É uma trapalhada jurídica que ameaça fazer cair como peças de dominó o resultado da mais complexa e longa renegociação de contratos entre Estado e privados. E pode custar centenas de milhões de euros em indemnizações às concessionárias por nulidade de contratos que estão a ser executados há vários anos. Comprometidas ficam ainda as poupanças obtidas com a renegociação destas subconcessões, um processo lançado pelo anterior Governo ainda no tempo da troika.
Estamos a falar de Parcerias Público Privado (PPP) rodoviárias e de contratos de subconcessão decididos no primeiro Governo de José Sócrates. E de uma decisão recente do Tribunal de Contas que recusou dar o visto prévio a um contrato de uma PPP rodoviária considerando que esta apresentava várias ilegalidades.
Na quinta-feira passada foi conhecida a decisão do Tribunal de Contas de recusar o visto prévio à revisão do contrato de subconcessão do Algarve Litoral, que inclui a requalificação da Estrada Nacional 125. O acórdão recusa os argumentos da Infraestruturas de Portugal, segundo os quais a renegociação deste contrato permitiria reduzir os encargos do Estado, o que dispensaria a necessidade de visto prévio por parte do Tribunal. A IP recorreu para o plenário de juízos, ganhando tempo e suspendendo o efeito desta recusa que corresponde à nulidade do contrato.
Tribunal recusa visto à revisão do contrato da Estrada Nacional 125
Se o plenário confirmar a recusa de visto, a concessionária terá de executar o contrato original, o único que foi visado pelo Tribunal em 2010, mas isso implicaria perder as poupanças negociadas ao longo de sete anos, um processo que envolveu dezenas de bancos internacionais. A concessionária pode recusar voltar a estes contratos, argumentando que já não têm estrutura financeira para realizar tudo o que estava previsto, entre obras que foram retiradas durante a renegociação e a transferência de grandes reparações para o Estado. Tudo em nome da redução dos custos públicos.
Há também o risco de a concessionária avançar com um pedido de indemnização ao Estado em tribunal arbitral, o que poderá antecipar o pagamento de verbas que deveriam ter sido entregues aos privados ao longo de vários anos. Qualquer um destes cenários custará milhões de euros ao Estado e vai arrastar ainda mais as já muito atrasadas obras na 125 e provavelmente aumentar os custos do Estado.
Mas, se este chumbo for confirmado, as consequências podem não se limitar à concessão Litoral Algarve e ter um efeito dominó sobre todas subconcessões que foram negociadas para cortar custos. Estes processos foram iniciados com o anterior Governo, que anunciou memorandos de entendimento para reduzir custos, mas a negociação com os financiadores das concessões só ficou fechada com o atual Executivo.
Numa primeira avaliação a estes contratos renegociados, o Tribunal de Contas começou por assumir uma posição inédita em sede de fiscalização preventiva. Indeferiu liminarmente o pedido de visto. Foi o que aconteceu nas concessões do Pinhal Interior, Transmontana e Algarve Litoral. Deixou passar o Baixo Alentejo, devolvendo o contrato sem sequer se pronunciar, dispensando o contrato de visto prévio. Tinha aliás sido esta posição tomada na renegociaçāo das ex-Scut, e com a qual o Estado ficou juridicamente confortável. Mas isso muda com o indeferimento liminar a outras subconcessões.
Face às primeiras decisões, a IP considerou que os contratos estavam válidos e produziam plenos efeitos, como adiantou fonte oficial da empresa ao Observador a propósito do Pinhal Interior. Mas no caso da Algarve Litoral optou por reenviar o processo ao Tribunal de Contas por considerar que não seria possível prosseguir nos termos acordados com a concessionária, de acordo com o acórdão. Questionada pelo Observador sobre as razões porque reenvio este contrato e não os outros, a empresa não esclareceu.
Ora, depois de recusar pronunciar-se sobre o mérito desta pretensão num primeiro pedido, à segunda vez o Tribunal de Contas fez várias perguntas e pediu elementos adicionais, tendo chegado à conclusão contrária da empresa: o contrato revisto implica um aumento de encargos face ao contrato visado, porque a poupança que a IP reclama está fundamentada nos efeitos financeiros que os juízes consideram que não podem ser contabilizados. Isto porque remetem para as compensações contingentes às concessionárias (destinadas a compensar custos financeiros adicionais sofridos devido à crise financeira internacional) que o Tribunal não autorizou, nem visou, e como tal são irregulares.
E se a posição do Tribunal prevalecer, pode pôr em causa as renegociações contratuais que já estão a produzir efeitos desde pelo menos 2014. Isto se a empresa considerar que à luz desta recusa de visto deve reenviar novamente os contratos para visto prévio. E é este cenário que terá a fatura mais pesada para o Estada, da ordem das centenas de milhões de euros, porque pode multiplicar o problema do Algarve Litoral por outros seis contratos
A empresa pode também optar por ignorar a questão para as outras subconcessões, continuar a executar os contratos revistos e aguardar o veredicto do Tribunal em fiscalização sucessiva, o que demorará mais tempo. O envio destes contratos para a fiscalização sucessiva ( auditoria) é referido nos acórdãos já emitidos pelo TdC e consultados pelo Observador.
Para já, o Ministério das Infraestruturas, que tutela a IP, deu ordem à empresa para recorrer da recusa de visto, assinada por um juiz relator para o plenário do Tribunal de Contas. É uma forma de assegurar que o ónus do chumbo, e das suas eventuais consequências, ficará do lado do Tribunal, mas também de salvaguardar a posição da IP, que é a concedente destes contratos, perante futuras litigâncias, mostrando que a empresa fez tudo o que estava ao seu alcance para executar os compromissos.
Questionado pelo Observador sobre as implicações de uma decisão negativa para esta e outras concessões, o Ministério das Infraestruturas recusou comentar cenários. Em relação ao caso do Algarve Litoral, diz apenas que estão a ser feitas obras ao abrigo de cláusulas de exceção.
O acórdão de recusa de visto foi remetido para o Ministério Público. Recordando que o relatório da comissão parlamentar de inquérito às PPP foi enviado para a Procuradoria, o Tribunal de Contas sublinha que a informação fornecida pela requerente, a Infraestruturas de Portugal, a matéria de facto julgada provada e a valoração jurídica “apresentam conexão com aquele relatório podendo compreender elementos com interesse para os eventuais processos judiciários instaurados devendo, consequentemente, ser transmitidos ao titular da ação penal”. Ora esta decisão surge num contexto em que existe pelo menos um inquérito crime que investiga as parcerias público privadas do primeiro Governo de José Sócrates, incluindo a adjudicação das subconcessões rodoviárias.
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Um processo que já nasceu torto
Na origem desta posição do Tribunal de Contas está uma outra alteração aos contratos originais de várias subconcessões que no primeiro embate com os juízes receberam luz vermelha. A recusa de visto prévio em 2009 teve como principal fundamento o aumento dos custos para o Estado na fase de concurso entre a primeira fase e a proposta final que foi adjudicada. A subida dos encargos foi motivada pela crise financeira, e em particular pelos efeitos da falência do Lehman Brothers, que apanhou os concursos a meio. Os contratos foram mesmo adjudicados e com o argumento de que esse atropelo às regras de concurso era justificado por circunstâncias extraordinárias e imprevistas — a crise financeira. Mas também muito pela teimosia do então primeiro-ministro, José Sócrates.
Quando foi recusado o visto às primeiras concessões, e já havia despesa feita, a resposta foi reformar os contratos para contornar as objeções do Tribunal de Contas. A instituição então liderada por Guilherme d’ Oliveira Martins acabou por dar o visto depois de meses de contactos intensos que envolveram o Governo, a então Estradas de Portugal e também dirigentes do Tribunal de Contas, conforme foi revelado em testemunhos na comissão parlamentar de inquérito às PPP realizada entre 2012 e 2013. Mas em 2012, uma auditoria da mesma instituição, denunciou a existência de pagamentos contingentes em anexos aos contratos reformados que na prática mantinham o nível de encargos do Estado ao nível que o Tribunal tinha recusado.
Na prática, o regresso aos valores anteriores à crise financeira estava condicionado à obtenção de poupanças, nomeadamente ao nvel do refinanciamento dos contratos. Se essas poupanças não fossem alcançadas, as concessionárias seriam compensadas. Os juízes alegaram que não conheciam estas cláusulas, que consideraram ilegais, e avisaram a empresa que se realizasse pagamentos que concretizassem essas compensações estaria a cometer infração financeira.
Seis anos depois, as compensações contingentes voltam à superfície nas decisões dos juízes sobre os contratos renegociados. Apesar de a IP assegurar que não os executou nem tenciona executar esses pagamentos, ao mesmo tempo reconhece que as comissões de negociação os consideraram como pressuposto para fundamentar “uma efetiva redução dos encargos”, razão pela qual a empresa sustenta que o contrato da subconcessão do Algarve Litoral, tal como as outras, “não estaria sujeito a fiscalização prévia do Tribunal de Contas”.
Encargos do Estado baixam ou sobem?
Os juízes discordam e são de opinião que esses pagamentos contingentes, que consideram ilegais, não devem ser considerados nas contas da renegociação. Neste cenário, “poderia haver já um aumento do valor do contrato de subconcessão — ainda que este aumento resulte exclusivamente da redução dos pagamentos que a subconcessionária deveria fazer à concedente. Ora a IP argumenta que também este cenário se mantém a redução dos encargos — passando de uma despesa de 1.023,6 milhões de euros para 591,5 milhões de euros, o que traduz uma redução de encargos brutos que dispensaria o contrato alterado de visto. Mas reconhece que há uma subida do valor do contrato quando seguida a linha de raciocínio do Tribunal na decisão divulgada na quinta-feira.
Sem considerar os ditos pagamentos contingentes, e apesar de uma redução do objeto da concessão — com a transferência para a IP de responsabilidades sobre algumas vias e grandes reparações — “calcula-se um aumento de encargos de 294,2 milhões de euros ou de 488,3 milhões de euros (em preços correntes), utilizando respetivamente o tráfego do caso base reformado, ou o tráfego que a IP refere ter sido estimado em 2016. Em valor atualizado, calcula-se um aumento de encargos de 31,8 milhões de euros ou de 157,7 milhões de euros, (consoante a projeção de tráfego). Os acréscimos de encargos face ao caso base reformado (o que teve visto) são de 11% ou de 91%”, em função da estimativa de tráfego.
Para o Tribunal, existe ainda uma “alteração substancial relativamente ao contrato visado”, pelo que “o critério do aumento ou redução do valor relativamente a esse contrato deixa de ser determinante para a sujeição a fiscalização prévia: a alteração que integre contrapartidas relevantes não previstas no contrato visado determina um novo contrato sujeito a fiscalização prévia, devendo a entidade indicar, nomeadamente, todos os factos relevantes no requerimento inicial, ao abrigo do artigo 46.o, n.o 1, alínea b), da LOPTC (e não da nova competência prevista na alínea d) após a revisão de 2011 da LOPTC).”
Independentemente dos argumentos jurídicos, o problema é que a decisão agora assumida pelo Tribunal em relação a este contrato pode ter um efeito de contágio às outras subconcessões. No caso das que o Tribunal deixou passar com indeferimento liminar, pode a IP considerar que tem de as apresentar novamente à fiscalização preventiva, porque o problema apontado na Algarve Litoral também foi detetado nestes contratos. As decisões do final do ano passado para o Pinhal Interior e Transmontana, consultadas pelo Observador, alertam para o mesmo problema.
E nesse cenário, a recusa de visto é uma possibilidade. O mesmo desfecho pode acontecer em relação aos contratos cuja renegociação ainda não está fechada e que ainda não foram remetidos ao TdC — Douro Interior, Litoral Oeste e Baixo Tejo. Estamos a falar de subconcessões e do risco de que as poupanças renegociadas e que estão a produzir resultados já desde o tempo do anterior Governo possam perder-se com consequências financeiras importantes para o Estado.
O Tribunal deixa pouca margem para interpretações distintas por parte de outras instituições. O acórdão defende que o seu juízo sobre a ilegalidade das remunerações de compensação às concessionárias não é suscetível de ser posta em causa por outros tribunais, nomeadamente arbitrais, dada a competência do Tribunal de Contas consagrada no sistema jurídico português para controlar a despesa pública em sede de fiscalização preventiva. Qualificam por isso de “impertinentes e ilegítimas abordagens autónomas nos presentes autos sobre os problemas jurídicos apreciados e decididos pelo TdC em decisões finais”.
Poupanças negociadas foram executada antes da luz verde do Tribunal
Já no relatório de 2014, a Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos, do Ministério das Finanças, dizia que naquele ano já se tinha verificado uma diminuição de encargos brutos com as PPP, em cerca de 283 milhões de euros, “em virtude, designadamente, da incorporação de parte das poupanças acordadas em sede dos pagamentos por conta realizados aos parceiros privados durante este período”. Mas deixava o aviso:
“A concretização das poupanças visadas com este processo negocial só se efetivará integralmente após ter sido obtida a aprovação das alterações contratuais acordadas com as respetivas concessionárias, por parte das entidades financiadoras, bem como realizada a apreciação das mesmas por parte do Tribunal de Contas”.
Os números das poupanças com as PPP fizeram muitos títulos durante os anos do Governo PSD/CDS. O anterior Governo chegou a estimar em mais de sete mil milhões de euros as poupanças obtidas na renegociação. O número referia-se e encargos brutos ao longo de mais de 20 anps e que incluía as antigas Scut cuja alteração de contrato passou já no Tribunal de Contas. Considerando o VAL (valor atualizado líquido) a economia rondaria os 3.8 mil milhões de euros. A Unidade Técnica das Finanças veio mais tarde a quantificar em cerca de 2.000 milhões de euros as poupanças líquidas nos contratos com renegociação já fechada. Mas deixava alertas sobre a fatura com as reparações que ficou para o Estado.
Negociação das PPP. Custo das reparações reduz poupanças anunciadas
De foram destas contas ficava o efeito das subconcessões, que apesar de terem sido os primeiros contratos onde foram anunciados acordos para cortar a despesa, foram os que demoraram mais tempo a renegociar com os bancos internacionais e, em particular, com o Banco Europeu de Investimentos.
Os números das poupanças anunciadas voltaram a ser revistos em baixa pelo Governo socialista quando chegou ao poder. O ministro das Infraestruturas denunciou o que qualificou de propaganda à volta destes números. Segundo Pedro Marques, as economias anunciadas eram afinal muito mais baixas.
Poupanças na negociação das PPP são um quarto das anunciadas, diz Pedro Marques