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Com 60 anos de vida, os cachorrinhos do Gazela tornaram-se um dos ícones gastronómicos do Porto
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Com 60 anos de vida, os cachorrinhos do Gazela tornaram-se um dos ícones gastronómicos do Porto

IGOR MARTINS / OBSERVADOR

Com 60 anos de vida, os cachorrinhos do Gazela tornaram-se um dos ícones gastronómicos do Porto

IGOR MARTINS / OBSERVADOR

Cervejaria Gazela: os cachorrinhos mais famosos do Porto fazem 60 anos e continuam “exatamente iguais”

Os cachorros mais famosos do Porto, que apaixonaram Anthony Bourdain, fazem 60 anos e a receita, aparentemente simples, continua intacta. A pandemia adiará a festa, mas não apaga a história do Gazela.

O sino da igreja de Santo Ildefonso marca 11 horas e Américo Pinto chega à porta da Cervejaria Gazela, ali perto, e tira um molho de chaves barulhento do bolso das calças. “Neste porta-chaves tenho a minha vida toda”, diz, sorridente, ao Observador. Abre a porta do negócio do qual é responsável há mais de 30 anos, pronto para mais um dia de trabalho. “Cheguei aqui com 13 anos e nunca mais imaginei a fazer outra coisa.”

Nas paredes do restaurante, ainda vazio, saltam à vista as fotografias com clientes conhecidos, cantores, atores e políticos, recortes de jornais e revistas e imagens a preto e branco que mostram Américo “mais novo e com mais cabelo” atrás do balcão. Natural de Viseu, deixou a escola cedo para começar a trabalhar, como tinha família no Porto foi mesmo na Invicta que ganhou raízes e se aventurou no mundo da restauração.

“Comecei por fazer recados, traziam do armazém num cesto de palha aquilo que era preciso, garrafas, copos e guardanapos. Depois lavava a loiça, tirava finos, fazia de tudo, aliás quem está cá dentro tem que saber fazer tudo. Gostei logo disto e nunca mais pensei fazer outra coisa na vida.

O seu primeiro patrão era de Castelo de Paiva, trabalhava como secretário no Hospital de Santo António e, em 1962, abriu três cervejarias junto à Praça Batalha, todas com o mesmo conceito e batizadas com nomes de animais: Gazela, Impala e Corça. “As outras fecharam, mas o Gazela foi o primeiro restaurante a ser inaugurado e o que deu certo até hoje.”

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Américo Pinto tem 64 anos e está ao leme da cervejaria há mais de três décadas

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No balcão de mármore já se serviam pregos no prato e no pão, francesinhas à moda do Porto e os famosos cachorros, que rapidamente se tornaram a principal imagem de marca da casa. “Naquela altura só existiam os cachorros vendidos nas roulotes, com a salsicha de lata e o queijo dentro de um pão normal, ele fez uma experiência com pão tipo baguete, mais estaladiço, e à salsicha fresca juntou também linguiça. Eram servidos inteiros e regados com um molho picante, as pessoas foram gostando e ficou”, recorda o responsável.

No início dos anos 80, já conhecido da clientela e com olho para o negócio, Américo Pinto tinha intenções de abrir um restaurante na porta ao lado do Gazela exatamente com a mesma oferta, mas o seu patrão não gostou muito da ideia e acabou por lhe dar a gestão da casa. Mudou a imagem, registou a marca, aumentou a zona de fabrico e em 2018 abriu uma segunda casa homónima, a 130 metros da original.

“A minha ideia sempre foi aumentar a casa original, mas o senhorio não deixou, então olhei para o outro lado da rua e decidi alugar aquele espaço. É uma sala maior, além do balcão tem mesas e esplanada, consigo ter mais rotatividade de pessoas e mais oferta na carta porque a cozinha também o permite. Não fazia sentido abrir noutra zona da cidade, os cachorrinhos são na Batalha, temos de tentar ser fiéis às origens das coisas”, defende convicto, apesar de ter em mente outro desejo antigo. “Ter um cantinho no novo Mercado do Bolhão, não sei se vai acontecer, mas gostava muito.”

Pão, salsicha fresca, linguiça, queijo e molho: uma mão cheia de segredos

A receita dos cachorrinhos continua intacta, garante Américo, ainda que com algumas melhorias conseguidas ao longo dos anos. O segredo, diz, está na qualidade dos produtos e do facto de a linha de montagem ser finalizada mesmo à frente do cliente. O processo começa bem cedo na zona de fabrico, onde todos os dias, entre as 7h30 e as 14h, cinco funcionários arregaçam as mangas e preparam o essencial.

O pão estilo baguete vem de duas padarias da cidade e é cortado longitudinalmente para que o processo de construção do cachorro seja mais rápido e eficiente, já as salsichas frescas e as linguiças chegam diretamente da Salsicharia Leandro, no Mercado do Bolhão, são abertas e barradas à mão em cima de uma das fatias do pão, que depois é organizado e guardado em caixas de plástico.

Horas antes de abrir portas, a preparação dos cachorros é feita à mão e a grande velocidade

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Num outro posto corta-se o queijo flamengo em tiras e reserva-o no frio, em frente tratam-se das batatas. Numa máquina são descascadas e, depois de lavadas com água fria, são cortadas aos palitos por uma outra máquina. “Por semana gastamos uma média de 100 quilos de batata e por dia vendemos cerca de 800 cachorros nas duas casas”, adianta o responsável, acrescentando que o molho picante, que foi aperfeiçoado ao longo do tempo, é apenas feito por si e em casa numa panela de pressão. “Antes preparava o molho aqui mesmo, às vezes em frente ao cliente, mas agora são necessárias quantidades maiores e trago-o de casa. A receita é secreta, mas posso dizer que leva uma mistura de aguardentes, vinho maduro, piri-piri, manteiga e óleo.”

As caixas com os cachorros montados partem para cada um dos restaurantes, as fatias sem recheio são colocadas em tabuleiros no forno para tostarem ligeiramente e as outras partem para uma grelha pincelada com manteiga e com uma temperatura de 250 graus. Em cada chapa cabem seis a sete fatias e é necessária alguma força de braços para prensar durante sete minutos.

“A carne de porco tem tendência a criar bolhas, por isso temos de pressionar para ficar tudo com um aspeto mais uniforme”, explica, com a mão na massa. Depois de tostado, as fatias de pão com a salsicha e a linguiça são pinceladas com o molho picante e em seguida são colocadas três generosas fatias de queijo. Quando o queijo estiver derretido, retira-se o pão para um tabuleiro de alumínio para não queimar a outra face e tiram-se do forno as “tampas” de baguete correspondentes. “Depois pincelamos com mais manteiga e prensamos um pouco para alourar e o cachorro ficar mais brilhante, afinal os olhos também comem.”

O tabuleiro de alumínio sai do calor e segue em grande velocidade para uma tábua junto ao balcão, onde o cachorro é cortado aos pedaços em poucos segundos para ser comido à mão, como manda a lei. “Antigamente o cachorro era servido inteiro, mas decidimos cortá-lo assim. Claro que às vezes queimamos ou cortamos os dedos, mas tenho empregados que já fazem isto de olhos fechados, literalmente”, revela o dono.

O truque na confecção está na força de braços, nos tempos na grelha e no forno e nas doses de manteiga e de molho picante

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O resultado final é servido num prato pequeno e, se o cliente assim o desejar, pode ser humedecido com mais uma dose de molho picante. As batatas fritas aos palitos e a cerveja gelada são opcionais, mas quase sempre imprescindíveis. “Tenho clientes que comem cachorros com sopa e um homem já conseguiu comer 14 seguidos, entretanto já morreu, mas não foi pelos cachorros”, brinca Américo Pinto.

Apesar de toda a preparação e experiência, já houve dias em que os cachorros esgotaram no Gazela. “Já faltou o pão, que tem de ser pedido consoante o gasto se não fica seco. É difícil chegarem aqui pessoas de fora do Porto à espera de comer cachorrinhos e jantarem um prego no pão com molho. Claro que não é a mesma coisa, mas é sempre uma desculpa para cá voltarem.”

A concorrência, os prémios internacionais e os clientes especiais

Nas paredes dos dois restaurantes são muitas as fotografias de Américo Pinto ao lado de clientes assíduos e caras conhecidas, mas há uma especial. “Foi este senhor que nos deu um boom extraordinário”, diz, apontando para a imagem de Anthony Bourdain. Em fevereiro de 2016, o chef norte-americano gravou um episódio do programa “Parts Unknown” no Porto e visitou a Cervejaria Gazela, os funcionários da casa lembram-se bem desse dia.

“Um dia estava eu ao balcão à hora do almoço e duas clientes já da casa pediram-me para fazer aqui uma filmagem para um programa internacional, na altura não percebi bem o que era, mas disse que sim. Uma semana depois, ligaram-me e eu já nem me lembrava daquilo, não tinha nada preparado, elas lá insistiram e apareceram no dia marcado. Quando olhei lá para fora vi duas carrinhas da CNN e imensas câmaras, parecia que vinha aí o Presidente da República.

As paredes do Gazela estão forradas de fotografias, mapas, recortes e jornais e revistas e muitas dedicatórias

IGOR MARTINS / OBSERVADOR

Américo Pinto não conhecia Bourdain, nem nunca tinha visto o seu programa, recorda que para gravar dois minutos a equipa teve de mudar todas as luzes do restaurante e o aparato foi tão grande que até atrapalhou o serviço. “Sentaram-se ao balcão, ele comeu dois cachorros e interagiu muito com as pessoas. Eu não falo inglês, mas as meninas lá ajudaram a que eu entendesse tudo e achei-o muito simpático.”

Depois desse dia, o Gazela chegou aos quatro cantos do mundo e passou a ser procurado por muitos turistas, que ainda hoje fazem questão de esperar horas numa fila para um lugar ao balcão. “Ainda hoje chegam aqui pessoas a perguntar como ele era, fazem quase uma peregrinação aos sítios onde ele passou cá no Porto. Quando ele morreu, ficámos todos espantados.”

O responsável acredita que foi também à boleia da visibilidade dada por Anthony Bourdain que em 2019 o Gazela ficou no top 5 das “especialidades da casa”, distinção atribuída pelos prémios mundiais de gastronomia “The World Restaurant Awards“, que incluía também iguarias de Itália, Índia, China ou Japão. O cartaz com o prémio está colado na montra do restaurante original e o dono exibi-o com orgulho. “Os prémios são a confirmação de que estamos a fazer um bom trabalho, mas o método tem de continuar o mesmo.”

Apesar das mesas no interior e na esplanada, é no balcão que os clientes fiéis da casa são mais felizes

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O sucesso do negócio sexagenário fez com que nos últimos anos abrissem na cidade casas semelhantes, nada que apoquente o responsável. “A concorrência não faz mal a ninguém, até é saudável, não podem é utilizar o nosso nome. Sabemos que temos um produto diferente, que o pão, o molho e a forma de fazer são mesmo originais.” Outro dos ingredientes que pode explicar o fenómeno do Gazela é o ambiente que se vive ao balcão, onde os 20 funcionários, maioritariamente homens, “se tornam quase família” pela proximidade que existe “à moda do Porto”.

Os festejos da data redonda de aniversário vão ser adiados devido à pandemia. “Foi um período muito difícil, não despedi ninguém, mas lutei muito porque não sabia bem o que ia acontecer. Nunca tinha feito take away, por exemplo, foi uma aprendizagem, mas nada se compara à experiência do balcão. Quando a pandemia passar, espero que seja este ano, faremos uma festa de arromba”, promete o proprietário, que todas as semanas come quatro a cinco cachorros, sem nunca enjoar, e no futuro gostava de manter o negócio na sua família.

“Não gosto de estar parado, já não sei estar casa sem fazer nada. Claro que por vezes me sinto cansado, mas isto dá-me vida, gosto de comunicar com as pessoas, gosto de pôr as mãos na massa e uma coisa é certa, o produto tem de passar sempre pela minha mão.”

Travessa do Cimo de Vila, 4 ou Rua de Entreparedes, 10 (Porto). Tel.: 22 112 4981. Segunda-feira a sábado, das 12h às 22h30

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