Anéis de cebola, frango frito, batidos e sanduíches de leitão. Muito antes de populares cadeias de hambúrgueres que tão bem conhecemos, havia o Kirby’s Pig Stand. Aquele que foi o primeiro restaurante drive-in dos EUA, criado pelo empresário Jessie G. Kirby e pelo físico Reuben Jackson, abriu portas em setembro de 1921, em Dallas, no Texas, e não só se converteu numa cadeia com lojas em Nova Iorque, Florida, Oklahoma, Arkansas, Califórnia, e Alabama como revolucionou por completo a forma como os americanos comiam. Poucos anos depois de abrir, os jornais locais contavam como cerca de 5 mil habitantes de Dallas estacionavam o seu carro no Kirby’s e por ali jantavam sozinhos — o cliente não tinha que sair do seu carro para levantar a comida, sendo servido por empregados que se deslocavam às viaturas. Os chamados carhops, nome que viria a ser cunhado apenas em 1937, começaram por ser masculinos, sendo rendidos por mulheres nos tempos da guerra, de novo ultrapassadas pelos homens no rescaldo do conflito, e com a deslocação em patins incluída em alguns cenários, outra imagem clássica da cultura americana.
Ainda que ao cair da década de 50 se tivessem livrado de todos os espaços fora do Texas, os Kirby’s neste estado eram geridos pelo presidente da empresa, Royce Hailey, que em 1975 haveria de ceder o negócio ao seu filho, Richard Hailey. Em 2006, no entanto, a marca não resistiria à falência, deixando em jeito de legado primitivos slogans como “Quick Curb Service”, “Curb Service”, “Eat a Pig Sandwich”, “America’s Motor Lunch”, ou “A Good Meal at Any Time”, que mostravam como era possível comer fora sem tirar um pé de dentro do carro, um serviço que parece mais confortável que nunca em tempos de pandemia e de imposição de distanciamento social. Facto é que o modelo resiste em cadeias como a The Varsity, uma autêntica instituição em Atlanta, Georgia, e nada mais nada menos que o maior restaurante drive-in do mundo ainda a funcionar. Não chegou a render-se ao posterior conceito de drive-thru, que prevaleceu na restauração — os clientes fazem fila no seu carro, seguem os passos de encomendar, pagar e levantar o pedido e seguem ao volante.
Chegados a 2020, algum destes casos servirá de inspiração num contexto pautado por inesperadas regras? Não só é bem capaz de ganhar expressão como por cá já serviu até para realizar testes ao novo coronavírus em segurança. Há também vários espaços comerciais a alinhar no sistema Email & Collect, incluindo a Avenida da Liberdade, que reabre a 18 de maio para compras, e em muitos casos nem vai ter que abandonar o volante. E já a partir desta semana há cinema, concertos e espectáculos de ilusionismo para ver sem sair do carro. Espectadores com distância de segurança garantida, num sistema que agora parece assegurar o futuro, mas que é muito mais antigo que esta pandemia.
Do America’s Motor Lunch ao retrato da (puritana) cultura americana no banco de trás
Talvez a imagem mais icónica que associamos ao sistema drive-in envolva o cinema. Em 1933, Richard Milton Hollingshead Jr (1900-1975) decide testar um novo sistema no seu quintal em New Jersey: um projetor Kodak instalado no tejadilho do seu carro e uma tela presa a uma árvore terão sido a combinação para este protótipo. Hollingshead haveria de dar voltas à cabeça nas semanas seguintes até alcançar um esquema que admitisse vários carros, sem comprometer a visibilidade de cada um deles, socorrendo-se de rampas que ofereciam a devida inclinação. Richard construiu o primeiro cinema drive-in em Admiral Wilson Boulevard, com o chamado Automobile Movie Theatre a apresentar a sua sessão de estreia a 6 de junho daquele mesmo ano, cobrando 25 cêntimos por cada carro e mais 25 por cada passageiro, um evento imortalizado na imagem de abertura deste artigo. Apesar de ter lançado uma empresa com três sócios e patenteado a ideia, acabaria por ser ultrapassado pela direita por modelos bem mais baratos, com a concorrência a dar a volta ao seu pioneiro esquema de parqueamento.
Reza a lenda urbana que Hoolingshead, que decidiu exibir o filme Wife Beware aos espetadores motorizados, terá tido dois pretextos extra para apostar no drive-in: atrair interessados para o seu negócio de acessórios para automóveis e conseguir que a sua mãe, uma senhora com proporções avantajadas, assistisse a um filme de forma confortável. Desconhece-se se o comércio beneficiou de um incremento mas a semente do novo género estava lançada, apesar de ainda bem distante de todos os upgrades técnicos que os automóveis sofreram. Note-se que se a distribuição sonora começou a ser feita numa primeira fase através de potentes colunas junto ao ecrã, numa segunda etapa os altifalante seriam instalados na porta da viatura, que fazia o controlo do volume. Mas tarde ainda, dois emissores de rádio de baixa potência, um em AM e o outro em FM, garantiam o sim, com a escuta a ser feita através do autorrádio do carro.
“Filmes, pipocas, mosquitos, que pode ser melhor numa quente noite de verão?”, ironiza Camille Smalley, autora de The Saco Drive-In: Cinema Under the Maine Sky. Em 1939, o Maine ganhava o seu Saco Drive, e a descrição da autora explica boa parte do enredo. O drive in estreava-se com Forbidden Music, com Jimmy Durante e June Clyde, e ainda com um desenho animado da Disney e, muito provavelmente, um bloco noticioso sobre o contexto da guerra na Europa. “O boom do automóvel depois da guerra significa que as famílias podiam circular e afastar se de suas casas físicas mas mantendo o ambiente familiar”, frisa Smalley.
Já Drive-in Theaters: A History from Their Inception in 1933 traça de forma exaustiva e mais alargada essa épica evolução, retrocedendo às origens norte-americanas e ao carácter inclusivo que assumiram muitos destes espaços, algures a um passo de auto-estradas e não demasiado afastados das localidades. “O nosso público são casais que não têm com quem deixar os filhos, inválidos que voltam várias vezes, pessoas que de outra forma não iriam a uma sala fechada, até duas senhoras gordas que não cabem nos lugares dos cinemas convencionais”, narrava Herbert J. Ochs, que em 1940 abriu o seu primeiro drive-in em Warren, no Ohio, citado por Kerry Segrave, e que em 1946 cobrava 50 cêntimos a cada adulto. Aliás, para a história passa esse protesto de meia dúzia de babysitters que em 1947 apontavam o dedo a esta distração familiar que lhes arruinava o sustento. “Abaixo com os drive-ins, mais trabalho para as babysitters”, gritaram em Seattle, no Aurora Drive-In.
Ainda durante a década de 40 o conceito era tão estranho para muitos populares que alguns destes cinemas promoviam uma espécie de “open houses”, uma operaçãode charme para que os condutores se familiarizassem previamente com a ideia, como aconteceu em Long Beach, na Califórnia, em 48. Em Tulsa, certo dia chegou mesmo a aparecer um grupo a cavalo, que se acomodou pelas últimas filas para assistir à sessão. George Peterson chegou a fazer um minucioso Manual do Drive-In, com todas as despesas e lucros ao longa das semanas que compunham a temporada de filmes e que serviu de norte a vários empresários do setor. Nesse embrião do Excel só faltariam os beijos, abraços, e outros corolários e ritos de iniciação que pretenda imaginar no interior de um automóvel, que devem entrar nas contas desta experiência social.
Para um salto ainda maior, em 1948, em Asbury Park, New Jersey, surgia o primeiro fly-in. Além de carros, recebia também aeronaves, que aterravam ao lado do drive-in, com transbordo assegurado. Já no pico dos anos 50, o All Weather, em Copiague, Nova Iorque, afirmava-se como um dos maiores, com capacidade para 2500 carros, 1200 lugares sentados interiores, parque infantil, cafetaria e restaurante. E se Manhattan nunca teve drive-in, no Bronx funcionou um dos mais cosmopolitas. Os anos dourados trouxeram também o advento da venda de refrescos, lucrativa fonte de rendimento extra para operadores — a certa altura os layouts das cafetaria eram mais relevantes que o conteúdo de qualquer filme.
Em 22 de setembro de 1949, nascia o 66 Drive-In, ainda em atividade e historicamente classificado, à semelhança de outros redutos desta natureza. Instalado em Carthage, Jasper County, no Missouri, localizado na famosa Route 66, arrancou quatro anos antes das primeiras estações de TV locais assentarem na zona, e numa época em que poucos carros tinham rádios integrados. Uma razão para que o terreno assistisse a obras de instalação de providenciais colunas para que os espetadores ouvissem o filme. Já em plena década de 50, com a televisão a rivalizar com a sétima arte, vários estúdios de cinema apostaram nestes ecrãs para se demarcarem do formato da TV. De resto, vários drive-in haveriam de acomodar um aumento no ecrã a partir de 1953 para satisfazer estas pretensões. E claro em que numa era baby boom, nem faltavam parques de diversões para entreter os miúdos. Ir ao drive-in era toda uma experiência familiar, qual feira popular motorizada. Para mais, menores de 12 não pagavam.
O 66 Drive-In fechou portas em 1985 mas salvou-se da morte em 1998, quando reabriu renovado, continuando a exibir dois filmes todas as semanas, de sexta a domingo e o seu célebre néon iluminado à entrada, evocado ao cair do pano do filme “Cars”. Por sua vez, com raízes em 1963, o The Fort Lauderdale Swap Shop assumiu-se como o maior drive-in e maior feira da ladra do mundo, já que reuniu ambas as valências em Fort Lauderdale, na Florida, incluindo ainda um espetáculo de circo diário entre 1989 e 2006 que entretinha 12 milhões de visitantes por ano.
E se a história começa com os planos e desenhos do jovem Richard, a evolução destes espaços não seria a mesma sem o contributo daquele que ficou conhecido como “arquiteto do drive-in”. Os esboços do também engenheiro John Vogel estão preservados na Biblioteca do Congresso, e não é por acaso. Vogel foi responsável por um décimo de todos os drive-in que fizeram furor nos Estados Unidos nessa áurea década de 50 e ainda em 60. A coleção passa por 468 projetos e 1.940 desenhos, e ainda o projeto do primeiro drive-in erguido na América do Sul, em 1954. Chamava-se Auto Cine e ficava em Lima, no Peru.
Uma das ideias mais extravagantes nunca saiu do papel, mas talvez hoje fosse vista com outros olhos. Em 1970, quando se prenunciava já o canto do cisne, William R. Forman, presidente da Pacific Theathers, anunciava aquela que considerava ser o rentável futuro do drive-in. O empresário pretendia lançar no sul da Califórnia cinco gigantescos cinemas com capacidade para 5 mil carros cada, com lugares diferentes para cada modelo de automóvel, e ainda um sofisticado sistema de plataformas que conduziria os clientes a bares e cafetarias com tecnologia de ponta.
Prego a fundo contra o declínio
A história de toda esta ascensão, queda e ressurreição também desfila no documentário de 2013 “Going Attractions: The Definitive Story of the American drive-in Movie”. Em 85 minutos, April Wright reconstitui essa linha do tempo, dos primeiros cinemas ao ar livre ao auge do conceito, sem esquecer o declínio, que chegaria nos anos 80, e a nostalgia e ressurgimento que conheceram no novo milénio.
Já em 2005, apesar de os números não se compararem com os dias de glória do formato, com lugar cativo em inúmeros filmes norte-americanos, da série Happy Days ao filme de culto American Graffiti, era claro que o epitáfio podia ser adiado, mesmo face ao poderio do Multiplex, da televisão por cabo e de uma série de outros concorrentes bem mais modernos. “Chegaram a ser um ícone americano como a tarte de maçã, o baseball ou os diners abertos 24 horas por dia. Nos anos baby boomer depois da II Guerra, contavam-se mais de 4 mil drive-ins nos EUA, permitindo a uma sociedade obcecada com os automóveis expandir os seus momentos de lazer”, enquadrava então a BBC, sem deixar de assinalar os principais motivos para o crepúsculo: o advento dos leitores de vídeo, o aumento do custo dos terrenos e a má reputação conferida pela ousadia de certos casais, e programação que passou a incluir filmes pornográficos nos anos 70, oferta a léguas do recomendado para esses tempos fundadores de convívio em família.
Sobravam há 15 anos menos de 500 drive-ins nos EUA, ainda ameaçados por fatores como o aumento da gasolina, a redução do fascínio pelas quatro rodas e a introdução do horário de verão, com os dias a escurecer mais tarde e a adiar a exibição das metragens.
Certo é que mesmo em contraciclo, desde os anos 90 haviam surgido pelo menos mais 40 novas atrações como estas no país, contava a mesma BBC. E não deixa de ser curioso como boa parte das razões apontadas para este novo fòlego na popularidade parecem aproximadas do cenário que vivemos. “Num tempo em que a taxa de desemprego e as histórias da guerra dominam as notícias, as pessoas veem os drive-in como um escape”, descrevia em 2005, no rescaldo do 11 de setembro e da guerra no Afeganistão, Jennifer Sherer, CEO da Drive-On-In Inc. O contexto atual não será totalmente idêntico mas não faltam outros pontos de encontro. “Para mim, o drive in representa a imagem dos dias felizes. À medida que o nosso mundo se torna mais imprevisível e menos seguro, mais o drive-in se torna um refúgio”, acrescentava Jennifer sobre esse “family entertainment dollar”, uma forma de reunir e entreter a família de forma agradável e acessível, e que se estende a outras atrações de nicho que voltaram a ser cool, como o minigolfe — um revivalismo hipster que vai muito além de avós com saudades do tempo de infância.
Aliás, na Califórnia, no começo dos anos 2000, surgiram mesmo obscuros “drive ins de guerrilha” nos quais a tecnologia que outrora ameaçara estes cinemas era agora o foco, com os filmes a serem projetados em parques de estacionamento abandonados, pilares ou fachadas de armazéns e os espectadores mobilizados por telefone ou email.
“Toda a gente anda à procura de se sentir normal e esta é uma maneira de estarem seguros”, descreve Andrew Thomas, do Showboat Drive-In Theater em Hockley, Texas, à CNBC, contando como viu o negócio crescer nos últimos meses, fruto da pandemia. A mesma ameaça que permitiu que outras áreas renascessem, como a dos fornecedores de ecrãs. Darrell Landers, da Ultimate Outdoors Entertainment, revela como direcionou o negócio para o cinema ao ar livre, apostando num sistema LED que permite transmitir filmes a qualquer hora do dia.
Já em março, o LA Times narrava essa aparente nova oportunidade para os velhinhos cinemas drive-in, agora resumidos a 305 espaços em todo o país, com muitos adultos a recuarem às saudosas experiências de infância e encontrarem aqui uma alternativa às salas entretanto encerradas. Destinos como o Paramount Drive-In, em Lakewood, desde 1946 nas mãos da mesma família, confirmavam o interesse redobrado do público e o aumento na venda de bilhetes. Numa terça-feira, receberam 136 carros e venderam 320 bilhetes.
Quanto ao festival de Cinema de Tribeca, anunciou uma parceria com a IMAX no sentido de lançar uma curadoria de filmes que serão exibidos em terrenos de drive-in por todo o território norte-americano.
Da cultura pop à magia, o que aí vem em Portugal
Mas e a história doméstica? Diz-nos que em Portugal o modelo americano não chegou a triunfar. Um périplo pela internet encaminha-nos para aquele que terá sido um projeto original (conjunto de peças desenhadas), para construção de um cinema “Drive In”, na zona de Lisboa, nos anos 60, que provavelmente não terá ido além do papel.
Mas os telhados feitos de estrelas teriam uma oportunidade num outro ex-libris, as cinemas-esplanada. Sabia que entre 4 de junho de 1956 e 24 de setembro de 1966, a Portugália teve um cinema ao ar livre instalado no seu terraço? Foi batizado Cine Esplanada Portugália e contava com sessões regulares nas noites de verão. Isto para não dizer que muito antes, já em 1931, o presidente Óscar Carmona inaugurava a Esplanada Monumental e Garagem Monumental, em Lisboa, outra sensação do género, só para citar dois destaques na capital.
Podemos ter chegado tarde, mas claramente a tempo. E de resto, não foi preciso esperar por quarentenas para dar reviver o conceito. O Alegre Montijo já transformou anteriormente o parque de estacionamento na cobertura do Retail Park numa sala de cinema a céu aberto, apostando assim no drive-in, que recebia até 130 carros e o acesso funcionava por ordem de chegada. Em Almada, em 2019, durante as festas da cidade, o Estacionamento do Centro-Sul, na Cova da Piedade, foi ponto de encontro para quem adora cinema, seguindo idêntica fórmula. E há dois anos o MotelX valia-se da mesma receita.
Já esta quarta-feira, a cantora Maria João fez o concerto de estreia do Drive-In musical da Fábrica Braço de Prata, em Lisboa. Enquanto decorria em direto na sala Nietzsche, a apresentação foi projetada nos muros do exterior e, em simultâneo, transmitida nas redes sociais da Fábrica. É necessário reservar o drive-in e para assistir ao concerto do carro cada ocupante terá de consumir pelo menos 5€ em bebidas ou comidas take away. Entretanto, decorre a campanha 1€ PELO ARTISTA, um pedido de uma contribuição simbólica para quem assiste pelo Facebook ou Instagram.
Sexta, sábado e domingo, o drive-in chega também à Batalha, em Leiria, em seis sessões. É em Leiria que a 5 de junho o ilusionista Luís de Matos seguirá o mesmo formato de plateia, com um espetáculo especial que irá decorrer no Estúdio33, em Ansião (bilhetes a 50 euros cada carro). É neste mesmo espaço, e nesse mesmo mês, que atua o comediante Nilton. Ainda em maio, a dia 23, por aqui passa também o cantor Pedro Abrunhosa, com o espetáculo “Vens de Carrinho”, em mais um ensaio de descentralização da oferta cultural. Os bilhetes custam 50 euros por carro e há regras a cumprir, como manter o motor do carro desligado e não abrir as janelas.
Também a Comic Con Portugal vai organizar sessões de cinema especiais para promover entretenimento em tempos de isolamento social. O Drive-In Comic Con Portugal Sessions recuperar filmes que são marcos da cultura pop, ou mesmo antestreias. 1 de junho é a data em que arrancam os motores do projeto da City, Conventions in the Yard, com transmissão da comédia O Meu Espião.
Em julho, vai ser possível ir de carro assistir aos filmes do 24º Festival Internacional de Cinema AVANCA 2020. Pela primeira vez, em ecrã gigante ao ar livre, os filmes da competição do festival vão ser exibidos em sistema “Drive-In” num espaço amplo do centro da freguesia e junto ao Centro de Artes que o Cine Clube de Avanca ali se encontra a construir. E a agenda dificilmente ficará por aqui.
No escurinho do seu carro, de Marrocos à Alemanha
Apesar de se afirmarem como legítima criação yankee, nos anos 50 a fama pulava fronteiras e conquistava outros territórios. Kerry Segrava recorda no entanto como, em 1951, André Fortin, proprietário de 40 salas de cinema em França duvidava do sucesso do franchisado em solo gaulês, menos seduzido pela cultura dos carros e com outro temperamento. Em todo o caso, viu potencial além fronteiras e decidiu investir num destes cinemas em Marrocos, esquecendo no entanto as limitações oferecidas pelo parque automóvel local, que ditariam o fiasco. Terá sido nos arredores de Roma, em agosto de 1957, que abria na Europa o primeiro Drive-In Cine, sem nome mais criativo para se apresentar. Financiado pela MGM e carregado de referências americanas como Coca-cola e snack bar, cobrava metade do preço do cinema dentro de portas (300 liras, qualquer coisa como 50 cêntimos) e dava para 750 carros e 250 scooters. Aliás, o preço mais em conta foi por várias vezes usado como trunfo na história do drive-in.
Em 1961, alcançava a Dinamarca. Sem colunas, cada condutor recebia um pequeno transístor para poder seguir o filme, devendo devolvê-lo no final. Facto é que segundo Kerry, em 11 anos apenas quatro cidades acolhiam cinemas destes, o que mostrava a lenta marcha: Roma, Estocolmo, Madrid e Toulon.
No México, o Auto Cine Lomas abria portas na capital em 1960. Em Israel, o primeiro drive-in arrancava em 1973, com 900 lugares. Nesse ano, surgia o, ainda em funcionamento, último drive-in do Brasil, o Cine Drive-in de Brasília, com a maior tela do país: 312 m².
Da Alemanha, à margem desta obra, surgem outros dados. A um passo do aeroporto de Frankfurt situa-se Neu-Isenburg, cidade com pouco mais de 35 mil habitantes, conhecida essencialmente pelo seu centro comercial, o Hotel Kempinski, e o Autokino Gravenbruch, que se anuncia como o primeiro cinema drive-in da Europa, inaugurado em 1960, que não só ainda funciona como poderá associar-se à toada dos últimos meses. Isto apesar de a obra de Segrave localizar o seu arranque apenas em 1967/68, depois de outros exemplos europeus.
Em solo germânico, o fenómeno drive-in conheceu este ano um boom que vai muito além do cinema — os concertos seguem o mesmo registo e até as raves e missas neste formato já conquistaram fiéis, para além de serem aproveitados espaços como uma fábrica em Dortmund, enquanto de Essen a Marl surgiram vários novos espaços dedicados às fitas. Mas também não pense que o culto religioso vivido desta forma tem um carácter inédito. Na década de 50 e 60, nos EUA, já era comum ver reverendos empoleirados em andaimes.
Europa fora, o fenómeno de origem americana vai ganhando asas. Com os aviões em terra, Vilnius, a capital lituana, converteu o seu aeroporto numa sala ao ar livre. O oscarizado filme “parasita” foi exibido a 29 de abril em cenário drive-in, com 150 a estacionarem provisoriamente na pista. Em Aarhus, na Dinamarca, o modelo drive-in foi aplicado a concertos, seguidos da sessão de cinema de praxe.
Já em Espanha, e ainda a distância da pandemia, três amigos lançavam em 2017 o Madrid Autocine RACE, aquele que se apresentava como o maior cinema drive-in da Europa, um nicho de mercado no bairro de Chamartín que hoje poderá ser mais popular que nunca. Parado devido à Codid-19, deverá voltar a 1 de junho, tendo Grease anunciado no cartaz para um ecrã de 250 metros quadrados, projetor digital e FM. E para os ultra amantes de carros, o Sun Kart Spain celebrizou-se por oferecer cinema depois da meia noite das corridas de karts, sendo que no primeiro ano de atividade terão contado com 90 mil espectadores.
Muito antes de incómodos vírus, a Urban Entertainment Dubai considerava os cinemas drive-in e a solução surge agora mais convidativa que nunca, apostando em vários projetos para os Emiratos Árabes Unidos. De Teerão, chegam imagens do parque de estacionamento da torre de telecomunicações Milad, com as autoridades a desinfetarem os veículos ocupados por casais iranianos, uma das medidas de segurança que se tornou global, porque por estes dias há um filme que é comum a todos, mas para alguns o revivalismo tem mais impacto que para outros. Desde 1979, ano da revolução islâmica que o sistema de cinema drive-in estava banido no país (que soma mais de 6 mil mortes), com as autoridades a recearem o excesso de proximidade entre solteiros. Desde 1 de maio que os filmes voltaram a rolar, neste caso o persa “Exodus”, de Ebrahim Hatamikia.