Nas últimas décadas, as qualificações dos jovens portugueses deram um salto assinalável. Ao mesmo tempo, os salários continuam baixos, o Estado não se reforma, a economia cresce muito pouco e o país perde talento. Em “Ambição — Preparar Portugal para a geração mais bem preparada” Daniel Traça, ex-“dean” da Nova SBE, reflecte sobre as causas e consequências dos paradoxos portugueses que o impedem de transformar talento em prosperidade.
Nas últimas quatro décadas Portugal trilhou um caminho notável na educação da população, aproximando-se do topo europeu na percentagem de pessoas com formação superior. Ao mesmo tempo, a economia manteve um comportamento medíocre, a produtividade continua longe dos padrões europeus e os salários permanecem baixos, levando os melhores a sair do país para desenvolver as suas carreiras.
Porque é que o país não consegue tirar partido do talento que já sabe criar? Porque subsistem estes paradoxos no Estado e nas empresas? Daniel Traça parte da sua própria experiência e do posto de observação que a liderança da Nova SBE — a escola de economia e gestão portuguesa mais bem colocada nos rankings internacionais — lhe deu durante oito anos para, com Paulo Ferreira (radio host das manhãs da Rádio Observador), escrever o livro “Ambição — Preparar Portugal para a geração mais bem preparada”, que será lançado na próxima semana e do qual o Observador pré-publica um excerto do primeiro capítulo.
Quando se fala da «geração mais bem preparada de sempre», do «salto de qualificações dos portugueses» nas últimas décadas e da «fuga de talentos para o exterior» estamos a falar exatamente de quê?
O talento português aumentou, de facto, de forma tão notável em qualidade e quantidade? Está a sair do país a ritmo tão acelerado como pensamos? A performance da economia portuguesa é tão deficiente como se diz, ou é apenas a autocomiseração, tão característica da nossa cultura, a falar? E como está Portugal nestes indicadores em relação a outros países?
Infelizmente, os dados confirmam o otimismo e o pessimismo. Durante o século XXI, o país foi um dos campeões da Europa na melhoria das qualificações da população. Esta dinâmica aconteceu, sobretudo, nos jovens entre os 25 e os 34 anos, mas já tem um efeito considerável na globalidade da população ativa. Consequentemente, as qualificações dos portugueses cresceram substancialmente, do ponto de vista de literacia, da ciência ou das chamadas softskills. Em 2001, 14,1% dos jovens entre os 25 e os 34 anos tinham o ensino superior concluído. Em 2021, eram 47,5%.
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A escolaridade não é necessariamente sinónimo de competência, sobretudo quando os sistemas escolares são pouco eficazes. No entanto, o meu contacto com os jovens talentos nacionais e a valorização das empresas nacionais e estrangeiras do talento que sai da Nova SBE e de outras universidades portuguesas permite-me confiar que o aumento da escolaridade correspondeu a uma melhoria nas competências dos nossos jovens graduados. E será mesmo por aqui, qualificações, competências e salários, que começaremos o próximo capítulo.
Paradoxalmente, entre 2000 e 2022, a economia nacional cresceu muito pouco. O PIB per capita cresceu 0,5% na primeira década deste século e 1,1% entre 2010 e 2019 (antes dos efeitos circunstanciais da pandemia e da sua recuperação). Para comparação, tinha crescido 3,1% nos anos 1980 e 2,4% nos 1990.
Nestes anos, a União Europeia transformou-se e alargou-se a 28 Estados-membros. Com a saída recente do Reino Unido a UE conta hoje com 27 Estados-membros. A taxa de crescimento da média dos UE27 nas duas décadas entre 2000 e 2019 foi de 2,6% e 2,1%.
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As taxas de crescimento da economia portuguesa testemunham uma performance pouco impressionante durante as duas últimas décadas – antes, durante e depois da crise financeira – quer quando comparada com as décadas anteriores quer quando comparada com os países que estavam próximos de nós no início do século. Este desaire é paradoxal, dado o progresso excecional nas qualificações.
A relação entre o desenvolvimento do capital humano e o crescimento económico, através do impacto na produtividade, é um dos factos mais aceites da economia do desenvolvimento. Os chamados «milagres económicos» da Ásia, nomeadamente, assentaram no aumento dos níveis de educação das suas populações. A incapacidade paradoxal de transformar talento em produtividade e, subsequentemente, em crescimento económico é uma idiossincrasia do século XXI nacional. Não sendo o único país a sofrer deste paradoxo, Portugal surge no grupo dos menos eficazes a transformar talento em produtividade no corrente século. Pelo contrário, no último quartel do século XX a economia nacional foi bastante eficaz a alavancar o talento que ia criando.
Em mais uma manifestação paradoxal, a convergência nas qualificações das gerações mais novas, que de facto aconteceu nas últimas décadas de forma notável, não levou a uma convergência salarial semelhante com a média europeia. A falta de salários competitivos está naturalmente associada à performance medíocre da economia, mas ela é o indicador mais imediato e que cada um sente individualmente a dificuldade que o país está a demonstrar em transformar melhores qualificações num melhor país.
Simultaneamente, apesar de o volume de emigração ter diminuído de forma relevante, a saída de portugueses com ensino superior completo tem aumentado de forma notória ao longo da última década, nomeadamente em áreas vitais para o futuro como ciências, matemática e informática. Os dois factos estão obviamente relacionados, pois a emigração dos portugueses mais talentosos resulta dos baixos salários e da falta de oportunidades de carreiras que o fraco desenvolvimento económico implica. Neste contexto, se alguma vez o país for capaz de resolver os seus problemas estruturais e a sua ineficácia, corremos o risco de nos faltarem esses mesmos jovens qualificados para concretizar o desígnio do crescimento.
Vale a pena introduzir aqui mais uma dimensão paradoxal da economia portuguesa das duas últimas décadas. Os setores que mais expandiram o emprego foram os setores de serviços tradicionais, de emprego pouco qualificado e baixo teor tecnológico. Esta realidade contrasta sobremaneira com países de referência, onde indústria e serviços sofisticados absorveram a mão de obra libertada pela agricultura e pela indústria tradicional. Este padrão de especialização é particularmente paradoxal em Portugal, dado o aumento das qualificações. Muito terá contribuído para a posição de Portugal como uma das economias europeias com maior nível de sobrequalificação, onde os trabalhadores estão a desempenhar funções que exigem um nível de qualificações inferior ao que possuem.
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Porque não foi o país capaz de transformar este aumento sem precedentes na formação em mais crescimento, mais produtividade, melhores salários e mais empregos qualificados?
Na base do marasmo económico que está a ser o século XXI português estão fatores há muito identificados no funcionamento da administração pública, da política económica e do sistema político. Infelizmente, temos sido incapazes de reformar o contexto político-económico e administrativo do país para melhorar a sua eficácia e a sua competitividade e atratividade internacional. Surpreendentemente, a posição do país nos rankings associados à eficácia governativa e regulatória tem caído enquanto as qualificações dos funcionários da administração pública têm aumentado, sugerindo mais um paradoxo do talento em Portugal.
As chamadas reformas estruturais tornaram-se manifestos de ação e reação política e ideológica, mas pecam sempre por serem generalistas, enquanto a sua relevância e impacto na agenda legislativa nunca são analisados com rigor. Na prática, por regra não se fazem e, quando se fazem, desfazem-se de seguida. Acabam por servir sobretudo para o povo insultar as elites e os políticos, e para as elites de profissionais, gestores e empresários falarem mal dos políticos. Isto enquanto todos pedem apoios ao Estado.
A reforma laboral levada a cabo durante o programa de ajustamento, considerada vital por muitas instituições, foi pírrica, com alguns estudos a demonstrarem que, no final, o mercado laboral continuava a ser um dos mais rígidos na OCDE. Apesar disso, muitas componentes dessa mudança foram revertidas pouco depois do fim do programa de ajustamento. Outras reformas, como a do Estado ou da Justiça, a meu ver ainda mais importantes, são uma miragem que todos clamam, mas ninguém assume.
O funcionamento do Estado e da política económica são absolutamente fundamentais no sucesso de uma economia do século XXI. Aqui também, o sucesso das economias asiáticas ao longo do século XX demonstra essa relevância.
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Mas há muitas outras alavancas que são importantes para o desenvolvimento económico. As dificuldades do contexto político e da política económica exigem mais esforço noutras alavancas para assegurar o progresso económico – esse é o preço a pagar quando o sistema não funciona. A opção de esperar que o sistema mude e o contexto melhore gera um bloqueio que pode demorar muitas décadas a ultrapassar e que, até lá, impede o país de avançar.
Infelizmente, nas alavancas que são paralelas à política ou ao Estado, o país claudica igualmente. Falamos do país privado, chamemos-lhe assim, e este é pouco debatido. As empresas e os empresários portugueses não se comparam bem com os seus congéneres europeus em matérias fundamentais como a profissionalização da gestão, a internacionalização, a dimensão, a inovação ou o investimento. Em mais um paradoxo do talento, a posição do país nos rankings de qualidade de gestão tem caído ao longo da última década.
Um dos fatores mais importantes tem sido a dificuldade no aumento das qualificações entre gestores e empresários, classes onde o acesso dos diplomados e dos mais jovens tem tardado. Este défice nas qualificações de gestores e empresários tem dificultado a ambição global, o posicionamento nas cadeias de valor internacionais, a melhorias dos processos e a eficiência da inovação, e, mais recentemente, a transformação digital.
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A vida de um empresário e de um gestor é difícil, especialmente num contexto económico e político tão ineficiente como o que se encontra em Portugal. O país posiciona-se igualmente mal nos rankings internacionais de facilidade de fazer negócios – ease of doing business – e a incerteza e a volatilidade da política económica e fiscal introduzem um custo de contexto adicional. Mas noutros países europeus com contextos políticos difíceis, como a Bélgica ou a Itália, a valentia de empresários e gestores tem conseguido colmatar as deficiências políticas. Há, de facto, muito que se pode fazer mesmo num contexto político relativamente caótico e apático como o que vivemos. A minha experiência na Nova SBE deu-me essa convicção.
Esta tese de que há mais que se pode fazer, mesmo no contexto político e de política económica disfuncional em que o país se encontra, não pretende diminuir a relevância da reforma do sistema político e das reformas estruturais no Estado e na politica económica. Mas pretende trazer uma dimensão adicional de transformação do país e da sua economia onde cada cidadão, cada empresário e cada empresa podem dar o seu contributo sem ter de esperar por uma renovação do sistema que tarda e, infelizmente, tardará ainda mais.