É chefe do serviço de medicina intensiva do Hospital de São João, no Porto, desde 2005, lidera o Programa Nacional de Prevenção e Controlo de Infeções e das Resistências aos Antimicrobianos (que funciona na estrutura da DGS) e, em março, foi o autor do parecer que recomendou o uso de máscaras em Portugal, numa altura em que a DGS mantinha que poderiam criar uma falsa sensação de segurança e tinham pouca eficácia.
O serviço que José Artur Paiva dirige tinha 62 camas, mas chegou a receber 99 internados. Ainda assim, garante que a taxa de letalidade pela doença em Portugal foi baixa e a resposta “excecional”. “Foi perfeito? Evidentemente que não.” O médico preferia que o desconfinamento tivesse acontecido apenas quando as taxas de transmissão fossem mais baixas e que a resposta social se tornasse mais robusta.
Agora, as maiores preocupações estão centradas no inverno. A preparação já começou e no Hospital de São João são esperadas algumas mudanças para o fim de outubro. O espaço dedicado ao serviço de urgência vai aumentar e os circuitos serão redefinidos. A medicina intensiva vai ter mais camas para internamentos, mais quartos individuais de pressão negativa e mais recursos humanos. Ao contrário do que aconteceu durante o confinamento, o novo plano de contingência não prevê encerrar atividades clínicas e “tem o princípio base de criar a máxima resposta para Covid e não Covid”.
O objetivo principal é enfrentar da melhor forma uma eventual segunda vaga, que José Artur Paiva admite ser uma possibilidade real, embora não se saiba como o novo coronavírus e a gripe coabitam. Deixa claro que todos os grupos de risco devem ser vacinados para a gripe, sobretudo tendo em conta que o exemplo da Austrália mostra que ter Covid-19 depois de ter uma gripe pode levar a um quadro clínico mais grave do que sem uma gripe prévia. E defende também uma outra ideia: seria importante o Estado português comprar e distribuir testes rápidos, que já existem, não só para a Covid-19, mas também para a gripe e outros agentes. A explicação é simples: com um diagnóstico rigoroso que distinga rapidamente doenças diferentes com sintomas semelhantes é “um passo significativo” para, em pouco tempo, definir o circuito mais correto para o tratamento do doente.
O médico portuense acredita ainda que todos os doentes crónicos ou com patologias agudas devem ter um plano de saúde avançado para este inverno, fala sobre a proibição espanhola de fumar na rua, na falta de investimento dos últimos 10 anos no SNS e do legado positivo que a pandemia pode deixar. Vê com bons olhos a vacina para a Covid-19, mas acredita que não será uma realidade em menos de um ano. Graças a ela, sublinha, que “finalmente” a União Europeia não foi “omissa” e assumiu uma posição verdadeiramente global.
De que forma é que o serviço de medicina intensiva do Hospital São João se preparou para esta pandemia?
O início da pandemia foi um momento interessante porque houve um evento que condicionou bastante a forma como pensamos na resposta. No último dia de 2019, a China anunciou que existiam vários casos de pneumonia de causa não conhecida. Passados 12 dias, o vírus estava identificado e o genoma estava na posse da comunidade internacional. Em fevereiro, a China revelou que começava a existir um controlo da curva epidemiológica e, consequentemente, uma redução de casos, e na Europa começávamos a ter os primeiros casos, primeiro em Itália e depois em França, Reino Unido, Alemanha e Espanha. Essa dicotomia da evolução na China, entre um controlo em cerca de menos de dois meses na Ásia e o aparecimento dos primeiros casos na Europa, criou uma ideia de que poderia acontecer um pico pandémico cuja expressão seria muita intensa, mas pouco duradoura.
Que tipo de resposta gerou?
Ao contrário do que aconteceu há 10 anos com a gripe A, em que tivemos 6 meses para preparar uma resposta, aqui tínhamos talvez um mês e meio ou sete semanas para o fazer. Isso levou a que se construísse uma resposta a que eu chamo de hiperaguda: tinha de ser muito intensa e muito rapidamente conseguida, mas não teria de ser pensada para durar muito tempo. Este cenário teve varias expressões, das sociais às hospitalares. A expressão social centrou-se no confinamento, feito muito precocemente, e numa decisão muito importante, tomada ainda antes da declaração do estado de emergência, de encerrar as escolas. Fomos dos países mais atempados a tomar essa decisão. Ao confinamento juntou-se uma adesão das pessoas muito significativa, através das regras da higiene das mãos, da etiqueta respiratória e do distanciamento físico, a que depois, também numa fase relativamente precoce, se somou o uso da máscara nos espaços fechados com mais de uma pessoa.
E do ponto de vista hospitalar?
Essa atitude correspondeu a um shut down quase completo de outras atividades programadas, foram suspensas cirurgias e consultas, ficou apenas um pedacinho de cirurgia para coisas que não podiam mesmo esperar. Este encerramento levou a que a medicina intensiva fosse ocupar áreas que estavam inativas. Aqui no S. João, nunca ocupámos blocos, mas ocupámos recobro anestésico e uma enfermaria de cirurgia geral. Em 15 dias transformámos essa ala numa expansão da unidade de cuidados intensivos, ganhando com isso 14 camas.
Quantos internados chegou a ter?
Temos um serviço dimensionado com 62 camas e chegámos a ter ativadas 99 no pico da pandemia. Desde o início, foi desenhado um plano de contingência que tinha vários níveis de ativação. O primeiro era a ocupação da área de cirurgia geral, o segundo nível era a unidade de recobros anestésicos e o terceiro era a ocupação de uma área do nosso serviço que estava dedicada ao doente neuro-crítico, aos acidentes vasculares cerebrais e aos traumatismos cranianos encefálicos, que passou a funcionar como Covid-19, levando a unidade de neuro-crítico para outro espaço do hospital. Não chegámos ao último nível. Além disso, somos centro de referência de medicina intensiva para uma área que inclui Vale do Sousa, Matosinhos, Póvoa de Varzim e Vila do Conde. Recebemos também 15 doentes para tratamento com ECMO (oxigenação por membrana extracorporal), onde somos referência para basicamente metade do país. Ao todo, nesta primeira fase da pandemia, tratámos cerca de 150 doentes críticos com Covid-19. É uma casuística muito elevada.
O que foi mais difícil de gerir?
O serviço tem alguma experiência em atuar nestas situações, lembro sempre que a gripe A, há 10 anos, foi um bom ensaio para este tipo de respostas. Aqui tivemos menos tempo e, sobretudo, uma doença que era mais letal e mais transmissível. A minha principal preocupação foi a segurança dos profissionais. Para mim era muito claro que a pior coisa que poderíamos ter era uma má política de segurança e, com isso, levar a que os recursos que já eram escassos — porque os recursos de medicina intensiva no país são inferiores àquilo que deveriam ser, está em curso agora uma capacitação nacional nessa área — ainda serem perdidos pela transmissão da doença aos profissionais. Isso geraria uma situação insustentável. As questões de stock dos equipamentos de proteção individual, que nunca faltaram, a definição de áreas sujas, limpas e intermédias foram aspetos centrais da minha ação. Felizmente, no serviço, tivemos poucos casos, nenhum com gravidade. A minha segunda preocupação foi definir circuitos e áreas claras para Covid e não Covid e fazer isso desde o momento em que o doente entra no hospital. Claro que, com a chegada dos testes rápidos, pudemos reduzir a área dedicada aos suspeitos, e isso foi muito importante, mas existiram dias, no final de março, em que chegaram a entrar 9 a 10 doentes infetados no serviço. A terceira preocupação foi envolver as pessoas através de uma comunicação sistemática, fazendo pontos de situação, e estratégica, de forma a adaptar o plano de contingência traçado. De três em três dias, por exemplo, enviava um e-mail para todos os médicos e enfermeiros chefes do serviço, onde procurava dar dados, identificar bloqueios e definir os passos seguintes a dar, mas onde também pedia contributos, sugestões e críticas, e acredite que recebi muitas. Estamos a falar de uma equipa com cerca de 40 médicos, mais de 200 enfermeiros e cerca de 100 assistentes operacionais.
Há um excesso de mortalidade este ano que a Covid-19 não consegue explicar totalmente. Pela sua experiência, o que aconteceu?
É importante dizer que Portugal é dos países com a mais baixa taxa de letalidade pela Covid-19. Essa mensagem tem de ser passada de uma forma muito significativa, porque, sendo uma doença que mata sobretudo os indivíduos mais frágeis, vimos que ela pode ter formas muito críticas e muito graves em indivíduos que não têm uma fragilidade especial. Se a mortalidade em Portugal é, nesta altura, de cerca 3,4%, significa que a resposta da medicina intensiva foi extraordinária, porque o papel da medicina intensiva na pandemia é, precisamente, reduzir a letalidade. Relativamente aos dados de mortalidade global, houve, de facto, um aumento, e penso que a explicação deve ser estudada cientificamente com dados robustos, mas, na minha visão, pode passar por três coisas. Há um patogénico novo que deu alguma mortalidade, depois existiu uma vaga de calor significativa e alguma mortalidade também lhe é atribuída, finalmente, houve um grupo de doentes com patológica crónica e até aguda que terão tido algum receio em percorrer a cadeia de tratamento e cuidados adequada por causa da Covid. Seja por inibição de recursos do próprio doente, seja por alguma afetação da atividade hospitalar nessa área. Não há números sobre isso, é muito importante que exista uma investigação sobre esta matéria. Criámos uma cadeia de resposta hiper aguda como se a coisa fosse muito intensa, mas como se passado dois meses acordássemos cansados, vitoriosos e o vírus tivesse desaparecido.
As pessoas tratadas fora de tempo não procuraram ajuda ou os serviços não se organizaram para que isso fosse possível?
Não creio que possa chamar a isso falta de organização, houve uma estratégia construída que levou a que fosse necessário responder daquela maneira para que não houvesse saturação do sistema de saúde pela Covid-19. Todas as estratégias têm prós e contras, caso contrário não são decisões, são fatalidades. Quando decidimos, estamos sempre a decidir entre prós e contras. O encerramento de atividades aumentou o tempo de resposta para várias patologias, isto é um dado factual. Se isso afetou a mortalidade? Falta estudar.
Como é que o hospital se está a preparar para o inverno?
Com o que sabemos agora, temos de construir uma resposta para o próximo outono/inverno que seja capaz de responder com qualidade e segurança adequadas a todos os doentes Covid e não Covid. Não teremos hipótese de fazer outro confinamento do nível que fizemos e não teremos hipótese de encerrar atividades clínicas. O plano de contingência que estamos a construir tem precisamente esse princípio base, que é criar a máxima resposta para a Covid e não Covid. Esse plano já foi entregue ao Conselho de Administração do hospital e vai ser integrado no serviço global do hospital. Estamos também a tentar, na medida do possível, fazer descansar um grupo de pessoas do serviço que está cansado. A intensidade do trabalho foi enormíssima, com recursos humanos abaixo do que eram necessários, mesmo sem Covid-19.
Que tipo de resposta será adotada no futuro?
Provavelmente vamos precisar um pouco de mais camas do que as que precisámos no pico, pois não vamos encerrar nenhuma atividade à partida. Vamos continuar a operar o máximo possível, vamos continuar a fazer consultas, a atender todos os doentes que precisem de ser atendidos com o máximo da qualidade. Esta é a primeira razão para não haver redução de resposta, depois o vírus vai ser uma das causas de pneumonia. Na primavera, quando um doente chegava ao hospital com uma pneumonia grave, 99% das vezes era Sars-CoV-2. Se pensarmos no outono/inverno, o vírus vai juntar-se a uma série de outros agentes normais de pneumonia, como a gripe, por exemplo. Por isso, quando virmos um doente com pneumonia, ele pode ser Covid, mas sê-lo-á num percentual de vezes menor do que na primavera. No serviço de medicina intensiva vamos ter de tratar doentes com pneumonia e sem pneumonia, doentes com pneumonia causada pelo novo coronavírus e pneumonia causada por outros agentes. A resposta global não pode ser menor, provavelmente terá de ser maior.
O tratamento será dado sem ocupar as áreas necessárias para outras atividades?
Sim, precisamos de capacitar e expandir o serviço para áreas que não sejam necessárias para outras atividades. O balanço das áreas Covid e não Covid não pode ser 80%/20% como foi na primavera, tem de ser mais 50%/50%. No entanto, vamos continuar a ter de adotar os mesmos cuidados a nível de circuitos e de áreas completamente independentes de Covid e não Covid, sendo necessário um critério muito significativo para logo no início fazer a triagem do doente e capacitar o serviço.
A expansão do serviço pode passar exatamente por onde?
Passa pelo aumento do número de camas e, muito importante, por um aumento de recursos humanos. Vários hospitais estão em processo de capacitação nesse sentido, sendo muito importante que se percebam duas coisas. A primeira é que, para esta capacitação ser efetiva na resposta no próximo outono/inverno, os processos de contratação públicos têm que ser simplificados. Não pode ser um concurso público normal, que demore três ou quatro meses a ser resolvido, caso contrário não temos isto feito em tempo é real. A segunda perceção, que faltou muito na resposta na primavera, é que muito, mais importante do que os equipamentos, é a capacitação de recursos humanos. É fundamental que sejam incluídos mais recursos humanos nos serviços de medicina intensiva. Os ventiladores, as bombas, as seringas de perfusão, os monitores e as camas não funcionam e são inúteis se não tiverem pessoas preparadas para as trabalhar. Para o hospital de S. João está prevista a necessidade da entrada de pelo menos três médicos, 30 enfermeiros e 10 assistentes operacionais, que devem entrar no início do outono e não no fim do inverno. É preciso integrá-los e prepará-los, é essencial que essa resposta aconteça e que esse apoio da tutela se faça sentir. Temos a perceção de que está a existir vontade e esforço nesse sentido.
Quantas camas irá ganhar nesta fase?
Vamos conseguir passar das 62 para 70 camas, mas capacita muito mais do que isso. Em vez de trabalharmos fundamentalmente em open spaces, passaremos a ter muitos mais quartos individuais com pressão negativa. Assim, estaremos a reduzir a transmissão do vírus doente-doente e a melhorar as condições de segurança dos profissionais de saúde. O plano de contingência que desenhámos para o inverno implica o ganho de oito camas e também a ocupação de outras áreas externas ao serviço, onde as zonas que são essenciais à atividade de blocos operatórios e recobro ficam asseguradas. Se for necessário a ativação máxima do plano, teremos 103 camas, será um pouco mais do que na primavera.
Quando falamos da gripe, considera que todos deveriam ser vacinados este ano?
Se me perguntar a nível de resposta hospitalar, os dois passos limitantes de sucesso são os recursos humanos e os testes rápidos. Para este outono-inverno, não precisamos apenas de testes rápidos para o Sars-CoV-2, mas também para a influenza (gripe) e até para outros agentes. Eles já existem no mercado, há dois fornecedores internacionais, é muito importante o país posicionar-se para os adquirir. Com estes testes rápidos, conseguimos em pouco tempo definir o circuito do doente, que deixa de ser apenas Covid ou não Covid, e passa a ser Covid, gripe ou não Covid e não gripe. Em boa verdade, não sabemos com real certeza como é que estes dois agentes convivem, mas começamos a ter a ideia, sobretudo pelo que vemos na Austrália, de que ter gripe e depois ter Covid pode ser indutor de um Sars-CoV-2 mais grave, do que na ausência de uma gripe prévia. Uma vacinação anti-gripal é muito importante e é essencial existir para todos os grupos de risco. Se tivermos a certeza de que todas as pessoas com critérios de vacinação anti gripal fazem a vacina, estamos a dar um passo muito significativo. Nesse aspeto, as notícias são boas, porque a previsão de vacinas conseguidas pelo Estado português parece ser bastante confortável.
A nível social, o que poderá ser feito antecipadamente para reduzir o impacto das infeções respiratórias na próxima estação?
A primeira é garantirmos que todos os doentes com doença crónica ou particularmente frágeis tenham um plano de saúde avançado para esta época. Isto deve ser discutido já: “Se me acontecer isto ou aquilo, onde vou e o que faço?” ou “Como garanto a minha medicação para todo o inverno sem ter de me deslocar a uma unidade de saúde?”. Isto passa por fenómenos de medicação por proximidade, prescrição remota e teleconsulta, para que o doente vá à unidade de saúde se for realmente necessário. Todas estas coisas, que já vinham de planos de saúde antes da Covid-19, têm de ser muito incentivadas. A Covid é uma oportunidade enorme para este legado não desaparecer e permanecer. Para as pessoas que não têm fragilidades nem doença crónica, a perceção de que vai correr melhor ou pior depende de todos e de cada um de nós. Temos de ser capazes de manter neste outono-inverno as regras que nos parecem básicas, a higiene das mãos, o distanciamento físico, a etiqueta respiratória, a máscara em todos os sítios fechados com mais de uma pessoa e nos espaços abertos onde houver grande proximidade.
Espanha proibiu fumar na rua e nas esplanadas quando a distância social de dois metros não está garantidamente adotada. O que pensa sobre esta medida?
É uma excelente oportunidade para se parar de fumar. Estamos a proteger-nos a nós e os outros de várias maneiras, no sentido ecológico e no sentido dessa exalação que fazemos com mais facilidade e que é transmitida através do fumo. Acho muito importante aproveitar esta oportunidade para adotar medidas de higiene social e de saúde publica, isto é, percebermos que podemos ter uma vida mais saudável se tomarmos determinadas medidas. Mesmo se quisermos voltar àquilo que chamamos “normalidade”, que necessariamente será um pouco diferente, só o conseguimos fazer se entendermos que este é um desafio de toda a sociedade.
Relativamente a uma eventual vacina contra a Covid-19, qual a sua expetativa quanto à eficácia e duração da sua imunidade?
Para alguma vacina entrar no mercado e ser aplicada aos cidadãos tem de passar por todas as fases da investigação. A primeira vacina anunciada na Rússia não passou por todas as fases e, portanto, não assegura, a meu ver, condições de segurança para irmos por aí. No entanto, fico muito animado por ver, talvez pela primeira vez, a União Europeia responder em uníssono. Portugal é um dos países recetores de uma das vacinas que está em preparação e em estudo, essa sim está a seguir todas as normas necessárias.
Acredita que poderá chegar mesmo em dezembro?
Bem, se me perguntasse isso anteontem eu diria que teria poucas esperanças de que isso acontecesse. Acho que, finalmente, a União Europeia está a assumir uma posição globalística e holística, em que protege o cidadão europeu no seu todo. Isto faltou-nos muito na primavera. Uma das coisas que esperava ter sido diferente, é precisamente a organização da resposta europeia, a capacidade da Europa se exprimir não são só como um elo de ciência, que o é, mas também relevar a sua marca distintiva, que é o Estado social. Talvez seja a primeira vez que vejo uma iniciativa de forma indelével que caracteriza aquilo que é a Europa. Um dia vai-se escrever a história desta pandemia e vão-se analisar as causas dos países onde a doença correu melhor e pior. Países que se afirmaram muito em termos de protecionismo e nacionalismo e países que tomaram decisões de carácter político independentemente do parecer dos técnicos são países onde a pandemia matou mais. Adotaram uma má estratégia, isto é muito claro. A vacina é o primeiro exemplo de resposta da Europa numa situação que esteve quase omissa em termos institucionais. A minha expectativa relativamente à vacina é boa.
Sobre os mais velhos, sabe-se que no lar em Reguengos de Monsaraz pouparam-se camas no hospital, noutros países ouvimos que se decidiu que os mais velhos poderiam ser preteridos. Alguma vez teve de tomar uma decisão deste género?
Em Portugal nunca chegámos a uma situação em que tivéssemos que colocar estratégias de priorização de camas, aqui no hospital não passámos por isso.
Mas faz sentido esta escolha?
Todos os processos de decisão de internamento são éticos, os princípios são muito claros e estão sempre presentes nas nossas ações. Não faz sentido internar um doente em medicina intensiva se soubermos que ele não vai ter benefício disso. Ou seja, um doente que vive uma situação extrema ou grave, que não vai ter nenhum benefício ao ser internado em medicina intensiva, não o é, tendo outro plano de tratamento. Um doente que pode ser tratado com a mesma qualidade e o mesmo resultado em enfermaria, por exemplo, também não faz sentido interná-lo em cuidados intensivos, pois estaríamos a retirar o acesso a outro doente que realmente precisa. Este processo de decisão é muito complicado.
A idade pode complicá-lo ainda mais?
A idade por si só não é um critério definidor de entrar ou não entrar no serviço. As doenças crónicas e a sua gravidade influenciam o raciocínio, mas não a idade. Não há um viés, nem pró nem contra, ao doente Covid-19, as regras éticas de comportamento e de decisão de admissão são exatamente iguais para Covid-19 e para não Covid-19. Imagine uma pneumonia que é apenas a estocada final de um processo terminal, onde não há nenhum beneficio no tratamento, pelo contrário, ele só iria induzir sofrimento sem modificar o resultado. Aí o nosso dever é abstermo-nos de causar isso.
Como avalia a gestão do Ministério da Saúde da pandemia?
Julgo que não pode haver outra resposta que não seja que estamos satisfeitos. Confesso-lhe que me faz alguma impressão que se olhe para trás e não se diga que o país esteve bem. Nós, portugueses, fomos capazes de, em dois meses, darmos uma resposta que levou a uma estratégia de confinamento que achatou a curva epidemiológica de uma forma significativa; conseguimos o envolvimento do cidadão e da opinião publica; tivemos uma comunicação entre peritos, técnicos, institutos públicos e gestores políticos com alguma intimidade, com divergências, mas com comunicação; e tivemos uma taxa de letalidade extremamente baixa, muito baixa. Penso que, globalmente, soubemos proteger os mais frágeis. Foi perfeito? Evidentemente que não, há várias coisas que podiam ser melhores, mas o nosso papel é identificá-las, discuti-las, corrigi-las e evitar que elas voltem a acontecer. Por diversas vezes tive uma opinião um pouco diferente daquilo que foi conseguido.
Pode dar exemplos?
Se me perguntar se o confinamento poderia ser um bocadinho mais tarde daquilo que foi, eu diria que sim. Gostaria de ter mantido o confinamento até ter taxas de transmissão um pouco mais baixas. Se considero que a resposta social esteja completamente conseguida? Não, acho que pode ser claramente melhorada e que essa é uma obrigação muito grande, uma descoberta que já tínhamos feito. Mais uma vez, a Covid-19 vem destapar algo que é um problema crónico do país. Saúde e assuntos sociais são uma e a mesma coisa. Temos um grupo de doentes que não sai do hospital porque, embora tenha alta clínica, não existe uma resposta social para eles. Talvez seja melhor para o país investir e melhorar essa resposta social do que propriamente construir mais hospitais.
Se houvesse mais investimento no SNS, a resposta durante a primeira vaga seria necessariamente diferente?
A resposta da primeira vaga foi muito boa, fizemo-la à custa do encerramento de uma série de atividades. Se não houvesse, desde 2010, uma prolongada sub-orçamentação e sub-investimento no SNS, talvez tivéssemos dado a mesma resposta, mas com menos encerramento das atividades, indiscutivelmente. Se acho possível que a resposta à Covid-19 tivesse tido a mesma qualidade com mais investimento, com mais áreas de bloco operatório, blocos mais qualificados, com mais recursos humanos e mais adaptados ao sistema, penso que sim. Mas isso não quer dizer que a resposta à Covid-19 fosse melhor, era se ela podia coabitar mais com a outra resposta.
Para si, é indiscutível que exista uma segunda vaga?
Não lhe posso dar a certeza de que vai haver uma segunda vaga, acho que vamos sair da Covid-19 quando tivermos uma terapêutica efetiva, e ainda não estamos lá, ou quando tivermos uma vacina. A minha expectativa é que não tenhamos isso dentro de um ano. Se até lá vamos ser capazes de ter um nível de endemia como estamos agora ou vamos viver uma onda secundária, não lhe sei dizer. Na minha opinião, a possibilidade é real. O facto de um destes clusters que temos tido fugir de controlo, nomeadamente numa área mais urbana, e voltarmos a ter transmissão comunitária, penso que é uma possibilidade e, sendo uma possibilidade, a forma como reagimos a ela também vai dizer se temos uma segunda curva ou não. Uma coisa é certa: vamos ter um aumento de número de casos no inverno, que pode não ser em crescimento exponencial, e vamos ter muito cuidado em evitar esta coabitação entre a gripe e a Covid-19.
Porque escolheu esta especialidade?
Na verdade, sou especialista em medicina interna e medicina intensiva. Quando era internista, havia uma fase em que os meus doentes ficavam tão mal que precisava de ajuda de outras especialidades. Achava que isso era uma perda, devia existir um conjunto de pessoas que fosse capaz de fazer duas coisas ao mesmo tempo. Fazer o tratamento da causa da doença, mas aguentar a vida até o tratamento dar resultado foi o que me fascinou na medicina intensiva. Outra coisa que me agradava era o facto de ser uma especialidade de comunicação. Tratamos doentes muito variáveis, desde o trauma grave à infeção respiratória grave, e trabalhamos precisando do apoio e da opinião de múltiplas especialidades. Isso faz-nos um pouco líderes de equipas, que precisam de uma comunicação muito frequente. E não me enganei, estou satisfeito.