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AFP/Getty Images

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Chicoteados, esmagados, enforcados: os gays e o Islão

O massacre de Orlando, reivindicado pelo Estado Islâmico, trouxe de volta a pergunta: o que acontece aos homossexuais em regimes extremistas religiosos?

É quase insuportável acompanhar a troca de mensagens de telemóvel entre Eddie Jamoldroy Justice e a sua mãe, Mina. Mas é preciso, para saber o que se passou na discoteca Pulse, na cidade de Orlando, no estado norte-americano da Florida, na madrugada de 12 de junho. Durante mais de meia hora, Eddie, de 30 anos, foi contando à mãe a sua agonia. No primeiro sms ainda estava à mesa: “Mamã, amo-te. Estão aos tiros na discoteca.” Depois, no esconderijo improvisado: “Fechado na casa de banho. Chama a polícia.” A seguir, incapaz de disfarçar o terror: “Ele vem aí. Vou morrer.” Um novo apelo, já em desespero: “Apanhou-nos. Têm que vir salvar-nos. Depressa, ele está na casa de banho connosco.” Por fim, quando a mãe lhe manda um angustiado “é horrível…”, ele já só responde: “sim”. Foi a última mensagem.

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Eddie foi uma das 49 vítimas mortais (mais 53 feridos) do massacre na discoteca frequentada por uma clientela maioritariamente gay. O autor da matança foi Omar Mateen, um norte-americano de 29 anos de origem afegã, armado com uma espingarda semi-automática Sig Sauer MCX, uma pistola Glock 17 (ambas compradas legalmente) e anos de treino numa empresa de segurança. O poder de fogo e a experiência permitiram-lhe usar as 30 munições de cada carregador da “metralhadora” e as 17 da pistola com a frieza indispensável para disparar tiro a tiro – e provocar o banho de sangue mais mortífero na América desde os atentados de 11 de setembro de 2001.

Omar Mateen telefonou para o 911 (o 112 local) a jurar fidelidade ao Daesh, o autoproclamado “Estado Islâmico” ou “ISIS”. Este, através da sua agência noticiosa, reivindicou o ataque horas depois, elogiando o “soldado do califado” que atacou uma “concentração de cruzados num clube noturno do povo de Lot [expressão que designa os homossexuais no Alcorão]”.

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Omar Mateen assassinou 49 pessoas em Orlando

Sedique Mateen, pai do assassino, veio entretanto dizer que ele não era muito religioso. O ‘clic’ que empurrou o filho para a matança, garantiu, foi o choque sentido há uns meses por Omar – de 29 anos, nascido e criado em Nova Iorque, convém lembrar… – ao ver dois homens a beijarem-se.

Seddique, que tem um vídeo no Youtube a apoiar os talibã afegãos, acrescentou que se soubesse das intenções criminosas do filho tê-lo-ia impedido de as concretizar, porque “cabe a Deus punir os homossexuais”.

Entre a minoria muçulmana dos EUA existe outra minoria ainda mais reduzida – e duplamente discriminada na sequência do massacre de Orlando: os muçulmanos homossexuais. A CNN entrevistou um imã (clérigo muçulmano) que não esconde a sua orientação sexual: Daayiee Abdullah é responsável por uma mesquita frequentada por gays e lésbicas em Washington e define-se como um “imã inclusivo que também é gay”. Abdullah defende que “Alá demonstra a existência de uma grande diversidade logo na criação. A questão é esta: será que nós respeitamos isso?”

Outro muçulmano gay, El-Farouk, contou à CNN como conseguiu conciliar a sua espiritualidade com a sua orientação sexual: inspirando-se no próprio Alcorão (49:13), que fala da criação das diferentes nações e tribos para se conhecerem umas às outras. “Vejo as pessoas ‘queer’ simplesmente como uma dessas nações ou tribos”, disse.

Atirados de prédios, esmagados por tanques, enforcados

As imagens de barbaridades inomináveis cometidas contra homossexuais em zonas do mundo onde vigora a lei islâmica (charia) têm-se sucedido com uma frequência cada vez maior. Em janeiro de 2015, um vídeo mostrava carrascos encapuzados a atirarem dois homens do alto de um prédio em Mossul, cidade iraquiana então nas mãos do Daesh, e logo a seguir uma pequena multidão a acabar com os moribundos atirando-lhes grandes pedras. Em agosto do mesmo ano, o mesmo Daesh divulgava outra execução semelhante, mas num cenário diferente: em Homs, na Síria. A gravação mais recente foi posta online em abril deste ano com localização genérica no Iraque.

Estes foram apenas alguns dos 77 homossexuais assassinados por aquele método no território sujeito ao “califado”, o que levou Paco Ramirez e Samir Bargachi a acusarem, no jornal digital El Español, o “Estado Islâmico e o islamismo radical” de constituírem “a maior ameaça internacional contra a população LGBT, convertendo as zonas ocupadas do Médio Oriente num autêntico gaycídio, perante o silêncio e a inação do mundo ocidental”.

A 25 de fevereiro de 1998, cinco homens acusados de práticas homossexuais foram lentamente esmagados por um tanque de guerra. O suplício demorou meia hora

Antes de serem expulsos de Cabul pela intervenção militar norte-americana, os talibã fizeram o Afeganistão regredir ao grau zero da civilização. A sanha contra os homossexuais levou a que os matassem de uma forma particularmente desumana, visando aterrorizar a população, por meio de execuções de assistência obrigatória.

A 25 de fevereiro de 1998, cinco homens acusados de práticas homossexuais foram lentamente esmagados por um tanque de guerra. O suplício demorou meia hora e foi presenciado pelo próprio Mullah Omar, então líder dos talibã. O mesmo método foi usado a 22 de março do mesmo ano para esmagar dois jovens gays de 18 e 22 anos, mas com uma retroescavadora.

No Irão, a chegada ao poder dos ayatollahs, em 1979, foi o sinal para o início de uma perseguição sem quartel aos homossexuais. Correram mundo as imagens chocantes de dois adolescentes gays enforcados numa grua, numa praça pública de Meshed, em 19 de julho de 2005. O mais velho, Ayaz Marhoni, tinha 18 anos, o outro, Mahmoud Asgari, tinha 16. Em novembro do mesmo ano foi mostrado o enforcamento de outros dois homossexuais, na cidade de Gorgan, também no Irão.

Chicoteados e lapidados

O ódio aos gays é protegido por lei em muitos países de maioria muçulmana. Segundo o ‘Washington Post’ de 16 de junho último, os homossexuais arriscam a pena de morte nos seguintes países:

  • Na Arábia Saudita, por lapidação;
  • No Afeganistão, embora não haja notícia de execuções desde a expulsão dos talibã do poder;
  • No Iémen, por lapidação para os homens casados (os solteiros não são condenados à morte mas são chicoteados e as mulheres sujeitam-se a penas que vão até sete anos de prisão);
  • No Irão, forca para os homens (as mulheres não são mortas mas são chicoteadas);
  • Na Mauritânia os homens arriscam-se a ser lapidados, embora não haja notícia de execuções; as mulheres estão sujeitas a penas de prisão;
  • Na Nigéria há pena de morte para os homens nos estados que adotaram a charia, ou lei islâmica; a nível federal, a homossexualidade é punida com prisão;
  • No Qatar, a charia só é aplicável aos muçulmanos, que podem ser condenados à morte por adultério, independentemente da orientação sexual;
  • Na Somália, embora o código penal preveja penas de prisão, no sul do país vigora a charia e os tribunais islâmicos têm aplicado a pena de morte por homossexualidade;
  • No Sudão, de acordo com a “lei da sodomia” em vigor, a pena de morte é aplicada a quem for considerado culpado de atos homossexuais pela terceira vez; nas duas primeiras o castigo são chicotadas e prisão;
  • Nos Emirados Árabes Unidos, advogados e jurisconsultos locais admitem que a doutrina diverge no tocante à tipificação do crime para o qual a lei federal prevê a pena de morte: se para todo o ato homossexual, incluindo o praticado de forma consensual, ou se apenas em caso de violação. Num relatório recente, a Amnistia Internacional não referiu a execução de penas morte naquele país por atos homossexuais.

A versão mais recente (junho 2016) do mapa sobre a criminalização da homossexualidade no mundo, disponível no site da ILGA – International Lesbian Gay Bissexual Trans and Intersex Association, acrescenta mais três países àquela lista: a Síria, o Iraque e o Paquistão.

Na Faixa de Gaza, território da Autoridade Palestiniana controlado pelo Hamas, a homossexualidade masculina é punida com prisão até 10 anos. Muitos gays palestinianos procuram estabelecer-se em Israel, onde gozam de proteção legal.

O que diz o Alcorão

A base religiosa da homofobia islâmica tem a mesma origem da homofobia judaica e cristã: o episódio narrado no 7.º Sura do Alcorão não é muito diferente da descrição bíblica da punição dos sodomitas (isto é, habitantes de Sodoma), no capítulo 19 do Génesis.

O site islâmico Islam Question and Answer oferece um ponto de vista mais pormenorizado. Remetendo para a autoridade de vários teólogos islâmicos, explica que os discípulos mais próximos de Maomé concordavam que os homossexuais deviam ser executados, divergindo apenas na forma em que isso aconteceria. Uma das maneiras previstas era serem atirados do ponto mais alto da cidade e apedrejados (pois o castigo divino caiu sobre o povo de Lot sob a forma de pedras).

Os discípulos mais próximos de Maomé concordavam que os homossexuais deviam ser executados, divergindo apenas na forma em que isso aconteceria

Mas há relatos segundo os quais a charia não se aplica com o mesmo rigor a todos os homossexuais. De acordo com o ativista Sarai al-Din, citado pela agência noticiosa síria ARA no dia 2 de janeiro último, um rapaz de 15 anos condenado por homossexualidade foi morto, atirado de um prédio na cidade síria de Dair ez-Zor. No entanto, o homem em cuja casa foi capturado e com quem foi acusado de praticar sexo teve a vida salva: tratava-se de Abu Zaid al-Jazrawi e era um comandante do Daesh. Embora o tribunal islâmico local o tenha condenado igualmente à morte, a intervenção de altos responsáveis do “califado” comutou a pena em chicotadas, seguidas da transferência para a frente de combate no Iraque.

Embora os países de maioria muçulmana – com exceção da Turquia e da Jordânia – demonstrem uma particular tendência para tratar os homossexuais como criminosos, não são os únicos a fazê-lo. De acordo com o relatório “State-Sponsored Homophobia: a World Survey of Sexual Orientation Laws: Criminalisation, Protection and Recognition”, divulgado pela ILGA, os atos homossexuais podem levar a penas de cadeia entre os 15 anos e a prisão perpétua em 14 países, entre os quais Antigua e Barbuda, Santa Lúcia, Barbados e Trinidad e Tobago, todos nas Caraíbas; Guiana, na América do Sul; Tanzânia ou Zâmbia, em África; e na Índia.

A prisão pode ir de oito a 14 anos em 23 países, incluindo Belize, na América Central, e vários destinos turísticos das Caraíbas, como a Jamaica, Dominica, Granada, St. Kitts and Nevis e St. Vincent.

Há ainda 19 países onde a pena por atos homossexuais pode ir de três a sete anos. Em oito países, os gays arriscam de um mês a dois anos na cadeia.

A Bíblia, a Tora e outras religiões

“[Se me perguntarem] Está triste porque 50 pedófilos foram mortos hoje? Não. Acho ótimo. Acho que ajuda a sociedade. Acho que Orlando, na Florida, ficou um pouco mais segura. A tragédia é não terem morrido mais. A tragédia é que estou chateado porque ele não acabou o serviço – porque essa gente são uns predadores.”
Roger Jimenez, responsável pela igreja Baptista da Verdade, em Sacramento, na Califórnia

O sermão do pastor Roger Jimenez provocou uma onda de protestos indignados nas redes sociais e nos meios de comunicação social. A sua homofobia também tem uma raiz religiosa. Os fundamentalistas cristãos fazem uma interpretação literal da Bíblia e acreditam que os sodomitas – aqueles que têm o mesmo tipo de comportamento/orientação sexual que os habitantes de Sodoma – merecem o mesmo castigo divino: “O Senhor fez cair do céu enxofre e fogo sobre Sodoma e sobre Gomorra. Destruiu aquelas cidades e toda a região com todos os seus habitantes e toda a vegetação.” (Génesis 19: 24-25)

E porquê? Para punir a corrupção dos sodomitas que tinham tentado invadir a casa de Lot para violarem os mensageiros enviados por Deus: “Onde estão os homens que esta noite entraram em tua casa? Manda-os cá para fora, que queremos dormir com eles.” (Génesis 19: 5). Lot ainda chegou a oferecer-lhes as suas duas filhas para proteger os hóspedes, mas os sodomitas não aceitaram.

Outra passagem bíblica – do Antigo Testamento para os cristãos e da Tora para os judeus – é ainda mais clara ao classificar a homossexualidade como uma abominação e ao prescrever-lhe o castigo: “Se um homem tiver relações homossexuais com outro homem, ambos fazem uma coisa abominável e devem ser mortos, porque são merecedores disso” (Levítico 20: 13).

Nas mais diferentes paisagens geográficas e culturais, as religiões nunca viram com bons olhos as orientações sexuais “desviantes”

As perseguições aos homossexuais partiram destes e de outros excertos, glosados, revistos e aumentados ao longo dos séculos por teólogos de diferentes confissões. Os sodomitas foram um dos alvos prediletos da Inquisição. Foram igualmente apontados a dedo e caçados sem piedade nos países protestantes.

Nas mais diferentes paisagens geográficas e culturais, as religiões nunca viram com bons olhos as orientações sexuais “desviantes”. O budismo censura a “má conduta sexual” como uma prática mundana que distrai e afasta do caminho do aperfeiçoamento espiritual. O Dalai Lama já reafirmou que a homossexualidade é uma má conduta sexual, embora seja um conhecido defensor dos direitos dos homossexuais.

Um dos textos sagrados do hinduísmo, o Rigveda, refere a diversidade da natureza, sublinhando que aquilo que parece contranatura é natural. Isso e também notícias de um “terceiro sexo” ou “terceiro género” desde a civilização védica (século XII a.C.– século VI a. C.) permitem falar do reconhecimento da homossexualidade por aquela religião. No entanto, nas zonas de maioria hindu, os homossexuais tendem a viver nas margens da sociedade.

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