ruas da capital polaca porque não sabiam como deviam agir caso fossem interpelados pelos norte-americanos. A perseguição só terminou quando os norte-americanos gritaram, em polaco, que Nixon queria reunir com Mao. A semente estava lançada e deu frutos.

Há já alguns anos que em certos meios nos EUA se favorecia um entendimento com a China comunista. Kissinger escrevera um ensaio na ‘Foreign Affairs’ nesse sentido e convenceu Nixon, logo em 1969, da necessidade de uma aproximação a Pequim. De acordo com Walter Isaacson, existiam três ângulos diferentes entre os que advogavam um entendimento com a China. O primeiro, predominante entre os liberais,  considerava positivo ter boas relações com qualquer Estado, independentemente da sua ideologia. O segundo, que era o de Nixon, entendia que a aproximação à China servia para pressionar a URSS. Mas o terceiro era o mais interessante e abrangente: considerava encetar conversações com Pequim, não para assustar Moscovo, mas com vista a criar um novo equilíbrio mundial no qual os EUA poderiam falar com a URSS e com a China. Colocar a URSS de sobreaviso seria um resultado secundário. Fazer com que tanto os soviéticos como os chineses se esforçassem por ter uma boa relação com os EUA, esse, sim, seria o objectivo principal. Esta última perspectiva era a defendida por Kissinger e diz muito da sua personalidade e da forma como entende o mundo com um todo, como encara interligadas as relações entre os Estados. A ambiguidade, sempre a ambiguidade. Estava aberto o que veio a ser conhecido por triângulo diplomático.

Conforme o próprio referiu no já mencionado ‘On China’, Kissinger não terá encontrado no decorrer da sua vida pública pessoa mais fascinante e irresistível que Zhou Enlai, o então primeiro-ministro chinês. Atento e observador, Kissinger distinguiu bem as diferenças entre os dois líderes chineses: se Mao dominava qualquer reunião, Zhou enchia-a; enquanto o ímpeto de Mao provocava oposição, a inteligência de Zhou procurava persuadir; onde Mao era sarcástico, Zhou era penetrante; se Mao se via como um filósofo, Zhou encarava-se como um negociador; se Mao queria acelerar a história, Zhou contentava-se em aproveitar as suas correntes. Basicamente, para o norte-americano, Mao era um revolucionário e Zhou um moderado. Em Zhou Enlai, Kissinger terá encontrado o seu Metternich, com a vantagem de o chinês estar vivo e poder conversar com ele.

"Para Portugal, Kissinger não se reduz ao papel que teve no mundo. Para nós, portugueses, Henry Kissinger foi o homem poderoso que não acreditou nas nossas capacidades, na nossa força contra o comunismo."

As conversações com a China abriram as portas ao fim da guerra no Vietname e aos Acordos de Helsínquia. O resultado final foi a política de ‘deténte’ que visava uma estabilização das relações com os soviéticos que permitisse uma certa previsibilidade na política internacional. Previsibilidade que Kissinger considerava essencial para que o Ocidente não repetisse o erro do Vietname. A entrada dos EUA nesse conflito baseara-se na percepção errada de que os soviéticos e os chineses estariam por trás do regime de Hanói. A incapacidade de consecutivas administrações norte-americanas discernirem que dificilmente o Sudoeste Asiático se colocaria nas mãos de Pequim só podia ser explicado pelo medo irracional que resulta da imprevisibilidade. O estabelecimento de uma plataforma comum de entendimento daria tempo aos soviéticos para lidarem com a sua economia estagnada, ao mesmo tempo que permitia aos governos ocidentais não se envolverem em conflitos inúteis numa altura em que as gerações mais jovens questionavam a ordem social do pós-guerra.

Portugal, África, Timor e Ucrânia

Para Portugal, Kissinger não se reduz ao papel que teve no mundo. Para nós, portugueses, Henry Kissinger foi o homem poderoso que não acreditou nas nossas capacidades, na nossa força contra o comunismo. Foi também quem envolveu os EUA em Angola e caiu no erro que lhe foi tão difícil resolver no Vietname. Foi ainda quem fechou os olhos à invasão indonésia de Timor.

Foram erros que, por muito que nos revoltem, para Kissinger não passaram de falhas pontuais sem implicações geoestratégicas de monta. Quando acusou Mário Soares de ingenuidade, o português respondeu-lhe prontamente que estava determinado em não ser um Kerensky. Kissinger não terá acreditado nas capacidades políticas de Soares e enganou-se quanto à vontade férrea dos portugueses de não quererem ser comunistas porque não quis correr riscos para obter um ganho tão pequeno. Já em Angola, não se conteve porque o risco de as riquezas naturais caírem em mãos soviéticas e cubanas era maior que o custo do envolvimento norte-americano.

A sua acção relativamente a Portugal e às ex-colónias é outro retrato da sua visão das relações internacionais. Pessimista, Kissinger temia os cruzados da moral que criavam mais mal que bem. Acima de tudo, receava o caos e a imprevisibilidade que daí advinha. No seu entender, as relações entre os Estados consistem num jogo de equilíbrio de poderes conseguido através de alianças (por vezes imprevisíveis e entre regimes ideologicamente opostos) garantidas pela credibilidade da força militar. Nem sempre acertou. A frieza analítica e puramente racional esquece que as pessoas também são feitas de emoções e que se movem por aquilo em que acreditam. Que têm fé e esperança. O que sucedeu na Ucrânia em 2022 foi outro exemplo disso: de início, os ucranianos foram deixados à sua sorte na expectativa de que o equilíbrio de poder prevalecesse. No entanto, após os primeiros sinais de resistência, as considerações puramente realistas caíram por terra. Ou melhor, ficaram suspensas para surgirem mais tarde. Foi nesse sentido que Kissinger afirmou, em Maio de 2022, que Kiev teria de chegar a um compromisso com Moscovo para que a paz prevalecesse. E foi também dessa forma que, em entrevista ao Wall Street Journal, em Agosto desse mesmo ano, se corrigiu e disse que, após a violência russa, o lugar da Ucrânia era na NATO.

"100 anos após o seu nascimento, na Alemanha da República de Weimar, é legítimo colocarmos Kissinger no mesmo patamar de Metternich."

Kissinger tem consciência das particularidades da Ucrânia, um país constituído por uma colectânea de territórios, uns que foram parte da Rússia, outros da Turquia, e cujo papel geopolítico é o de separar Moscovo de Istambul. Foi este conhecimento da história e da geografia, aliado ao reconhecimento da complexidade e diversidade humana, que o levou a dar prioridade à psicologia sobre as crenças. Como o próprio referiu na mesma entrevista ao WSJ, mais importante que converter ou condenar o interlocutor é conhecê-lo, e isso requer penetrar no seu pensamento.

Kissinger não é apenas um brilhante estratega e astuto conhecedor da história e da natureza humana. Também escreve lindamente e nos seus livros o seu pensamento é límpido e cristalino. Os textos são intensos e informais ao mesmo tempo. Assertivos, lúcidos e provocatórios o quanto baste. Lêem-se de forma escorreita e o que é complicado surge tremendamente lógico e simples. Não há palavras a mais nem alongamentos desnecessários, mas a crueza de um raciocínio linear, discurso e argumentação que nos elucidam como o autor vê o mundo e o interpreta. É a escrita de alguém aberto à descoberta, mas que não se deixa surpreender porque a vida lhe mostrou que é possível pior.

Que um homem nascido na Alemanha tenha conseguido explicar e aplicar a sua visão complexa e desapaixonada do mundo a uma nação optimista e bem-intencionada foi uma obra que os feitos alcançados com as suas políticas concretas só vieram enaltecer. 100 anos após o seu nascimento, na Alemanha da República de Weimar, é legítimo colocarmos Kissinger no mesmo patamar de Metternich. Se o fizermos, há uma dúvida arrepiante que de imediato nos assalta o espírito: quanto tempo vamos esperar para termos outro do nosso lado?

*O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico

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