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Aconteceu com uma diferença de cerca de 4 horas. Primeiro, o email do médico legista. Depois, a denúncia anónima.
Até ao dia 14 de março, dois dias depois de Ihor Homeniuk morrer no aeroporto de Lisboa, o processo aberto pelo Ministério Público destinava-se apenas, e como está previsto para estes casos, a apurar as causas da morte. O corpo tinha sido entregue ao Instituto de Medicinal Legal, sem qualquer indicação de suspeita de crime, e aguardava-se o resultado da autópsia.
Naquele sábado, porém, o médico legista que examinou o cadáver do cidadão ucraniano viu, na lombar esquerda, uma ferida com uma marca muito semelhante à de uma bota habitualmente usada por militares. Também detetou, no antebraço esquerdo, várias marcas, com poucos centímetros de distância entre si, compatíveis com uma agressão com um cassetete. E encontrou ainda outras evidências de que Ihor não tinha morrido de causas naturais, como tinham apontado o SEF e o médico do INEM que verificou o óbito, mas tinha sido vítima de um violento homicídio no Centro de Instalação Temporária, no aeroporto de Lisboa.
E foi isso que levou o médico Carlos Durão a contactar, por volta da hora do almoço, o Serviço de Prevenção aos Homicídios da Polícia Judiciária (PJ) e a entregar um documento com 12 fotografias — todas elas legendadas e todas elas reveladoras das lesões sofridas por Ihor Homeniuk.
Se as informações dadas pelo médico já de si fariam mudar o rumo da investigação — que agora teria de procurar os responsáveis pelo homicídio —, o que aconteceu pouco depois tornou definitivo o novo caminho a seguir pelos inspetores. Pouco mais de quatro horas depois de a PJ ter sido alertada por Carlos Durão, uma denúncia anónima chegou à caixa de correio do serviço de piquete desta força policial. E não era uma queixa qualquer, sem fundamento. Os factos descritos pelo autor da denúncia anónima batiam certo “de forma impressionante” com o que o médico legista acabara de descrever, horas antes. Quase como se a denúncia recebida viesse completar as peças do puzzle que faltavam: neste caso, explicar o que poderia ter provocado as lesões encontradas durante a autópsia.
As marcas no corpo e as fraturas no tórax. Médico legista percebeu que Ihor tinha sofrido uma “morte violenta”
Quando o cadáver chegou à sala de autópsias do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF), a 12 de março, a única informação de que o médico legista dispunha era que aquela pessoa tinha tido um ataque de epilepsia e, mais tarde, sofrido uma paragem cardiorrespiratória na sequência de uma crise convulsiva. Sabia também que tudo isto tinha acontecido nas instalações do SEF no aeroporto de Lisboa, onde estava a aguardar um voo de regresso para a Ucrânia depois de lhe ter sido recusada a entrada em Portugal. Mas as conclusões a que viria a chegar foram bem diferentes: a causa da morte era “asfixia mecânica por constrição do tórax”, isto é, pressão. No documento que entregou à PJ, sabe o Observador, o médico legista considerou mesmo que Ihor Homeniuk tinha tido uma “morte violenta”, compatível com um homicídio.
Na informação que prestou às autoridades, o responsável pela autópsia admitiu que algumas das lesões até podiam ter resultado de um hipotético surto epilético — surto esse que não poderia confirmar através da autópsia. Mas não só: parte dessas lesões foram provocadas pela “atuação da força policial”, concluiu. É que Carlos Durão detetou “marcas típicas das ações policiais de imobilização”. Por exemplo, além das marcas compatíveis com as de um cassetete ou de uma bota, no braço notavam-se também marcas de mãos, que o médico acredita terem sido deixadas no momento em que a polícia tentou imobilizar Ihor Homeniuk. Também nos pulsos eram bem visíveis as marcas das algemas.
Mas os indícios que o médico legista encontrou iam além das marcas visíveis. Havia fraturas no tórax que indiciavam que o cidadão ucraniano teria sido algemado com as mãos atrás das costas, colocado de barriga para baixo e, depois, pressionado contra o chão. Sofreu, desta forma, asfixia, acabando por morrer. No documento entregue por Carlos Durão, é explicado que era impossível que estas fraturas tivessem sido provocadas por manobras de reanimação. Mais tarde, sabe o Observador, o médico legista viria mesmo a dizer à PJ que o cidadão ucraniano “permaneceu em agonia durante oito horas“.
Autor da denúncia fê-lo devido ao seu código ético. “Foi registado óbito por causas naturais quando era óbvio que Ihor estava com escoriações”
O email caiu na caixa de correio do serviço de piquete da PJ de Lisboa alguns minutos antes das 18 horas do dia 14 de março. Era uma denúncia anónima que apontava Duarte Laja, Luís Silva, outro inspetor de identidade desconhecida e ainda um número indeterminado de cúmplices como responsáveis pela morte de Ihor Homeniuk. Até hoje, não se sabe quem é a pessoa por detrás desta queixa anónima, mas, no email enviado à PJ, explicava que denunciava o caso devido ao seu próprio código ético. Mais: a descrição feita é pormenorizada, levando a crer que o autor da queixa presenciou o alegado crime.
No email, sabe o Observador, era dito que o cidadão ucraniano tinha criado problemas com um dos seguranças do Centro de Instalação Temporária do aeroporto de Lisboa e que os inspetores Duarte Laja, Luís Silva — agora acusados pelo MP — e ainda um terceiro deslocaram-se ao Centro de Instalação Temporária. Lá, “algemaram o homem” e “agrediram-no a murro, pontapé e bastão”. Depois, foi deitado no chão e algemado com as mãos atrás das costas “até ficarem roxas”. Cotovelos e tornozelos foram atados com fita adesiva. “Teve convulsões”, é ainda referido, ao que o Observador apurou.
Na denúncia é ainda descrita a forma como o crime terá sido encoberto. É dito que o óbito foi registado como tendo causas naturais, “quando era óbvio” que Ihor Homeniuk estava “todo amassado” na cara e com escoriações nos braços. Mais: o autor da queixa alertava ainda para o facto de os registos de entrada dos inspetores terem sido “alterados em conluio com os seguranças” — facto que viria a ser apontado pelo MP na acusação. No final, era ainda deixada uma lista de pessoas que terão presenciado o crime e que podiam contar “tudo”. Mas também era deixada a mensagem de que “alguns inspetores tentaram salvar o homem tirando as algemas e as fitas das penas”.
Relatório do SEF diz que inspetores já encontraram Ihor Homeniuk “debilitado” e com “respiração ofegante”
Os resultados da autópsia aliados à denúncia anónima fizeram com que o Ministério Público (MP) deixasse de olhar para esta morte como natural, mas sim como um homicídio. Faltava descobrir quem eram os responsáveis. Até ao momento da autópsia, o MP estava a investigar o caso sem qualquer indício de crime. Todas as informações que tinham chegado até então não levantavam quaisquer suspeitas.
No auto de óbito elaborado pelo SEF e assinado pelo inspetor Rui Marques a 12 de março, sabe o Observador, era apenas dito que, quando dois inspetores foram à sala onde Ihor Homeniuk se encontrava para o irem buscar e transportar até ao avião que o levaria de volta à Ucrânia, encontraram-no “debilitado” e com a “respiração ofegante”.
O documento explicava ainda que, ao chegar ao aeroporto, dois dias antes, o cidadão ucraniano tinha sofrido um ataque epilético e que chegou a ser levado para o hospital. E que Ihor esteve sempre muito agitado — o que motivou os inspetores a isolarem-no na sala dos médicos do mundo — tendo tido um comportamento agressivo na noite antes de morrer, começando mesmo a bater com a cabeça na parede.
É dito ainda que durante essa noite os vigilantes foram várias vezes à sala porque Ihor estaria muito agitado e a gritar. Que lhe foi dada medicação para que se acalmasse, mas sem sucesso. Aliás, um dos vigilantes acabaria mesmo por ser atingido com um sofá no pé direito, segundo o inspetor descreveu no auto de óbito. Mais: o relato diz que os três inspetores agora acusados pela sua morte acabaram mesmo por algemá-lo para conseguirem falar com ele. O documento, ao que o Observador apurou, refere ainda que lhe foi dado um pacote de leite, bolachas e nova medicação. ao cidadão ucraniano. Mas, cerca de sete horas depois, encontraram-no “debilitado” e acabaria por morrer.
Também a verificação de óbito assinada pelo médico do INEM João Jorge não levantava suspeitas. Era apenas dito que Ihor Homeniuk fora encontrado em paragem cardio-respiratória na sequência de uma crise convulsiva. Apesar das manobras de reanimação, o óbito acabaria por ser declarado às 18h40. Ouvido pela PJ, mais tarde, o médico João Jorge viria a dizer que não recordava de ter visto hematomas na cara de Ihor Homeniuk.
Depois de receber o resultado da autópsia e a denúncia anónima, a PJ identificou rapidamente todos os inspetores, vigilantes e funcionários que estavam no Centro de Instalação Temporária no aeroporto de Lisboa e ordenou que fossem preservadas todas as imagens de videovigilânica que pudessem ajudar a montar as peças do puzzle.
Três inspetores do SEF acabariam por ser detidos e acusados pelo MP — aguardam em prisão domiciliária o julgamento que arranca a 20 de janeiro. No entanto, o relatório da Inspeção-Geral da Administração Interna aponta o dedo a 12 pessoas alegadamente envolvidas na morte e no encobrimento deste homicídio — que já provocou a demissão de quatro pessoas, incluindo a diretora do SEF.