Foram dias de emoções fortes e variadas, talvez com algum descanso pelo meio — suspeitamos, entre a terra e as abelhas. A 26 de janeiro, André Cruz apresentava à imprensa a sua Semente, o menu de estreia aos comandos da cozinha do Feitoria. E na segunda-feira seguinte, 30 do mesmo mês, subiria ao palco da gala dos Prémios Mesa Marcada para ser distinguido como chef revelação. Antes disto tudo, concedeu ao Observador uma entrevista que resultou numa longa conversa, com o propósito de ficarmos a saber mais sobre a figura que, em abril, veio ocupar o lugar topo (antes, do chef João Rodrigues, de quem era braço direito, na posição de sub-chefe), no projeto gastronómico do Altis Belém e detentor de uma estrela Michelin.
Uma breve apresentação. André Cruz, 34 anos (quase 35), nascido em Lisboa, criado em Almada, formado pela Escola de Hotelaria e Turismo do Estoril. Apaixonado por abelhas, alérgico às mesmas, aficionado pelos produtos que recolhe na horta e que, não raras vezes, utiliza na cozinha do Feitoria. A carreira começa na Bica do Sapato, segue para o VirGula, cresce no Feitoria, com um interregno que o leva até à América do Sul. De sorriso rasgado, é descontraído, de trato fácil. São estas mesmas características que agora, na medida certa e em alguns aspetos, quer ver aplicadas no reputado fine dining que passou a comandar.
Quer trazer momentos da cozinha para a sala, espaço do qual não quer estar alienado — facto que pudemos observar naquela noite, já à mesa, enquanto provávamos o Semente. O menu de degustação de sete momentos (também existe de nove) junta, em quase todas as etapas, a terra e o mar, mantendo como elementos transversais o equilíbrio entre a proteína animal e vegetal, a utilização de matérias-primas sazonais e o trabalho com os pequenos produtores. A título de exemplo, o taco de choco com cebola avinagrada de Setúbal, a beterraba e ouriço-do-mar ou a gamba do dia com arroz de cogumelos. “Os espargos trouxe lá do Pinhal Novo”, diz, no momento em que chega a presa de porco preto. É uma referência recorrente. É desta propriedade do sogro da vila de Palmela que nasce a criatividade necessária para fazer frente ao furacão das tendências, que surge na forma de um scroll na “implacável ferramenta” que é o Instagram.
Há muitos outros aspetos dignos de serem revelados, mas deixamos isso para a conversa abaixo.
Quando e como é que percebeu que é alérgico a abelhas?
Foi no dia em que fui conhecer aquele mundo incrível, há seis anos. Nesta altura, era uma atividade que nem me atraía assim tanto. Fui mexer nas abelhas porque apareceram enxames e o meu sogro estava atrapalhado e precisava de ajuda. Fui picado por mais do que uma abelha, porque tinha um rasgãozinho no fato. Comecei a sentir-me um bocadinho diferente: o batimento cardíaco acelerou, fiquei com uma sensação de calor. Sentei-me um pouco, o meu sogro olhou para mim e perguntou-me se estava a sentir-me bem. “Mais ou menos”, respondi. “Acho que sim”. Comecei a sentir aquilo a intensificar-se. Passado um bocadinho, ele voltou e disse: “Epá, tu não estás nada bem.” Estava completamente inchado, já não ouvia bem, estava apático. Fomos a correr para a farmácia e tive de tomar logo um antistaminico e até hoje ando sempre com ele. Antes de ser picado, estava a ser muito entusiasmante. Aquele mundo começou a interessar-me naquele momento.
E decidiu continuar a fazer apicultura mesmo sabendo que é alérgico.
Sim. Ainda há uns dias fiz desdobramentos.
É o seu grande hobby, juntamente com o trabalho na horta, não é?
Sim, gosto muito, são dois trabalhos de campo. A terra, a agricultura e os animais foram coisas que cresceram comigo. Tive a sorte de ter lá em cima, na Guarda, em Figueira de Castelo Rodrigo, o terreno dos meus avós. Passei lá uma grande parte da minha infância — quando tive uma mononucleose, por exemplo, o médico pediu à minha mãe para me enviar para um sítio com ar puro e limpo e passei lá muito tempo. Tirava leite da vaca. Até tinha uma tacinha no palheiro, que era só minha. Quando o meu avó tirava o leite, era por lá que eu o bebia, ainda quente. São experiências que só vive quem tem a sorte de ter essa oportunidade.
Estas vivências no campo ecoam no seu trabalho.
Sim. Sempre tivemos terrenos lá em cima onde o meu pai, por exemplo, faz o azeite, com olival tradicional, oliveiras super antigas, que é o que consumimos em casa. Temos também um amendoal. Tenho também a sorte de a minha mulher ter um espaço no Pinhal Novo. É pequeno, mas a nossa ida é mais consistente. Vamos todos os fins de semana, almoçamos, fazemos a nossa agricultura e a apicultura. É muito giro. É um contacto com a natureza muito recorrente e consistente e acaba por ajudar muito aqui no restaurante, na parte criativa. Vamos percebendo, com estes inputs naturais, o que é que está a aparecer: os primeiros damascos, os primeiros saramagos (uma erva selvagem e espontânea que vai crescendo), que, depois, usamos aqui no Feitoria. Agora, estão a aparecer os primeiros espargos selvagens — fui apanhá-los para o menu de hoje. Também tenho lá imensos maracujás que temos usado.
Imagino que poder trabalhar com aquilo que cultiva traga uma camada extra de entusiasmo ao trabalho.
Principalmente na componente criativa. A inspiração nasce naturalmente, porque vamos olhando e vendo o que é que a terra está a dar. É diferente ir a uma mercearia e comprar um tomate espetacular ou dizermos este tomate foi produzido por nós e perceber, realmente, o tempo dele, o valor dele.
Há uma ligação emocional maior.
Claro.
Falava-me de criatividade. Temos aqui esta fonte de inspiração, que é trabalhar com terra, mas, do outro lado, vivem-se tempos de muito: muitos conceitos, muitas bandeiras, muitas pessoas, muitos restaurantes, muitos prémios. Como é navegar neste tornado, sobretudo nesta nova posição?
Acho que a criatividade não acaba. É infinita. Mas isto é um sentimento meu. Vivemos com o Instagram, uma ferramenta implacável, e depois acabamos por ficar conotados como alguém que copiou. Está tudo ali e, às vezes, inconscientemente, podemos pegar numa coisa que vimos e aplicá-la. Isso é natural. Quando vejo isso a acontecer não acho mal, desde que as pessoas deem o cunho delas. A primeira prática criativa é a cópia, em que depois damos o nosso cunho. Acho que o truque, o que torna realmente as coisas especiais e diferenciadoras, é sermos genuínos. Enquanto assim formos e fizermos aquilo de que gostamos, é difícil a criatividade acabar. E isto também significa que não posso deixar de fazer algo de que gosto, de usar um pregado assado no forno, porque o restaurante aqui ao lado o faz ou usa. Mas vou fazê-lo à minha maneira. A coisa tem de passar por ai. Vivemos numa fase em que há sempre tanta coisa a aparecer e depois quase que temos uma pessoa que adota um produto, adota uma técnica, o que acaba por ser muito limitador.
Sente a imposição do “é isto que agora está a ser feito”, do “esta é que é a tendência”?
É uma pressão, sim. Acontece comigo também. Por isso, tenho muito o hábito de me afastar daquilo que está toda a gente a fazer. Faço exatamente o contrário.
É o seu mecanismo de defesa?
É um mecanismo de defesa natural.
É uma área competitiva.
É.
Onde é que isso se sente?
Começando pela criatividade, é super competitiva. A pressão de que sejam feitas coisas diferentes, impactantes. É muito competitivo.
Vem ocupar um restaurante com uma estrela Michelin, o galardão que é, provavelmente, o maior potenciador de ansiedade entre os chefs. Como é que sente este desafio? É algo que pesa ou encara com leveza?
Aceitei o desafio porque queria muito estar aqui, queria muito viver este mundo. Quando me propuseram este projeto, aceitei porque era exatamente a linha e o caminho que queria seguir.
Especulou-se sobre uma segunda estrela para o Feitoria. É um objetivo?
Ganhar a segunda estrela não está nas minhas mãos. O que está nas minhas mãos é fazermos por isso. E vamos fazendo sempre. Não faz sentido olhar para a primeira estrela, porque já a tenho. Faz, sim, olhar para a segunda, de forma a ganhar consistência na primeira.
Quer a segunda?
Quem é que não quer?
Já houve quem tivesse devolvido a estrela [chef Henrique Leis].
Acho que quem não tem uma estrela quer ter a primeira, quem tem uma, quer duas. E isto faz parte. Isto é do ser humano: quando atingimos isto, queremos aquilo. Mas, respondendo à questão anterior, não vivemos absorvidos com isto. Vivo com leveza.
Conhecemos a sua história a partir da Bica do Sapato. Um resumo da sua vida até esse momento.
É um bocadinho cliché [risos]. Comecei, muito miúdo, a fazer bolos em casa. A minha mãe conta isto em tom de brincadeira: eu com três ou quatro anos fiz um chá. Hoje olho para o meu filho e penso como é que ele seria capaz de fazer um chá. Comecei assim. Não tem nada que ver com gastronomia, mas é, talvez, uma pista do início do espírito de querer fazer coisas. Depois, muito cedo, comecei a fazer bolos em casa. Pegava num livro de receitas da minha mãe e, com ela, fazíamos experiências. Este gosto foi-se desenvolvendo. Era uma coisa muito pequenina, mas já se falava em chefs. Por isso, fui para a Escola de Hotelaria [e Turismo do Estoril]. Na altura tínhamos de fazer um teste de admissão, que tinha um questionário com perguntas sobre cozinha — acho que hoje isto já nem se faz. Estava muito nervoso, a pensar se entrava ou não. Entrei, fiz lá o curso e começaram os estágios.
Pensou seguir o caminho da pastelaria, não foi?
Sim, quando fui para a escola, gostava muito de pastelaria, mas depois mudei completamente de ideias. Gosto muito de ser imprevisível, de mudar as regras, e a pastelaria é muito rígida, com muito método. Na cozinha dá para improvisar.
Foi na Bica do Sapato que percebeu que queria mesmo estar na cozinha?
A Bica do Sapato — a par do Ritz, talvez — era o sítio onde toda a gente queria trabalhar. Na altura, o Fausto [Airoldi] tinha saído da Bica e tinha entrado o Paulo Pinto. O restaurante tinha produtos incríveis, muitos produtos internacionais, o que antes não era assim tão comum. Hoje já é diferente. Pude trabalhar vieiras, com trufas. Era uma coisa difícil, nem todos os restaurantes tinham acesso. E nós, cozinheiros, se queríamos conhecer outras coisas, tínhamos de ir para sítios onde elas estivessem —juntando ao know how dos chefs, com mundo.
Foram os produtos ou a dinâmica da cozinha que o fizeram optar por esse meio?
Antes de valorizar o produto, e vou ser sincero, senti-me muito atraído por toda a organização da cozinha. Como funcionava, a hierarquia, o método, a mise en scene. Gostava muito e ainda gosto. É algo totalmente diferente daquilo que idealizamos na escola de hotelaria — por isso é que há muitas pessoas que desistem. Na altura também não existiam tantos programas de cozinha. E, depois de percebermos toda essa parte, quereremos perceber outras. E é aí que o produto vai mexendo comigo.
Como é que a idealizava antes a cozinha? Mais calma ou mais agitada?
Nem me lembro bem. Sei que imaginava algo agitado, mas não imaginava algo tão duro. Há 17 anos, quando comecei, a realidade era completamente diferente. O método profissional das cozinhas em Portugal mudou muito. Hoje é difícil ver um chef a mandar tachos e a berrar — ainda deve haver, mais é mais difícil. E essa realidade, essa dinâmica, existia e era natural na cozinha. Mas a cozinha é dura, é cansativa, é intensa. Isto é algo que só percebemos quando começamos. Sobretudo, ao inicio é duro.Temos de lavar chão, lavar frigoríficos. Depois há as partes de que todos gostamos, que é cozinhar, servir, empratar.
Começou por onde?
Na Bica comecei pela pastelaria com o chef Paulo Fernandes. E depois fui pela cozinha adentro. Rodávamos muito. Depois fui trabalhar com o Bertílio Gomes, que ainda tinha o antigo VírGula. Ainda na semana passada estive a falar com ele: “Chef, naquela altura estávamos quase a ganhar a estrela.” Aqui, passei pelas entradas, passei muito pouco tempo pelo peixe e estive muito tempo nas carnes. Foi ali que ganhei um grande traquejo. Já era responsável por uma secção. Tudo o que acontecesse ali era da minha responsabilidade — a responsabilidade é uma das grandes ferramentas do profissional. Depois vim para o Feitoria, na altura tínhamos o chef [José] Cordeiro como executivo, o João Rodrigues e o João Simões, como sub-chefes. Éramos só cinco ou seis elementos. Comecei como ajudante, cozinheiro de terceira e fui subido. Mas já foi outro patamar que subi, porque a realidade deste restaurante era diferente.
Em que sentido?
Já se falava abertamente que o Feitoria era para ter uma estrela. Ou seja, não se pensava em ter uma estrela, era mesmo para ter. É como uma equipa de futebol que diz que vai ser campeã nacional e luta para isso. A filosofia era essa. E aqui, de facto, sempre se trabalhou com muito bom produto, muito bom material. E depois fui crescendo em toda esta organização.
Depois saiu para a América do Sul. Passou por duas grandes cozinhas: pelo Gustu, de Kamilla Seider, na Bolívia, e pelo Boragó, de Rodolfo Guzmán [considerado o melhor restaurante do Chile no The World’s 50 Best Restaurants].
O Boragó já foi programado aqui. Para o Gustu, eu e o Ruben [Trindade] — que está na Casa do Gadanha, em Estremoz, e que fez esta viagem comigo — fomos lá bater à porta para saber se era possível trabalhar.
O que é que trouxe de lá?
Aquilo que se costuma dizer de ir para fora para ganhar mundo é 100% verdade. A nossa cabeça abre. Trazemos muitas ideias, muita inspiração. Conhecemos novas realidades, novas pessoas. A realidade da Bolívia é brutal. É um país sub-desenvolvido. No Gusto faziam uma formação muito intensiva, porque o povo não tem muitas bases de método de vida, higiene, por aí fora. Davam toda essa formação no restaurante. Vivemos este choque de realidade muito grande. E depois, em termos de produto, também aprendemos muito. A Bolívia tem, por exemplo, 3500 espécies de batata. E toda a gastronomia anda à volta deste produto. Foi lá que nasceu o primeiro produto liofilizado do mundo [processo de conservação de produto, a partir da desidratação], feito a partir de um método artesanal, do tempo dos Incas. Quando assistimos a isto tudo, a nossa cabeça não para de pensar — começamos a recriar aquilo que aprendemos na nossa realidade e é ali que começa o processo criativo de uma pessoa que está a caminhar e a aprender noutro país. A tal criatividade cópia em que depois fazemos à nossa maneira.
Houve alguma aprendizagem que se tenha depois refletido no trabalho cá, já de volta a Portugal?
Quando estivemos no Chile, aprofundei o meu gosto pelo campo e, uma coisa que nos incutem muito lá, é o fazer algo que faça sentido. Depois, aprofundei o olhar sobre o campo. Uma vez por semana, tínhamos de estar no restaurante às nove horas da manhã para cinco de nós irmos recoletar. Trazíamos imensa coisa do campo e depois íamos dar serviço durante a noite. Além disso, tudo aquilo que ele [chef Guzmán] fazia tinha de ter um fio condutor, uma história. Foi algo que bebi lá, foi uma semente que me foi colocada lá.
Era bom começar o serviço no campo?
É brutal e mexe mesmo connosco. Nós tínhamos lá uma oxalis carnuda que só existe no Chile, que é uma espécie de trevo carnudo. Uma coisa é usar aquilo sem saber como é que es apanha ou nasce, outra é ter sido eu apanhá-lo, a perceber a sua envolvência. Quando estiver a usá-lo, vou fazê-lo com outro gosto. Ensina-nos a olhar para a natureza de outra forma e a não querer dela aquilo que não é suposto ela ter. Por isso, aqui no Feitoria, cada vez de forma mais intensa, é por esse caminho que vamos seguir. Usar tomate em pleno inverno é algo que não faz sentido. Mas estas recoleções também eram duras. Temos de ter muita vontade para o fazer, porque começávamos a trabalhar às nove horas e só acabávamos às duas da manhã. São doze horas. Estes cinco elementos vinham do campo, organizavam toda o que se tinha recolhido — La Recoleccion — e começavam o serviço.
E em termos humanos, houve alguma história mais marcante?
Havia um rapaz no restaurante da Bolívia que era espetacular, mas que não sabia fazer nada — é normal e está tudo bem, ninguém nasce a saber. Neste caso, tinha poucas bases de cozinha. No Gusto quem lavava a loiça eram os cozinheiros — era a tal formação que encutiam: se sujas, lavas e arrumas. Ele acabava por lavar a loiça da malta, porque se refugiava ali na copa. Nós começámos a puxar por ele, a chamá-lo, começámos a dar-nos muito bem com ele. Sentiu-se seguro e ficou muito contente com o nosso dia a dia. No fim, disse que nos queria oferecer uma espécie de cozido, tipicamente boliviano, feito pela mãe dele. Ele vivia numa das favelas de La Paz — quando lá chegámos assustámo-nos um bocadinho, mas depois ficou tudo bem. Ficava a quase quatro mil metros de altitude. A mãe dele levantava-se muito cedo para trabalhar e, mesmo assim, fez quatro pratos tradicionais bolivianos para nós. Mas a vida era muito diferente. Olhávamos para aquela casa e pensávamos na sorte que temos.
Como é que era?
Viviam muito no chão. O quarto dos pais era uma cama no chão, onde dormiam ainda dois irmãos mais pequenos. Os dois mais velhos dormiam num sítio meio na rua, meio no interior, também com o colchão no chão. A casa de banho tinha condições inacreditáveis. Mas, passado o choque, passámos momentos brutais. Fomos muito bem recebidos, comemos muito bem, comida tradicional espetacular, muito boa, com produtos incríveis — as tais batatas tradicionais, liofilizadas, que depois são demolhadas e cozidas, ficam assim muito glutinosas. Fez mais algumas coisas. Comprámos uma cerveja para cada um — uma cerveja a quatro mil metros de altitude mexe muito connosco. E passámos ali um dia muito bom. Depois do almoço, ele quis ir mostrar-nos a favela. Estávamos a descer e passámos pelas cholitas, vestidas com os trajes típicos. Uma delas estava a celebrar o casamento. Passámos pelo casamento — só entra na cerimónia alguém que é convidado. O nosso amigo conhecia uma das pessoas que lá estava, cumprimentou-o, apresentou os “amigos portugueses”. Nós estávamos cheios de energia positiva, passámos a viagem assim. Acabámos por assistir à cerimónia, participámos na festa do casamento. Eles passavam os copos uns pelos os outros. Vivemos ali o casamento deles e foi uma experiência mesmo típica que vivemos nesta viagem. Foi muito giro. Tudo proporcionado por uma pessoa quase sem meios. Hoje ele é chef de cozinha de um restaurante na Bolívia. Fico muito contente quando o vejo no Instagram.
Nesta aventura pela América do Sul, a Bolívia foi o país que mais o marcou?
Nota-se, não é? Quero muito voltar à Bolívia.
Nestes sete meses, qual foi a melhor coisa que provou e em que país?
Foi no Peru. Estávamos cheios de fome, numa estação à espera da camioneta — fizemos todas estas viagens de camioneta, passámos 32 horas de autocarro até à Patagónia — e estava lá uma senhora sentada num banco de plástico a fazer uns antichuchos (espetadas de coração de vaca, com massa de pimentão e uma batata na ponta), num grelhador super pequenino. Custava cinquenta cêntimos. Foi provavelmente das coisas mais especiais que comi lá. Comemos uns quatro cada um. Na Amazónia boliviana não me esqueço também de uma banana que comi. Era de um miúdo que estava a vender um cacho enorme. Não conseguíamos levar o cacho inteiro, mas comprámos umas quantas. A banana estava completamente verde, portanto o plano era deixar aquilo amadurecer. Mas durante a viagem, no próprio dia, uma ou duas horas depois, deu-nos a fome. Abrimos a banana e era incrível. Era cremosa, deliciosa. Nunca mais me esqueci.
Agora sobre um passado mais recente: como foram os bastidores do dia em que soube que ia assumir a posição de chef do Feitoria?
Foi uma coisa muito rápida. O João [Rodrigues] deixou a posição de chef do Feitoria. Nessa semana, eu também estava em vias de sair.
Ia sair?
Sim. Já tinha sido falado com os nossos diretores. Quando foi anunciada a saída oficial e efetiva do João, a direção entrou em contacto comigo para ficar com este lugar. Eu respondi que sim, que queria ficar com a posição. Estava e estou num sítio bom e de que gosto. Via-me, realmente, a fazer um bom trabalho. Foi por isso que aceitei ficar.
Se isto não tivesse acontecido, onde estaria hoje André Cruz?
Não posso dizer.
No seu primeiro dia oficial, enquanto chef, entrou um novo menu, o Semente. Quanto tempo é que teve para idealizar e montar a nova experiência?
Foi tudo muito rápido. Uma das coisas que disse foi que no meu dia de entrada o menu tinha de ser todo novo. Não estava feito, não estava pensado. Tive uma semana para planear. Claro que desde o primeiro dia já mudaram várias coisas.
Não fazia sentido começar com o menu assinado por outra pessoa.
Claro. Por respeito ao João, primeiro, e depois porque não fazia parte de mim fazê-lo. São pratos de assinatura dele. Portanto, retirámos tudo. Loiças e tal é mais difícil, até porque não posso derreter as que estão e fazer outras. Esse está a ser um processo gradual.
O que mudou mais desde a sua entrada?
O serviço de sala mudou muito. Tentámos aligeirá-lo. O serviço do Feitoria era exímio, era muito técnico. Mas, na minha opinião, era um bocadinho… como é que eu hei de dizer?
Formal?
Exatamente. Tentámos aligeirar um bocadinho.
Um dos passos para ir criando um espaço à sua medida, certo?
Sim. [o serviço] Tinha de fazer sentido. O primeiro passo passou por substituir a equipa. Fomos à procura de uma pessoa com um perfil completamente diferente do que tínhamos. Encontrámos o Pedro Ramos, o nosso sommelier, que nos ajudou a trazer pessoas com o perfil de que andávamos à procura. Encontrámos o Ricardo [Silva], o nosso chef de sala. A partir daí, começámos a trabalhar com pessoas novas, que são sempre mais fáceis de moldar. Tentámos fazer um caminho diferente, pensamos muito em conjunto, trabalhamos muito em equipa. Outro aspeto que tentámos mudar, que para mim é importante, foi diminuir o fosso entre a cozinha e a sala. Esta separação foi também algo que eu tentei quebrar. Não penso nestas duas equipas de forma separada — penso como um todo. Quando se trata de intervir em áreas que não se domina, há duas possibilidades: ou se faz como o rapaz da Bolívia, que se refugia; ou se assume e vai para a frente. E foi isso que eu fiz. Não conseguimos mudar a sala do Feitoria, ou seja, uma pessoa que vem cá hoje vai encontrar o espaço que existe desde, praticamente, 2011, mas vai encontrar dinâmicas novas.
Como é que se quebra o fosso entre a sala e a cozinha?
Uma das coisas em que temos apostado, por exemplo, é em trazer momentos da cozinha cá para fora. No menu, temos cerca de três ou quatro momentos que acontecem na sala, com os cozinheiros a virem aqui falar com os clientes. A intensidade é completamente diferente. Isto também foi algo que trouxe do Boragó, em que os cozinheiros faziam o menu todo na sala. A intensidade é completamente diferente.
Intensidade em que sentido?
No sentido de que quem faz explica de uma maneira completamente diferente face a quem recebe uma mensagem. O cozinheiro explica com intensidade, se surge uma pergunta, responde com conhecimento de causa. É especial. No fundo, tudo pesado, acaba por fazer diferença. Tenho sorte com a equipa que tenho. Eles ajudaram muito nesta fase. E depois, claro, com a equipa de sala que montámos e estruturámos.
Há mais coisas que queira — ou possa — mudar?
Sim. Sinto que o Feitoria pode crescer um pouco, em termos de sala e cozinha, mas que depende de uma intervenção mais estrutural no espaço.
Estamos a falar de mudanças em termos físicos?
Sim. Quero colocar mais lugares no Feitoria, mas, para isso, a operação tem de acompanhar o crescimento. Esta barreira de sala e cozinha que estamos a tentar quebrar podia ser quebrada mesmo fisicamente. Ou seja, gostava de ter uma cozinha aberta, em que eu posso participar de forma homogénea nos dois universos, da cozinha e da sala. Era algo de que gostava muito, mas envolve muitos aspetos e é preciso tempo. Mas é uma coisa que vejo como um grande passo para o crescimento do Feitoria e uma forma de romper um bocadinho com o passado.
Imagino que para um chef que se estreia nesta posição seja bom criar um projeto à sua medida.
É bom e vai ao encontro do que falávamos ao início. É tornar a coisa especial. A criatividade é genuína, não se limita e torna-se mais fácil. E deixa-nos viver o negócio como se fosse nosso. É isto que nos faz desenvolver coisas verdadeiramente especiais.
Vai acontecendo passo a passo.
Jogo a jogo, como dizia o meu treinador.
Como é dar este salto de sub-chef para chef, mesmo em termos práticos, no trabalho no dia a dia?
A primeira grande coisa que muda é que sou eu — o foco está em mim, a tal pressão que vive e existe dentro dos chefs. Alguma coisa que corra mal, a partir de agora, é logo associada a mim. É inevitável. Depois, é toda uma operação coordenada por ti.
Como se costuma dizer, um maestro?
Não é tanto como o maestro, porque o maestro diz às pessoas como fazem. É mais como treinador de futebol: mete as pessoas certas nos lugares certos e dá-lhes espaço para chutarem à baliza se quiserem. Eu vejo a coisa assim. E, depois, criar uma simbiose entre toda a operação, que envolve 33 ou 34 pessoas só na cozinha e pastelaria. É muita gente. Temos de ser coerentes, estar coordenados e interligados. A posição também implica saber saber motivar: dar espaço às pessoas, porque limitá-las é um erro, com todas as partes menos boas que daí podem surgir.
Fez muitas referências ao futebol. Costuma jogar?
Joguei [risos]. Não era grande jogador — caso contrário, estávamos a fazer uma entrevista no balneário. Joguei alguns anos no Cova da Piedade, em Almada, onde comecei com sete anos e fiquei até aos 12. Até aos 14 joguei no Almada.
Está explicado.
Neste trabalho, dou por mim a pensar na organização como se de uma equipa de futebol de tratasse. A cozinha é quase como o balneário: há hierarquias, há o capitão, o treinador — depois, há o presidente, que quando vem é mais tramado [risos]. E um bom treinador não limita. Guia-nos, mas nunca nos diz “não atires à baliza”. E é assim que tem de ser. Nós trabalhamos com pessoas, não com máquinas.
Já semeou este menu há quase cerca de oito meses. Disse-me que já mudaram muitas coisas.
Já mudámos tanto desde aquele primeiro dia. Hoje vamos mudar outra vez o menu, ontem também já fizemos umas mudanças. Estas mudanças às vezes são um bocadinho tramadas, mas nós vivêmo-las de forma natural. Não mudamos o menu, todo. Vamos mudando pratos, elementos e produtos.
Isto tem que ver também com o aproveitamento da micro-estação, com os produtos que vai encontrando e que, para serem utilizados, precisam de um menu mais dinâmico e flexível?
Sim, sim. Para mim, é assim que faz sentido. Os pratos estão sempre a mudar. É uma coisa muito dinâmica. Foi outra coisa que bebi do Chile. Chegávamos a ter um prato duas semanas e mudávamos. Há culturas muito curtas e produtos em pouca quantidade. Mudávamos pratos a toda a hora. Foi algo muito importante para mim. Por isso, aqui vivemos a coisa de forma mais natural. Mudar um menu inteiro é um choque brutal para a cozinha, para a equipa de sala. E depois, ao invés de correr só uma coisa mal, correm todas. Assim, o risco é menor. Também não me faz sentido tirar um prato que está em plena temporada só porque está há um mês no menu.
Que projeto é que gostava de realizar e que ainda não realizou?
Gostava muito ter um sítio onde tivesse terreno, campo, com uma cozinha e um restaurante. Acho que é o que todos os cozinheiros, ou a maior parte, gostavam de ter. Mas agora estou muito feliz aqui.