As contas do Montepio estão “estabilizadas”, a mutualista “tem quase 200 anos e nunca falhou” a pagar às pessoas os juros das suas poupanças e o presidente, Tomás Correia… “sim, ele está num processo de avaliação de idoneidade. Mas está ele e estão uma data de outros” gestores financeiros em Portugal — e foi “o pulso forte dele” que manteve a instituição viva. Isto é o que se ouve quando se visita as agências do Banco Montepio, sob a capa de um “cliente-mistério” com dinheiro para investir, mas preocupado com as notícias nos jornais. Notícias que dizem que numa reunião do conselho consultivo do Banco de Portugal se comparou o Montepio com o BES e se falou em “picar a bolha”. Essas notícias, ouvimos, são plantadas por outras “fações”, de “outras cores políticas”, demonstrando que “todos ambicionam o poleiro”.
Nos próximos dias, até ao final do mês de outubro, o supervisor que passou a ter a tutela financeira da mutualista Montepio — a ASF — irá tornar público o seu chumbo ao registo do presidente Tomás Correia (já comunicado informalmente ao próprio), marcando o fim de uma era na organização centenária em que mais de 600 mil portugueses têm aplicadas poupanças — poupanças que o primeiro-ministro, António Costa, garantiu proteger.
A decisão da autoridade dos seguros será desfavorável apenas para Tomás Correia, avançou o Jornal Económico, mas o Observador apurou junto de fonte próxima que há pelo menos mais um gestor — Luís Almeida, visto como o sucessor predileto de Tomás Correia — que também “irá ter problemas a prazo” em manter a idoneidade. Para já, contudo, o supervisor receia não estar na posse de dados concretos suficientes para recusar completamente a idoneidade de Luís Almeida sem que exista o risco de tal decisão poder ser contestada em tribunal posteriormente.
Ainda assim, embora Luís Almeida vá ter autorização para continuar (apenas) como gestor, a ASF terá barrado a proposta do seu nome para o topo da hierarquia na mutualista. O Banco de Portugal já colocou em causa o percurso de Luís Almeida — é visado numa auditoria da Deloitte ao Finibanco Angola (já partilhada pelo Banco de Portugal com a ASF) e está, também, a ser investigado pela sua participação na administração do Banco Montepio, no tempo de Félix Morgado, no polémico negócio das “Vogais Dinâmicas”, por entre outras suspeitas de irregularidades e falhas de controlo interno.
Tomás Correia de saída? A idoneidade (ou falta dela) dos possíveis sucessores
Tomás Correia garante que “de certeza absoluta” não irá aproveitar para sair na reunião desta semana do Conselho Geral da mutualista — um filme já visto no passado recente –, prometendo que não irá deixar-se “condicionar por coisa nenhuma”. Mas não há como fugir ao facto de que, no dia 4 de novembro, quando a mutualista realizar a sua assembleia geral no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, já será um dado público que Tomás Correia foi recusado para o cargo (uma pronúncia que o próprio poderá evitar se retirar, antecipadamente, o registo).
A alternativa que Tomás Correia estará a preparar é Virgílio Lima, um histórico do Montepio (e próximo de Tomás Correia) que sempre esteve mais ligado à área dos seguros. Foi administrador da Lusitania, uma companhia de seguros multada (em 20,5 milhões de euros) pela Autoridade da Concorrência, num processo de cartelização. Virgílio Lima é, segundo informações recolhidas pelo Observador, o trunfo de Tomás Correia para manter um ascendente sobre a mutualista, mesmo saindo da liderança formal.
O problema é que a saída do “ratinho da lezíria” (cujo trajeto o Observador descreveu neste perfil, em março) não irá, por artes mágicas, solucionar os graves problemas acumulados nos últimos anos pela mutualista Montepio. Problemas que levaram, segundo o Público, um conselheiro do Banco de Portugal — João Talone — a dizer, numa reunião no supervisor financeiro, em março de 2018, que os perigos do Montepio seriam comparáveis aos do Banco Espírito Santo.
Conselheiros do Banco de Portugal compararam Montepio a um “esquema Ponzi” e ao BES
A vice-governadora do BdP que falou em “picar a bolha”
O título da notícia do jornal Público da última segunda-feira dava destaque ao facto de esse membro do conselho consultivo do Banco de Portugal ter feito uma comparação entre o Montepio e o defunto Banco Espírito Santo. Mas acabou por ser secundarizado o facto de, segundo a notícia, a até agora vice-governadora Elisa Ferreira ter falado no risco de “picar a bolha“.
A reflexão de João Talone, conselheiro nomeado pelo Estado para o conselho consultivo do Banco de Portugal, era que “o que se está a passar no Montepio se assemelha a um esquema Ponzi, que se rebentar abrirá um buraco de mais de dois mil milhões de euros“. Um esquema Ponzi é, em termos simples, um esquema fraudulento de investimento em que os rendimentos dos investidores são pagos não com o retorno de verdadeiros investimentos mas, sim, com as entradas de novos investidores.
O conselheiro insistiu na proibição de venda de produtos de aforro (modalidades de capitalização é o nome formal) aos balcões do Banco Montepio — anteriormente conhecido como a Caixa Económica Montepio Geral. “Em Inglaterra, o sistema é muito regulado e, por mais regulamentos que se façam, se se fixarem objetivos e metas de venda de produtos aos trabalhadores, é impossível evitar o misselling“, terá dito João Talone, isto é, a venda enganosa de produtos mutualistas como se fossem depósitos, por exemplo.
Terá sido nesse enquadramento que alguns dos chamados “lesados do BES” terão sido levados a investir em produtos de alto risco como o papel comercial (dívida de curto prazo) das empresas do Grupo Espírito Santo, aos balcões do Banco Espírito Santo. Muitos alegaram que os produtos lhe foram apresentados como depósitos bancários, garantidos pelo Fundo de Garantia de Depósitos, mas isso não parece estar a acontecer nos balcões do Banco Montepio — pelo menos quando o “cliente” que se apresenta perante os bancários é um jovem urbano na casa dos 30 anos e instrução universitária.
As visitas do cliente-mistério do Observador: “Todos ambicionam o poleiro”
Vestindo a pele de cliente-mistério à procura de soluções para aplicar uma herança (doação familiar), o Observador constatou em várias visitas a sucursais do Banco Montepio que essa venda de “modalidades mutualistas” segue de vento em popa — apesar de Elisa Ferreira ter dito nessa reunião do conselho consultivo (noticiada pelo Público) que foi implementado, por pressão do Banco de Portugal, um sistema de portas estanques, de controlos rígidos, para separar os interesses da atividade bancária dos da associação mutualista.
Ora, só em uma das agências visitadas pelo cliente-mistério do Observador (uma agência que, como a maioria, não tem a presença de um “gestor mutualista”) é que foi dito que “a aquisição de novos associados será preferencialmente feito através do gestor mutualista”.
“Nós aqui fazemos gestão de produtos de mutualistas”, explicou o bancário. “Se um cliente já tiver produtos mutualistas, nós podemos processar reembolsos, ou outras operações. E podemos dar-lhe, se o senhor quiser, documentação sobre produtos mutualistas”. Mas para subscrever produtos (o que implica passar a ser associado), o bancário perguntou ao cliente — tentando esconder algum desconforto — se este tinha disponibilidade para se deslocar a uma das agências do Montepio onde existe um agente mutualista exclusivamente dedicado e “com mais informação” sobre os produtos mutualistas.
Esse caso foi, porém, a exceção. Em todas as outras agências visitadas na última semana pelo cliente-mistério do Observador, notou-se uma grande proatividade em vender produtos mutualistas — muito maior proatividade do que em oferecer depósitos a prazo (sendo certo que as taxas de juro dos depósitos no Banco Montepio, ou em qualquer outro banco europeu, não ajudam).
Além disso, aos balcões do Banco Montepio apresenta-se a situação financeira da mutualista como perfeitamente benigna e menorizam-se os “problemas reputacionais” do líder Tomás Correia, multado pelo Banco de Portugal (BdP) em 1,25 milhões de euros por ter sido autor “a título doloso” de irregularidades no tempo em que foi presidente da Caixa Económica, entre 2008 e 2015.
“Eu tenho a minha opinião, é claro, mas posso-lhe dizer que se ele não fosse sério… hoje em dia, há questões como a idoneidade e, até ao momento, ninguém lha tirou“, disse um dos funcionários do Banco Montepio, procurando aliviar qualquer ceticismo na mente do cliente. “Até ao momento não transitou em julgado nenhuma das acusações que lhe foram feitas — e em algumas situações de que se têm falado ele, depois, no tribunal, tem-se safado muito bem”, salientou o bancário, em alusão à anulação por um tribunal de Santarém das acusações contra Tomás Correia, que o tribunal considerou ter sido prejudicado no seu direito de defesa (como já tinha acontecido num caso semelhante no BES, em que o Banco de Portugal também recorreu e o caso acabou por ser reativado).
Banco de Portugal recorre de decisão judicial que anulou multas ao Montepio
E as notícias que comparam o Montepio com o BES? “Há sempre notícias, porque na mutualista qualquer pessoa pode candidatar-se, e há sempre grupos, fações, ligados a cores políticas ou outros grupos — e todos ambicionam o poleiro“, afirmou o bancário, perguntando ao cliente se tinha lido a notícia toda e se tinha noção de que se referia a uma reunião do Banco de Portugal que já tinha acontecido “há mais de um ano e meio. Pois…”
Este funcionário referiu que durante “alguns meses” se suspendeu a venda de produtos mutualistas naquela dependência do Banco Montepio, por razões de que não se recorda, mas essa distribuição foi retomada pela mesma altura em que, por exemplo, o instrumento de poupança mais vendido — o “Capital Certo” mudou de nome para “Prazo Certo”, uma pequena grande alteração que não evita que estejamos a falar “de uma poupança perfeitamente idêntica ao que era“, afirmou.
O Observador contactou fonte oficial da Associação Mutualista Montepio Geral para perceber que suspensão foi essa, mas até à publicação deste artigo não foi dado esse esclarecimento.
“Montepio tem quase 200 anos e nunca um produto falhou”
Regra geral, os funcionários do Banco Montepio deixaram claro que estes produtos não são o mesmo que um depósito bancário. Porém, numa terceira agência visitada pelo Observador, ouvimos que, embora como regra básica da poupança não se deva “colocar os ovos todos no mesmo cesto”, “a associação mutualista Montepio tem quase 200 anos e nunca um produto falhou por iniciativa por Montepio”.
A opção, referiu a funcionária, passa sempre por uma ponderação do cliente, sobre se está disposto a aceitar um risco maior em troca de uma remuneração (bem) mais atrativa, “com juros crescentes”. Mas a conversa muda um pouco quando se visita uma agência maior onde, aqui sim, há um gestor mutualista. “Risco maior por não estar no fundo de garantia de depósitos do Estado? Sejamos francos: acha que se um banco tiver problemas o Estado tem dinheiro para lhe salvar o depósito [até 100 mil euros] imediatamente? Isso do fundo de garantia de depósitos é relativo“, advogou o gestor mutualista, sem saber que estava a falar com um jornalista.
Quanto a Tomás Correia, o gestor mutualista procurou sossegar a preocupação do possível cliente: “Já sabemos que não se vai recandidatar a mais mandatos, está com 73 anos. Tem mais é que aproveitar, usufruir um bocadinho”. E, sim, Tomás Correia “está num processo por causa da idoneidade — mas está ele e estão uma data deles“.
“Mas sabe uma coisa?”, contrapôs: Tomás Correia “fez muito por isto, nunca tivemos um despedimento coletivo, congelaram salários — sim, como em todo o lado — mas se calhar foi o pulso forte dele que manteve isto“, afirmou o gestor, criticando os jornais por publicarem notícias tendencialmente negativas sempre que se aproxima uma assembleia geral importante para a mutualista (a próxima será a 4 de novembro).
Apesar do ceticismo do gestor em relação às vantagens do fundo de garantia de depósitos, a situação financeira da mutualista Montepio há muito que suscita as maiores dúvidas. Houve a tentativa falhada de aumento de capital para entrada da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, um negócio de milhões que acabaria por ser de tostões, e a “alquimia fiscal” que permitiu à mutualista evitar a apresentação de um prejuízo consolidado superior a 200 milhões de euros, relativo a 2017. Mas a mutualista continua a ter dificuldades devido à elevada exposição às imparidades e ao fraco negócio do Banco Montepio e, também, devido aos resultados pobres de muitas das outras mais de 40 empresas do grupo, com destaque para a Lusitania SA (não vida).
A agravar estes problemas, o Montepio está a perder associados a um ritmo preocupante. Eugénio Rosa, que foi membro do conselho geral do Banco Montepio e tem sido uma das vozes de oposição ao poder de Tomás Correia, escreveu num estudo publicado recentemente no seu blog que, “no fim de 2018, Tomás Correia apresentou um Programa de Atividades e Orçamento de 2019 para Associação Mutualista fantasioso, que, à semelhança dos anos anteriores, nunca é cumprido e apenas serve para iludir quem quer ser, mais uma vez, enganado”.
Mutualista Montepio perdeu mil associados por mês no ano passado
Esse plano, diz Eugénio Rosa, “previa que o número de associados aumentasse, entre 2018 e 2019, de 612.000 para 636.000, mas o que tem acontecido é uma diminuição de quase 1.000 associados por mês“. Por outro lado, previa também que a margem associativa (a diferença entre entradas e saídas de poupanças) fosse positiva no montante de 121,3 milhões de euros, mas nos oito primeiros meses de 2019 a margem associativa foi nula“.
Noutro plano, o da liquidez imediata (meios financeiros que podem ser utilizados de imediato para reembolsar os associados), Eugénio Rosa lembra que o orçamento para 2019 previa em “Caixa e Bancos” existirem 236,6 milhões de euros, e a realidade é que na data referida existiam 150 milhões”. Por outro lado, “em obrigações, que podem ser rapidamente convertidas em dinheiro, previa 465 milhões euros e devem ser pouco mais de 360 milhões de euros — estando cerca de 150 milhões de euros aplicados em dívida subordinada do Banco Montepio”, ou seja, “não podem ser transformados imediatamente em dinheiro porque, se fossem resgatados isso iria afetar os rácios de capital, o que não é permitido pelo Banco de Portugal”.
“Assim”, conclui Eugénio Rosa, “se um número elevado de associados, como aconteceu já no passado, quiser levantar as suas poupanças surgirão dificuldades“. Basta lembrar as dificuldades que surgiram nos últimos tempos da administração de Félix Morgado, em que terão sido retirados da mutualista quase 500 milhões de euros em produtos com receios em relação à instabilidade governativa da organização. Se uma situação desse calibre se repetir, diz o economista, pode não haver saída — um haircut (redução do valor) das poupanças pode ser decidido por uma maioria de dois terços reunida em assembleia geral.
É claro que, nesse caso, já foi dada a garantia governamental de que o Estado está pronto a intervir caso seja necessário, o que normalmente significa recorrer a dinheiro dos contribuintes. Na primavera de 2018, não só o primeiro-ministro, António Costa, garantiu no parlamento que seria feito “tudo para proteger as 600 mil famílias que confiaram numa instituição [a mutualista] e que aí têm as suas poupanças” — mas também Mário Centeno disse, em entrevista ao Jornal de Negócios, que “se a associação mutualista Montepio Geral precisar, o Governo deve estar disponível para a ajudar”.
O anúncio da ASF que causou mal-estar na sede da mutualista
Este é um vaticínio que se baseia, em certa medida, nos cálculos de Eugénio Rosa, porque não é fácil conhecer os números atualizados com exatidão — nem publicamente nem para os reguladores. Aliás, causou algum mal-estar na Rua do Ouro, em Lisboa (onde fica a sede da mutualista Montepio) o lançamento, pela ASF, da consulta pública com vista à definição da “norma regulamentar que visa regular a prestação inicial de informação pelas associações mutualistas abrangidas pelo regime transitório de supervisão para efeitos do exercício dos poderes que estão legalmente cometidos à ASF”.
Isto é, numa altura decisiva para o Montepio, entre reuniões do conselho geral, assembleias gerais e decisões iminentes sobre a idoneidade de Tomás Correia e dos outros gestores, a autoridade supervisora terá procurado enviar um sinal de que não irá ter contemplações na (previsivelmente) difícil adaptação que a mutualista Montepio às regras de reporte financeiro, compliance e outras matérias que são obrigatórias para todas as seguradoras europeias.
Foi dado à mutualista um prazo de 12 anos para fazer essa adaptação, o que pode parecer muito tempo — mas poderá não ser tanto tempo assim quando se pensa na vastíssima panóplia de mecanismos que a mutualista terá de introduzir. Será preciso ter as pessoas certas nas lideranças, gestores que olhem para as alterações impostas pelo novo código das mutualistas de forma positiva, caso contrário adivinham-se anos de tormento para a mutualista na sua relação com o seu novo supervisor.
Para já, porém, à margem das questões relacionadas com a continuidade de Tomás Correia, os mutualistas preparam a assembleia geral do próximo dia 4 de novembro. Um encontro em que a aprovação dos novos estatutos da mutualista está no topo da ordem de trabalhos. A proposta de novos seguiu no final de agosto para o Ministério do Trabalho, ainda liderado por José António Vieira da Silva, para que a tutela emitisse um parecer sobre os seus termos.
O “visto” da tutela foi descrito, na altura, como sendo fundamental para avançar com o processo, já que – escrevia a agência Lusa – o ministério de Vieira da Silva “tem de dar um parecer sobre a proposta antes de esta ser levada a assembleia-geral para ser aprovada pelos associados”.
Ora, questionado pelo Observador, o ministério esclareceu que, na realidade, “as alterações estatutárias realizadas pelas associações mutualistas não carecem de parecer prévio da tutela“.
Ou seja, não há nada na lei que obrigue a que esse parecer seja pedido, mas, “no entanto, é a prática seguida ao longo dos anos por muitas associações: pedir um parecer prévio de forma a garantir que o texto estatutário que vier posteriormente a ser aprovado em assembleia geral de associados está em conformidade com as questões de legalidade”.
“Depois será sempre necessário um processo de registo posterior à realização da Assembleia Geral”, remata fonte oficial do Ministério do Trabalho e Segurança Social.