Nos últimos meses, têm sido vários os episódios públicos que parecem apontar para um “esquecimento” da única filha de José Saramago nas comemorações oficiais do centenário: eventos oficiais em esta que não marca presença e um livro de memórias da sua autoria que ficou de fora das comemorações oficiais — a editora que o publicou, por exemplo, nunca recebeu resposta da curadoria a um pedido para colocar o logotipo do centenário (que se assinala a 16 de novembro) na capa da obra “De memórias nos fazemos”.
A Fundação José Saramago (FJS), presidida por Pilar del Rio, e o comissário escolhido para organizar o centenário garantem, porém, nunca ter recebido tal pedido da editora e afirmam que o papel da família do escritor é encarado como relevante.
A ausência de Violante Saramago Matos em vários eventos de relevo, sobretudo os que estão inseridos nas comemorações oficiais, tem ainda assim sido notada por algumas personalidades e, quando questionada pelo Observador sobre o porquê de não ter estado presente em vários desses momentos este ano, a resposta por escrito da filha do escritor deixa pouca margem para dúvidas “Tenho por regra-base aquele velho ditado português: ‘A bodas e batizados não vás sem ser convidado’.”
Em junho, esteve na inauguração da exposição Oficina de Saramago, na Biblioteca Nacional, mas foi dos poucos eventos — se não o único — em que marcou presença.
Um dos momentos relevantes em ano do centenário e em que foi notada a ausência da filha de Saramago foi quando, em abril deste ano, foi feito o depósito de uma representação simbólica do espólio de José Saramago na Caja de las Letras do Instituto Cervantes, em Madrid. Uma cerimónia presidida por Marcelo Rebelo de Sousa e que, como mostram as imagens publicadas no site da Presidência da República, não contou com a presença de Violante Saramago Matos.
Na resposta enviada por escrito ao Observador, a autora do livro “De memórias nos fazemos” acrescenta, porém — sem nunca falar em casos específicos –, que tem mostrado sempre disponibilidade para estar presente nos eventos para os quais recebe convite: “Como o foco do meu objetivo é a celebração do centenário do meu pai, tenho sido convidada e participado em inúmeras iniciativas da sociedade civil, autarquias, em academias, escolas, festivais literários, entrevistas por todo o país, a que procuro sempre responder.”
Contactado, o comissário para o Centenário de José Saramago, que respondeu também pela Fundação José Saramago, garantiu que “o centenário não é ‘propriedade’ do comissariado nem da Fundação” e frisou que “todas as ações que contribuam para a sua evocação são muito bem-vindas”.
E vai mais longe, diz que já leu parte do recente livro da filha de José Saramago. “Com mais razão, aplica-se este princípio à obra que refere [“De memórias nos fazemos”], obra que a autora (com quem tenho, há anos, uma relação muito cordial) teve a gentileza de me oferecer e que, em parte, já li, com proveito e com agrado”, respondeu, atribuindo à falta de disponibilidade as ausências nas diversas apresentações da obra: “Ao mesmo tempo, e na medida das minhas disponibilidades (limitadas pelas incontáveis solicitações que recebo), tenho acompanhado o bom acolhimento de que o livro em questão tem sido alvo, coisa com que me regozijo.” E termina, dizendo que “a participação de familiares no centenário é muito bem-vinda, como não podia deixar de ser e tem acontecido, em diversos eventos”.
Um livro ‘apagado’ do centenário?
O livro “De memórias nos fazemos” foi lançado em março deste ano e tem como objetivo narrar memórias de um Saramago que “soube ser pai e cidadão ativo, e nunca desistiu de atuar em conformidade com um princípio (oposto ao preconizado pelo Ricardo Reis pessoano): o de que não nos podemos contentar com o espetáculo do mundo”, explica ao Observador o professor universitário Carlos Nogueira, autor de obras como “José Saramago: A literatura e o mal”.
O também diretor científico da Cátedra José Saramago na Universidade de Vigo, Espanha, e na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro vinca ainda a centralidade deste livro, que diz ser “uma oportunidade para refletirmos sobre a escrita universal, o pensamento e a ação de um homem que viveu para os outros, não para glória pessoal, que escreveu para viver, não o contrário”. Nogueira recorda ainda que a sua “grandeza literária única não está desligada da vida de todos os dias, nem de uma ideia de (re)construção constante do mundo, porque, como Saramago dizia, ‘não há nenhum caminho seguro à nossa frente'”.
E, por estas razões, afirma, a obra de Violante Saramago Matos “passará a integrar, de pleno direito, a bibliografia sobre José Saramago”, sublinhando que “a autora está não só em busca do eu-escritor, o homem que escreve, pensa, observa, cria, age, mas também do José Saramago que vai aprendendo a ser pai, do eu da razão, dos sentimentos, dos afetos, da emoção”. E mais, busca-se a si mesma: “Porque ela é, enquanto sujeito que escreve e leitora dos livros de Saramago, parte do ecossistema que é a literatura, essa rede de textos que evocam outros textos”.
Apesar da centralidade do livro “De memórias nos fazemos”, destacada por Carlos Nogueira, a obra não tem na sua capa o logotipo do centenário.
Editora ainda hoje espera uma resposta: “Há alguma estranheza”
Teresa Adão, diretora da Edições Esgotadas, que publicou o livro “De memórias nos fazemos”, começou por esclarecer que a ideia do livro partiu da editora — “para dar um contributo para o centenário” — e o objetivo era que Violante Saramago Matos, “enquanto filha única de José Saramago, partilhasse com o mundo as vivências que só ela teve e conhecimentos de José Saramago, a nível pessoal, que só ela terá”.
“Claro que, sendo publicada por altura do centenário do escritor e havendo pessoas indicadas para que o centenário decorra da melhor maneira, nós contactamos o curador, que é o professor Carlos Reis, para ver se era possível colocarmos o logotipo do centenário, uma vez que se tratava da obra que era”, continuou Teresa Adão ao Observador, acrescentando: “Esperaríamos ter uma resposta [ao email], mas não nos responderam.”
Além disso, “o senhor professor [Carlos Reis] foi convidado a estar presente no lançamento do livro que ocorreu na Faculdade de Letras”. “Parecia-nos que não se tratava de um evento caseiro, mas sim de um evento que dignificaria também o centenário e, portanto, o professor Carlos Reis foi também convidado por email e também não respondeu”, remata Teresa Adão, lembrando que os convites para apresentações não se ficaram por aí — alargaram-se a responsáveis da Fundação José Saramago — e que a editora vê toda esta situação com “estranheza”.
“Vimos isto com alguma estranheza. No entanto, os caminhos fazem-se caminhando e os livros também fazem o seu próprio caminho. E este livro, pela sua unicidade — porque não há mais nenhuma filha, não há ninguém que tenha vivido estas realidades e que conte estes episódios na primeira pessoa como ela — está a fazer o seu caminho e está já na sexta edição. Portanto, o público está a conhecer que o livro tem lugar”, afirma.
Questionada diretamente sobre o porquê de esses contactos para colocar o símbolo do centenário não terem sido reforçados junto da Fundação, a diretora da Edições Esgotadas afirmou: “É sempre com o curador que a editora fala numa situação destas. Há uma curadoria para alguma coisa. A fundação é paralela, eu penso que estão delegadas funções nesse sentido. Não se podia pedir à fundação se podíamos usar logotipo de centenário”.
“Se me incomoda? Não comento”, diz filha de Saramago
Já Violante Saramago Matos lembra, quando questionada, que a ausência do seu livro na exposição Oficina de Saramago, na Biblioteca Nacional, não passa de uma escolha da curadoria: “A construção de uma exposição é um ato subjetivo. Esta foi a escolha dos curadores da exposição.”
Respondendo de forma sucinta à pergunta sobre se a ausência do seu livro nos eventos de celebração, assim como a ausência de responsáveis da fundação e da organização do centenário nas apresentações do seu livro a incomodam: “Se me incomodam? Não comento!”
Carlos Reis afirma, por seu turno, ao Observador nunca ter recebido o pedido para colocação do símbolo do centenário: “Tendo procurado minuciosamente na minha caixa de correio (incluindo spam), não encontro qualquer mensagem da editora, o mesmo acontecendo com o diretor e com o assessor de comunicação da FJS.”
Carlos Reis sublinha envolvimento da família e dá autorização para que se use símbolo a partir daqui
“As pessoas que comigo trabalham sabem que, com maior ou menor prontidão, sempre respondo às mensagens. Em todo o caso, o meu silêncio (involuntário, insisto) poderia ter sido superado por um simples contacto para o meu telefone, cujo número a autora conhece”, continua o responsável, adiantando que nunca fora recusado qualquer pedido.
Mais, diz ao Observador, “em próximas edições da obra, poderá, naturalmente, vir a ser inserido o logo do centenário”.
Na mesma resposta escrita, que é também a posição da Fundação, Carlos Reis sublinha ainda o envolvimento de familiares na Fundação: “Lembro ainda que, não como familiar, mas como conhecedora do meio artístico português, uma neta de Saramago, Ana Saramago Matos, colaboradora da FJS, membro do conselho de curadores e, juntamente comigo, corresponsável pelo centenário na delegação da FJS na Azinhaga, foi coautora, sob minha coordenação, do projeto Mulheres Saramaguianas (parceria com o Centro Português de Serigrafia). É ela também a curadora de uma outra iniciativa do centenário: a exposição “Porquê?” (parceria da FJS com o Museu Nacional de Arte Contemporânea), a inaugurar a 22 de setembro próximo”.