Escassos dias após a morte de Ihor Homeniuk no passado 12 de março, enquanto estava à guarda do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), no Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa, a Polícia Judiciária já tinha identificado as câmaras de videovigilância cujas imagens era obrigatório guardar e preservar, para ajudar a perceber aquilo que tinha acontecido ao cidadão ucraniano, de 40 anos, por cuja morte viriam entretanto a ser acusados os inspetores do SEF Bruno Sousa, Duarte Laja e Luís Silva, detidos logo no final de março.
Menos de duas semanas mais tarde, os inspetores da Polícia Judiciária já tinham na sua posse um DVD com cerca de 12 horas de imagens captadas no dia do homicídio de Ihor Homeniuk, entre as 7h e as 19h, por quatro câmaras diferentes, uma do sistema de videovigilância do Aeroporto de Lisboa, três do sistema de videovigilância do SEF, todas colocadas em locais estratégicos do Centro de Instalação Temporária para onde, na altura, eram enviados todos os requerentes de asilo e os viajantes cuja entrada em Portugal tivesse sido recusada pela força que assegura o controlo das fronteiras portuguesas.
Nenhuma das câmaras mostra o interior da Sala dos Médicos do Mundo, para onde o ucraniano tinha sido levado já ao fim do dia anterior, para passar uma noite que os vigilantes da empresa privada que assegura a segurança do centro descreveram como agitada, e onde viria a morrer, para lá das 18h, quase 24 horas mais tarde. Apesar disso, as imagens, que têm sido publicadas em órgãos de comunicação social, foram essenciais para a PJ desvendar aquilo que, segundo a acusação do Ministério Público, aconteceu no interior da divisão, equipada com uma mesa e cadeiras, um armário, uma marquesa e uma zona de casa de banho adjacente.
Apontadas, uma para a entrada do centro, outra para a zona da receção, outra para o corredor que dá acesso à Sala dos Médicos e uma última justamente no sentido oposto, a partir da ombreira da porta da divisão onde o ucraniano morreu, as câmaras eternizaram todas as pessoas que entraram e saíram do espaço — e os objetos que transportaram no trajeto e o tempo que permaneceram lá dentro.
No final, o filme a que os inspetores da PJ tiveram acesso acabou por consubstanciar as principais conclusões da autópsia, que determinou que Ihor Homeniuk morreu não de causas naturais, como o SEF começou por descrever, mas de forma violenta e por asfixia provocada por pressão em torno do tórax.
Os gestos dos vigilantes e as conclusões da autópsia
Passava pouco das 8h da manhã quando começou o corrupio dos vigilantes do Centro de Instalação Temporária ao longo do corredor de acesso à Sala dos Médicos, dando a entender que algo de errado se passava no interior. Um após o outro, comprovam as imagens, quatro vigilantes, dois homens e duas mulheres, foram assomando à porta, não se detendo no espaço mais do que breves instantes — sendo que, dez minutos depois, regressaram, já acompanhados do coordenador do centro, acabado de chegar às instalações.
Eram 8h30 quando Bruno Sousa, Luís Silva e Duarte Laja, os inspetores do SEF acusados entretanto por um crime de homicídio qualificado em coautoria e outro de posse de arma proibida, chegaram ao centro. Dois minutos depois, entraram na sala onde estava Ihor Homeniuk — Luís Silva trazia umas ligaduras brancas, que entretanto pousou numa mesa, e entrou na divisão de luvas calçadas, com um bastão extensível preto na mão direita; Bruno Sousa transportava um par de algemas.
Dois minutos depois de os três inspetores entrarem na sala, o coordenador do centro apareceu à porta — manteve-se lá durante 30 segundos e foi-se embora; menos de um minuto depois regressou, mas voltou a hesitar e afastou-se sem nunca chegar a entrar, acabando mesmo por sair das instalações do centro, apenas sete minutos depois de os inspetores do SEF terem chegado. Antes de março chegar ao fim, ser-lhe-ia instaurado um processo-disciplinar pela Inspeção-Geral da Administração Interna, bem como aos três inspetores do SEF e ao diretor e ao subdiretor de Fronteiras de Lisboa.
Por essa altura, mostram as imagens, Luís Silva já tinha saído da Sala dos Médicos, para ir buscar as ligaduras, e voltado a entrar. Em menos de dez minutos, o inspetor do SEF saiu e entrou na sala por três vezes, numa delas trouxe um objeto impossível de decifrar, na última voltou a calçar as luvas, mesmo antes de passar a soleira da porta.
Foi nessa altura que quatro vigilantes voltaram a ir espreitar à sala, uns atrás dos outros — com a única mulher entre eles a tapar o nariz com a gola da camisola que trazia vestida, gesto que voltaria a repetir menos de uma hora mais tarde e que bate certo com os relatos que mais tarde vieram a público sobre o forte cheiro a urina que emanava da sala onde morreu Ihor Homeniuk.
Depois de observarem o que se passava dentro do espaço — onde estavam, para além do ucraniano, os inspetores Bruno Sousa, Luís Silva e Duarte Laja —, os vigilantes juntaram-se aos colegas, junto ao balcão da receção. Uma vez aí, mostram também as imagens que a PJ analisou menos de duas semanas depois do homicídio, parecem ter mimetizado aquilo que teriam acabado de testemunhar: um deles simula repetidamente o gesto de bater com alguma coisa no braço de alguém; o outro cruza os braços atrás das costas, como que para exemplificar os movimentos de uma pessoa algemada.
No relatório da autópsia é descrito que o cadáver de Ihor Homeniuk apresentava inúmeras equimoses no tronco, na cara e nos membros, e que no antebraço esquerdo tinha uma marca com cerca de 3 centímetros de largura, compatível com uma pancada com um cassetete. Nos pulsos tinha feridas, provavelmente resultantes, considerou o médico legista, de horas passadas com os braços cruzados atrás das costas, com os punhos presos por algemas.
No abdómen, na parte esquerda do corpo, o responsável pela autópsia destacou uma de entre inúmeras nódoas negras — que estabeleceu ter sido provocada por um pontapé, desferido por um pé calçado com uma “bota tipo tropa”, num momento em que a vítima estaria deitada de bruços.
Ihor Homeniuk estaria nessa posição, de barriga para baixo, presumivelmente manietado com um joelho nas costas, quando lhe foram partidas várias costelas — nenhuma delas na zona habitualmente afetada durante manobras de reanimação, fez questão de ressalvar o médico legista. Terá sido essa pressão, nessa posição, que provocou a constrição do tórax que fez com que o ucraniano acabasse por asfixiar e morrer.
Quase 10 horas sem assistência médica
Às 8h58, quando Bruno Sousa, Luís Silva e Duarte Laja saíram do Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa, menos de meia hora depois de terem chegado, outros dois inspetores do SEF já tinham também ido até à Sala dos Médicos, onde não permaneceram durante mais de 20 segundos. O que significa que, àquela hora, quase dez horas antes de ser declarado o óbito de Ihor Homeniuk, pelo menos sete pessoas, para além dos três inspetores entretanto acusados pelo seu homicídio, tinham conhecimento direto do que estava a acontecer no interior da Sala dos Médicos — e que todos negam que tenha sido um quadro de violência e agressões.
Até às 10h30, hora em que um vigilante entrou na divisão, com um copo de água na mão, os demais vigilantes do Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa foram algumas vezes verificar o estado do cidadão ucraniano, utilizando luvas e máscaras respiratórias (cujo uso na altura ainda não se tinha generalizado pela pandemia).
Já depois das 16h30, numa altura em que estavam a ser servidos os lanches aos restantes ocupantes do centro, um outro inspetor do SEF, recém-chegado às instalações, dirigiu-se à sala, entrou e saiu, logo a seguir, para ir também buscar uma máscara. Minutos depois, o inspetor-chefe que o acompanhava, já de luvas calçadas, ainda entrou na divisão onde estava Ihor Homeniuk a empurrar uma cadeira de rodas — mas saiu no espaço de segundos e, ato contínuo, pegou no telefone.
Durante 20 minutos, não fez mais nada senão falar, primeiro ao telemóvel, depois através do telefone fixo da receção do Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa. Eram 17h31 quando três elementos da Cruz Vermelha Portuguesa entraram no quarto para prestar assistência a Ihor Homeniuk. Dali a uma hora e nove minutos seria declarado morto.