Foram mais de duas horas de intervenções de especialistas para darem conta da situação epidemiológica de Covid-19 em Portugal. Depois de dois meses de suspensão, esta “reunião do Infarmed” — como ficaram conhecidas as sessões com especialistas, políticos e parceiros sociais, uma vez que as anteriores decorreram sempre no Infarmed — teve, pela primeira vez, uma primeira parte transmitida em direto no canal de YouTube do Governo.
Os especialistas que tomaram o palco dividiram-se entre o ponto de situação epidemiológico e uma atualização da informação sobre temas como o inquérito serológico do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, a utilização da app de rastreamento de contactos (Stayaway Covid) e um estudo de caso em curso. As maiores novidades surgiram, porém, na reta final dessas participações, altura em que vários peritos falaram sobre a relação entre a doenças e as criança e o regresso às escolas previsto para a próxima semana.
Segundo os especialistas, é possível voltar às aulas e, mesmo assim, evitar uma segunda vaga — desde que se limitem os contactos e se ventilem os espaços. E diferentes medidas devem ser tomadas para diferentes idades, sem pôr “tudo no mesmo saco”, já que os estudos mostram que os mais pequenos têm uma menor capacidade de transmitir a doença a outros.
As boas notícias sobre as crianças não apagam, ainda assim, as más sobre o desempenho recente de Portugal: o país está agora entre os sete piores da Europa no que diz respeito à transmissibilidade e a incidência da infeção.
Covid-19. ‘Reuniões do Infarmed’ regressam. E, desta vez, são no Porto
Se escolas reduzirem contactos a 50% ou 30%, é possível evitar segunda onda
Foi um dos dados mais surpreendentes e mais concretos: de acordo com o epidemiologista Manuel Carmo Gomes, é possível evitar uma segunda onda de Covid-19 em Portugal, mas para isso é necessário reduzir em muito os contactos que tínhamos na época pré-Covid. E isso passa não só pelas escolas como também pela comunidade.
O professor de Epidemiologia na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que apresentou as conclusões de um modelo matemático, defendeu que “se as escolas reabrirem com contactos interpessoais em situação pré-Covid, é provável uma segunda onda”. Mas uma redução maior pode trazer mais benefícios: se os contactos forem reduzidos a 50%, passa a haver “grandes incertezas” quanto à possibilidade de uma segunda onda — e as hospitalizações médias esperadas atingem valores “muito baixos”; com apenas 30% dos contactos, o cenário é muito mais optimista: “Não parece que o risco de uma segunda onda seja muito forte”.
Ainda assim, o especialista em epidemiologia sublinha que este cenário pressupõe duas circunstâncias: que a comunidade também reduza para metade os seus contactos em comparação com a época pré-Covid e que as os jovens nas escolas reduzam os seus contactos em 30%.
“O modelo prevê que é possível evitar a segunda onda. É exigente, mas é possível”, afirma Manuel Carmo Gomes, acrescentando que se está a assumir que existe uma homogeneidade entre as pessoas no que toca à suscetibilidade à Covid-19, um assunto que ainda está “pouco esclarecido”.
É “fundamental” ventilar as salas de aula
Manuel Carmo Gomes considerou ainda que é “fundamental” ventilar as salas de aula. “Penso que é uma medida que pode fazer toda a diferença“, afirmou o epidemiologista.
Para o docente universitário, as salas de aulas devem ser ventiladas antes do início de uma aula e no final. Caso a aula tenha uma duração de 1h30 ou 1h45, a sala deverá ser ventilada durante cinco minutos a meio da aula.
Manuel Carmo Gomes deixou ainda outro conselho relativamente às salas de aula: “evitar que haja mais do que uma turma a partilhar a mesma sala”. Isto porque essa possibilidade não só “dificulta o rastreio de contactos”, mas também porque, quando há uma mudança de turma para a mesma sala, se esta não tiver sido ventilada, os alunos vão respirar o mesmo ar que os colegas da aula anterior.
Crianças muito pequenas com menor taxa de transmissão
Parte da sessão foi dedicada à relação entre a Covid e as crianças – “Quem infeta quem?”. Para o debate, Maria João Brito, do Hospital Dona Estefânia, trouxe vários estudos que revelam que na Covid-19 são essencialmente os adultos a infetar as crianças, em casa. E isso, disse a médica, “pode ser reconfortante” na questão da abertura das escolas.
“Nas crianças muito pequenas, a taxa de transmissão parece menor”, indicou Maria João Brito, referindo um outro estudo feito na Coreia do Sul em que se notou uma “transmissão limitada” por parte de crianças. Mas sobretudo as mais pequenas, alertou, avisando que não se deve pôr no mesmo saco crianças muito pequenas e pré-adolescentes ou mesmo adolescentes – aí a capacidade de transmissão parece ser maior.
“A transmissão da SARS-Cov-2 em Pediatria ainda é um enigma”, referiu a pediatra, chamando a atenção para o problema das co-infeções, mesmo depois das escolas fechadas. “Com a entrada na gripe, teremos um problema adicional. Aí sim as crianças poderão transmitir o vírus na comunidade”, disse Maria João Brito.
Abertura parcial no 11º e 12º ano não teve efeito negativo
Carla Nunes, especialista em Epidemiologia da Escola Nacional de Saúde Pública, trouxe uma comparação que permite tirar conclusões positivas, ainda que limitadas. A evolução do número de infeções entre alunos do 11.º e 12.º ano, que voltaram às aulas presenciais de algumas disciplinas, no final do ano passado, não foi muito diferente da registada em crianças de 12 a 15 anos, idades em que não houve regresso à escola.
“Os padrões mantêm-se nos dois grupos. O grupo de 11.º e 12.º ano não mudou o seu padrão de crescimento [do número de casos], não é diferente do grupo de controlo. Não houve um efeito nestas crianças do 11.º e 12.º ano“, afirmou a epidemiologista. Ou seja, não houve diferenças entre a abertura parcial das escolas e a não abertura.
A especialista também recordou um caso de Israel, onde houve um “descontrolo”, ou um “não-controlo”, onde surgiram vários surtos, mas houve efeitos específicos que tornam difícil tirar conclusões: Israel reabriu as escolas com menos cuidados, quase voltando ao que havia antes (salas com muitas pessoas, pouco arejadas e até suspensão do uso de máscara porque houve uma onda de calor).
“Com medidas adequadas de distância física e higiene, as escolas provavelmente não serão ambientes de propagação mais eficazes do que outros ambientes ocupacionais ou de lazer com densidades semelhantes de pessoas”, conclui a investigadora.
Carla Nunes acrescenta que “existem estudos pontuais publicados positivos e negativos sobre o impacto do fecho/reabertura de escolas nos níveis de transmissão na comunidade, embora as evidências sugiram que a reabertura de escolas não foi associada a aumentos significativos na transmissão comunitária”.
Portugal no pior quadrante quanto à transmissibilidade e à incidência
Ausenda Machado, do Instituto Nacional de Saúde Pública Dr. Ricardo Jorge (INSA), levou mapas que comparam a incidência do vírus entre o início de agosto e o início de setembro, e que dão conta de que, no início de agosto, a maior parte dos países tinham uma incidência inferior a 20 casos por 100 mil habitantes. Depois, a meio de agosto, “houve uma progressão desfavorável”, com aumentos em zonas de Espanha e da Europa de Leste — que se mantiveram, com agravamentos progressivos, até ao início de setembro. Algumas regiões espanholas chegaram aos 120 casos por 100 mil habitantes.
A especialista do INSA mostrou vários gráficos que comparam, em diferentes momentos, a incidência e o índice de contágio (Rt). Se a 8 de julho — data da última reunião no Infarmed — Portugal estava numa situação favorável, isto é, “muito próximo” do quadrante com uma baixa incidência e com um Rt inferior a 1, nos dados mais recente surge com mais de 40 casos por 100 mil habitantes — limitar estabelecido pelo INSA —, ou seja, com uma maior incidência e um Rt ligeiramente superior a 1.
O país está, assim, neste momento, no pior quadrante no que diz respeito à transmissibilidade e à incidência. Aliás, está no grupo dos sete piores da Europa, com incidência elevada e transmissão crescente. No mesmo quadrante estão, além de Portugal, países como a Espanha, França, Áustria, Holanda, Croácia e a República Checa. Ainda assim, a especialista do INSA sublinha que “a situação não é tão danosa como noutros países”.
App StayAway Covid com 660 downloads e nove códigos inseridos
José Manuel Mendonça, académico do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC TEC), falou sobre a aplicação StayAway Covid e indicou que, até à manhã desta segunda-feira, 660 mil pessoas fizeram download da aplicação.
Já Luís Goes Pinheiro, presidente dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS), revelou que nove utilizadores usaram os seus códigos de caso positivo para se registarem como doentes infetados na aplicação — e, assim, ser possível alertar as pessoas com quem estiveram em contacto nos últimos 14 dias, de forma anónima.
O responsável avançou ainda outros números, desta feita sobre a plataforma Trace Covid, que segue os doentes depois de testes positivos: há mais de um milhão e 100 mil utentes registados, foram realizadas dois milhões de vigilâncias, 10 mil profissionais de saúde já interagiram com esta ferramenta e nove mil utentes já realizaram operações de vigilância.