Os “dados, algoritmos e contas feitas” que permitiram à secretária de Estado da Proteção Civil afirmar que a área ardida em Portugal até agora foi inferior à esperada baseiam-se num valor que o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) comunicou a Patrícia Gaspar, confirmou fonte oficial do Ministério da Administração Interna ao Observador.
É a “área ardida ponderada”, explicita o ICNF, e estabelece “a área ardida total que se obteria se todos os incêndios seguissem o comportamento médio histórico face à severidade meteorológica do dia e local em que ocorreram”.
O valor da área ardida ponderada obtém-se a partir da média da área ardida de todos os incêndios entre 2012 e 2021 em cada classe de um indicador que reflete a “severidade meteorológica diária local”. Chama-se, precisamente, índice de Severidade Diário (DSR) e quanto maior for o seu valor, maiores serão os níveis de severidade meteorológica. Normalmente isso significa temperaturas mais elevadas, vento forte, ausência de precipitação e humidade relativa baixa, indicava o ICNF num relatório de 2010.
Até 21 de agosto ardeu 67% do que se esperava até esse dia
Como estas condições mudam ao longo do tempo, o índice e a área ardida ponderada são atualizados diariamente. Os números chegam todos os dias à secretária de Patrícia Gaspar, mas os relatórios que vêm a público são quinzenais.
A 31 de julho, cerca de três semanas antes da entrevista da secretária de Estado, a área ardida ponderada era de 59.375 hectares. Mas a área ardida real foi de 40.102 hectares, o que correspondia a 68% da estimativa. “Significa que a área ardida no ano de 2022 é consideravelmente inferior à área ardida expectável tendo em conta a severidade meteorológica verificada”, analisou o ICNF no relatório provisório mais recente.
Dezanove dias depois, Portugal registava cerca de 92 mil hectares de área ardida desde o início do ano. Em entrevista à SIC Notícias na passada sexta-feira, a secretária de Estado Patrícia Gaspar avançou que tinham ardido até ao momento cerca de 92 mil hectares em Portugal, o que correspondia a 70% da “área ardida ponderada” até àquele momento em 2022, segundo a atualização mais recente. Ou seja, pelo menos até ao dia 19 de agosto, tendo em conta as condições meteorológicas, o teor médio de humidade do combustível (como árvores, arbustos, mato ou folhas) no solo, a quantidade desse material que está disponível para arder e a intensidade do fogo, as autoridades atualizaram a área ardida ponderada nos 131.429 hectares.
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Patrícia Gaspar admitiu que esse valor era já “considerável, muito considerável, bastante acima da média que tínhamos na estatística dos anos anteriores”. Aliás, de acordo com o Sistema de Gestão de Informação de Incêndios Florestais, a média anual da área ardida até 31 de agosto entre 2011 e 2021 foi de pouco mais que 75 mil hectares. E os 92 mil hectares a que se referiu a secretária de Estado na semana passada já correspondiam à soma de toda a área ardida em 2020 (67.170 hectares, segundo a Pordata) e em 2021 (28.360 hectares, indica a mesma fonte).
“Ainda assim”, ressalvou Patrícia Gaspar, “se considerarmos aquilo que é a severidade meteorológica, os dados, os algoritmos e as contas feitas dizem que a área ardida que deveríamos ter devia ser 30% superior”: “Ou seja, ardeu 70% daquilo que era suposto arder face às condições de severidade meteorológica que temos”, apontou a secretária da Estado da Proteção Civil.
A 21 de agosto, de acordo com os dados diários (e provisórios) enviados ao Observador, as contas já eram outras. Após a atualização das contas, o valor total de área ardida ponderada até àquele dia, foi revisto para 139.879 hectares. O valor de área ardida real, no entanto, foi de 93.904 hectares, ou seja, 67% da estimativa.
Mas esta terça-feira já se ultrapassaram os 100 mil hectares. Os dados provisório obtidos com base no Sistema de Gestão de Informação de Incêndios Florestais registam que arderam 103.332 hectares — 51% em povoamentos florestais, 39% em matos e 10% em área de agricultura.
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Mas como é que se alcançam estas estimativas? O índice DSR com que o ICNF estima a área ardida esperada para cada dia, e que está por trás das declarações de Patrícia Gaspar e destas atualizações regulares das autoridades, é calculado pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) com base num outro indicador — o Índice Meteorológico de Perigo de Incêndio do Sistema Canadiano, que é medido e atualizado ao longo do tempo a partir dos valores de temperatura e humidade relativa do ar a dois metros de altitude, a intensidade do vento a 10 metros de altitude, a precipitação acumulada em 24 horas e outros seis fatores:
- O teor de humidade dos combustíveis finos (os que pesam 0,25kg por m2) mortos na camada superficial até dois centímetros de profundidade. De acordo com o IPMA, esta medida “reflete as condições meteorológicas nos últimos dois a três dias” e “é um indicador da facilidade de eliminação do combustível”. Consideram-se combustíveis os materiais que podem arder, como árvores, galhos, vegetação seca, flores e plantas.
- O teor de humidade dos combustíveis médios mortos (5kg/m2) na camada entre cinco a 10 centímetros de profundidade. “É um indicador da facilidade de eliminação do combustível”, explicita o instituto de meteorologia.
- O teor de humidade dos combustíveis grossos (25kg/m2) mortos entre 10 a 20 centímetros de profundidade, também chamado de “Código de Seca”. “É um Indicador da necessidade de rescaldo, de potencial reacendimento e de fogo subterrâneo”, prossegue o IPMA.
- O Índice de Combustível Disponível “representa a carga de combustível disponível para a combustão”.
- O Índice de Propagação Inicial “representa a velocidade inicial de progressão do fogo”.
- O Índice Meteorológico de Incêndio representa a intensidade da frente de fogo, que é medida com base na “libertação de energia por unidade de comprimento da frente de chamas”.
Há contas específicas para calcular alguns destes parâmetros. Por exemplo, a intensidade da frente de fogo, ou intensidade de Byram, é uma multiplicação entre a velocidade de propagação das chamas (em metros por segundo), o combustível consumido (o peso seco em quilos do material que está a arder, armazenado por metro quadrado) e o conteúdo calorífico (ou seja, a quantidade de energia armazenada por quilo). E a velocidade de propagação da frente de chamas obtém-se pelo quociente do fluxo de calor recebido da frente de chamas e o calor que é necessário para o combustível entrar em ignição.
Incêndios de Covilhã e Murça responsáveis por 25% da área ardida até 15 de agosto
O último relatório provisório sobre incêndios rurais ocorridos entre 1 de janeiro e 15 de agosto deste ano foi publicado pelo ICNF esta terça-feira e inclui apenas a primeira semana de combate ativo ao incêndio na Serra da Estrela e o primeiro dia da reativação, precisamente no dia 15.
O documento revela que, apesar de se terem registado menos 12% de incêndios rurais, a área ardida foi 30% maior do que a média anual da última década no mesmo período de tempo: 80.760 hectares. Este ano já é o terceiro maior em área ardida dos últimos 10 anos — ultrapassado por 2016 e 2017 —, apesar de ser apenas o sexto em número de incêndios.
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Só os incêndios da Covilhã e de Murça foram responsáveis por mais de um quarto (27%) da área ardida em Portugal até 15 de agosto. E os sete piores fogos em hectares atingidos dos 8.517 incêndios contabilizados (Covilhã, Murça, Pombal, Chaves, Carrazeda de Ansiães, Ourém e Leiria) até essa data bastam para totalizar mais de 50% da área ardida.
Entre janeiro e 15 de agosto deste ano, registaram-se 8.517 incêndios rurais — até 31 de julho eram 4.890 — e arderam 80.760 hectares, 22.406 dos quais só nas últimas duas semanas. Isto traduziu-se numa média de 9,5 hectares de área ardida por incêndio — muito acima da média anual (entre 2012 e 2021) de 6,4 hectares e o maior valor desde os incêndios de 2017, cuja média foi de 16,3 hectares por incêndio rural.
Da mesma forma, e olhando para o mesmo período de tempo dos últimos 10 anos, o número de fogos que atingiram mais de 1000 hectares (16) é mais do dobro da média, sete. Há duas semanas, eram 12 os incêndios com esta dimensão, quatro vezes superior à média até 31 de julho.
Mas qualquer fogo que consuma pelo menos 100 hectares é considerado pelo ICNF como um “grande incêndio”. E se até 31 de julho registaram-se 57 desses fogos, que resultaram em 47.355 hectares de área ardida — ou seja, cerca de 81% do total da área ardida desde o primeiro dia do ano —, até 15 de agosto já eram 66 os fogos com pelo menos 100 hectares e só esses queimaram uma área de 67.658 hectares. É 84% de toda a área ardida verificada até à data.