Convenhamos, é um diálogo ortodoxo.
– Tovar, o jantar já está na mesa.
– Deixa-me só enviar um e-mail à Cicciolina.
Whaaaaaaaaaaaaaat?
Yup, é isso. A Cicciolina tem um e-mail. Como faz precisamente 30 anos da visita de Cicciolina a Portugal, cá vai disto: um e-mail para aqui, outro para ali e, tchan tchan tchan tchaaaaaaaaaan, uma entrevista à figura do nosso contentamento. Estamos em 1987, dia 18 Novembro. No aeroporto da Portela, a azáfama é fora do normal. Menos de 12 horas depois, ei-la no Parlamento. À noite, num evento patrocinado pelo jornal Tal & Qual, o show de Cicciolina no Coliseu dos Recreios.
Os dois acontecimentos viram notícia, até porque Cicciolina faz das suas. Então? Às tantas, em São Bento, destapa o vestido branco e vêem-se os seios. É a sua imagem de marca. A de Cicciolina (ou melhor, Ilona Staller, húngara de nascimento há 65 anos), política italiana do Partido Radical. Entre críticas femininas, apupos machistas e outros que tais, Cicciolina desfila em Lisboa e entra no Parlamento, onde subverte por completo a enfadonha sessão de trabalhos. A única parlamentar que a recebe é Natália Correia, que escreve este pedaço maravilhoso de texto. Ler para crer.
Estava o Parlamento em tédio morno
Do Processo Penal a lei moendo
Quando carnal a deputada porno
Entra em S. Bento. Horror! Caso tremendo!
Leda à tribuna dos solenes sobe
A lasciva onorevole Cicciolina
E seus pares saudando ali descobre
O botão rosado da tettina.
Para que dos pais da Pátria o pudor vença,
Do castro bracarense o verbo chispa:
“Cesse a sessão em nome da decência
Antes que a Messalina mais se dispa.”
Mas – ó partidas que prega a estatuária! –
Que fazer no hemiciclo avesso ao nu
Daquela estátua que a nudez plenária
Ali ostenta sem pudor nenhum?
Eis que o demo-cristão então concebe
As vergonhas velar da escultura.
Honesta inspiração do céu recebe
E moção apresenta de censura:
Poupado seja à nudez viciosa
O olhar parlamentar votado ao bem.
Da estátua tapem-se as partes vergonhosas.
Ponham-lhe cuequinhas e soutiens.
O que te lembras de Portugal há 30 anos?
Antes de tudo, gostaria de salientar que eu não estava há apenas 30 anos em Portugal, mas também há dois anos para um evento muito bem sucedido numa discoteca de Lisboa, através do meu Tour Amor, em que sou a Special Guest Star nas melhores casas noturnas do mundo. Essa noite de há dois anos foi um sucesso extraordinário.
Então?
Rendeu uma receita de 25 mil euros.
E há 30 anos, que tal?
Diferente, outros tempos.
Foste ao Parlamento, à tarde, e ao Coliseu, à noite.
E conheci Lisboa, uma cidade verdadeiramente romântica, pacífica e alegre ao mesmo tempo. Acima de tudo, não há flores tão coloridas como as de Lisboa. Essa é a imagem de marca desde 1987. Apanhei dias de sol, o que me deu tempo para percorrer as ruas estreitas e fiquei tão contente por ver alguns becos cheios de Bouganville.
Hein?
Bouganville [Cicciolina lá nos soletra tintim por tintim e vamos dar a buganvília, uma planta trepadeira da América, cheia de flores coloridas]. Adorei essa Lisboa cheio de buganvílias.
Ah-ha, buganvílias.
E depois havia o som das ruas. Havia música, lembro-me perfeitamente de passar por pessoas a tocar e é isso que mais me toca em Lisboa: é um cidade de uma beleza ímpar, nascida da vida das pessoas. Fez-me lembrar a Itália dos anos 70, sabes? A vontade de querer sair de um país em crise de fome [Hungria] foi um grande passo para mim. Tomei essa decisão de me aventurar e cheguei a Itália. Estávamos nos anos 70 e era uma Itália em crescendo. As pessoas trabalhavam e não havia desemprego. As pessoas trabalhavam e eram felizes. Um pouco como o ambiente que encontrei em Lisboa. Notava-se uma cidade feliz. Tenho sempre vontade de voltar, quem sabe em 2018?
O que mais te lembras desse dia e meio de Lisboa?
A visita ao Parlamento foi um sucesso mediático, estou eternamente grata por ter visto tanta gente à minha volta. Gente, muita gente. E todos foram muitos profissionais, desde os políticos aos jornalistas. Foi um dia importante para a minha vida, sabes? Ir a um país desconhecido e ser bem tratada só te pode dar uma alegria ilimitada.
E o evento noturno?
À noite, no Coliseu dos Recreios, foi um espetáculo único. Estamos a falar de numa época em que a indústria do sexo ainda não estava devidamente implantada na sociedade, fosse em Portugal ou em qualquer outro país. Quero dizer, havia revistas pornográficas e cassetes VHS, mas era só. Nada mais. Então aquele show foi um movimento único. Mais uma vez, as pessoas apoiaram-me imenso. O Coliseu estava cheio e isso foi uma motivação-extra para o espetáculo correr melhor ainda.
Foi sempre assim a tua vida?
Vivi sempre a mil, vivi tudo o que havia para viver. E não mudaria nada, nem uma vírgula. Fiz sempre tudo com prazer e sem qualquer arrependimento.
O que te anima por estes dias?
O que me excita profundamente é levantar-me e ver o nascer do Sol. Sempre foi um prazer imenso e é sinónimo de vida. Porque significa o início de mais um dia de trabalho.
Qual trabalho?
Continuo cheia de compromissos, como criadora de arte contemporânea.
A sério?
Agora dedico-me muito à arte contemporânea.
E isso é?
Cicciolina make art. Criei uma série de fantásticas obras de arte contemporâneas surrealistas e espero ir apresentar esses trabalhos em Lisboa.
Explica-me isso.
São ilustrações inéditas e absolutamente exclusivas sobre a minha pessoa e a minha vida, todas assinadas por mim. Atualmente, estou à procura de designers de moda e produtores de bolsas para trabalharmos em conjunto. Pronto, isto é a parte da arte. Depois, tenho a outra parte.
Qual?
A de sempre: convidada especial em eventos noturnos.
E dormes?
Ahahahah. Agora o projeto chama-se Love Tour 2017-18.
Andas de um lado para o outro, é?
É um love tour por todas as discotecas da moda. Sou convidada e canto as minhas músicas, tudo em nome dos belos anos 80 e 90 em que atuava com uma coroa de flores na cabeça e lutava contra a censura.
Quais músicas?
‘Muscolo Rosso’, ‘Inno alla Trasgressione’, ‘Political Woman’. E há mais.
Nessa altura, não atuavas com uma serpente?
Sim, sim, o Pito Pito. Agora não, agora tenho um urso de peluche.
E é verdade que queres fazer um filme?
Continuo à procura de grandes produtores nacionais ou internacionais. Neste particular do internacional, quero deixar uma palavra de agradecimento ao meu bom amigo Gianni Domingo Bove. É ele o meu relações públicas fora de Itália, é ele que trata da minha imagem. E é com ele que trabalho quase todos os dias. Neste momento, o filme é um objetivo para 2018.
É um filme sobre o quê?
Sobre a minha vida, com base no meu livro ‘Per Amore e Per Forza’. Quero que seja um filme espetacular, que conte tudo. Desde o meu nascimento na Hungria até aos nossos dias em Roma, onde vivo há 30 anos. Quero que o filme retrate toda a minha vida. O lado materno, por exemplo. Quero que o filme explore todo o meu amor de mãe pelo meu filho Ludwig Koons, que está a estudar na Academia de Belas Artes, em Roma. E o meu lado profissional, como a luta contra a censura através da política e da música. No capítulo da política, tenho de prestar homenagem a Marco Pannella, um verdadeiro amigo, um pai político, com quem compartilhei o Parlamento italiano de 1987 a 1992 [Pannella é um político interventivo, pró-divórcio, pró-aborto, pró-Tibete como país independente, pró-abolição das armas nucleares].
Ver vídeo abaixo
Como é que nasce a Cicciolina?
Através do meu programa radiofónico da rádio Luna que se chamava “Voulez-vous coucher avec moi?”. Durante as transmissões, à meia-noite, recebia imensas chamadas dos ouvintes a tratava-os por cicciolini e ciccioline. Em resposta, eles chamavam-me cicciolina. Nasceu uma estrela, ahahahahah. Pois bem, a Cicciolina afirmou-se como uma marca, através de bolsas e perfumes.
É uma marca registada?
Sempre. Aliás, aconteceu uma coisa curiosa há uma semana: ganhei um processo muito importante contra dois restaurantes franceses.
Porquê?
Usaram ilegalmente o meu nome. O meu amigo e advogado francês Jacques Borderie entrou em ação e ganhámos a causa. Não faz sentido haver restaurantes com o meu nome sem autorização. Falem primeiro comigo, é a política ideal.
Por falar em política, tens um passado no Parlamento italiano. Desde quando?
Nos finais dos anos 70, quando cheguei a Itália, sempre estive atenta aos problemas sociais do país. Até porque tinha um programa de rádio bastante ouvido e sabia o que as pessoas queriam ou não queriam da Itália. Daí à política, foi um passo.
Tens boas recordações?
Claro que sim.
Como por exemplo?
O meu amor pela natureza levou-me a propor um impostos sobre os carros a fim de evitar a poluição atmosférica.
Foste tu?
Pois sim, ahahahah. Esse foi um grande movimento, que me encheu de orgulho e também deu a coragem para dar o salto.
Qual?
O de entrar na X Assembleia do Parlamento italiano em 1987, com mais de 20 mil votos. Fui a segunda mais votada do meu partido, só atrás de Marco Pannella.
Ficaste no Parlamento até quando?
Foram cinco anos, até 1992.
E lutavas por quê, na verdade?
Lutava sobretudo pela informação e educação sexual nas escolas. Também lutei pela liberdade dos prisioneiros e pedi amnistia por delitos menores. Fui contra o uso indiscriminado de animais para experiências científicas, fui contra a despenalização de drogas, fui contra qualquer forma de censura. Lembro-me muito bem desses tempos em que acordava de manhã na Via Cassa e ia com o meu Peugeot 205 até ao Parlamento, de onde só voltava à noite. Não tinha motorista nem distrações de qualquer tipo e estava lá sempre. Agora é dececionante ver os deputados de volta do iPad ou iPhone durante as sessões parlamentares ou não vê-los de todo.
Já vi que ainda és toda da política.
Tenho um partido.
Quêêê?
O DNA (Democracy Nature Love). Fundei-o com o meu amigo Luca Di Carlo. Um partido registado no Ministério do Interior e devidamente autorizado pela Câmara dos Deputados e o Senado da República.
Qual é a ideia?
A de sempre: compromissos sociais. Quero ajudar os pobres filhos de África. Quero mais e mais educação sexual nas escolas. Quero mais proteção aos animais e na defesa do seu ambiente natural, sou totalmente contra a produção de peles.
Último desejo?
Que se acabe o terrorismo, muita paz, saúde, amor e sexo à vontade. Baci, baci, baci.