Aquele que foi considerado o coordenador da investigação paralela da PJM ao furto em Tancos, o major Vasco Brazão, é agora agente imobiliário. Dois outros militares suspensos de funções abririam empresas de sucesso. Há ainda quem trabalhe na construção civil, esteja nos bombeiros, faça voluntariado, como o próprio cérebro do crime, ou esteja apenas dedicado à família enquanto um ponto final no caso não lhes devolve a vida profissional. Certo é que a maior parte dos 23 arguidos — alguns acusados do furto das armas, outros de uma investigação ilegal e paralela ao furto e outros ainda por alegadamente terem mantido o silêncio sobre isso, como o então ministro da Defesa, — acabaram por reinventar as suas vidas enquanto decorria o processo que os envolveu em outubro de 2018 e cuja decisão foi conhecida na primeira semana de janeiro de 2022.
Dos 23 arguidos acusados, onze foram condenados enquanto os restantes foram absolvidos. As penas mais elevadas foram para os autores do assalto, com João Paulino, que pensou e executou o crime, a ser condenado a oito anos de cadeia por terrorismo e tráfico de droga e os arguidos que o ajudaram, Hugo Santos e João Pais, a levarem penas de sete anos e meio e cinco pelo crime de terrorismo respetivamente. Já o amigo de Paulino Jaime Oliveira foi condenado, mas apenas por tráfico de droga, a uma pena de multa de 300 euros.
Da Polícia Judiciária Militar (PJM), o tribunal condenou o então diretor, Luís Vieira, a quatro anos suspensos por um crime de favorecimento pessoal praticado por funcionário. Pelo mesmo crime, o inspetor da PJM, Vasco Brazão, que coordenou a investigação ilegal, o seu colega e amigo Pinto da Costa, e o sargento da GNR de Loulé Lima Santos, a quem pediram colaboração, foram condenados a penas de cinco anos.
Lage de Carvalho, da PJM, e Bruno Ataíde, da GNR, levaram penas de três anos e José Gonçalves, também da GNR, de dois anos e meio, todos pelo mesmo crime que os seus superiores. O tribunal deixou cair os outros crimes de que vinham acusados, como associação criminosa e terrorismo.
Aos militares com penas superiores a três anos, o tribunal proibiu também de exercerem funções públicas durante o período de suspensão. Entre as várias provas em que se baseou para decidir, o coletivo de juízes do Tribunal de Santarém presidido por Nelson Barra, segundo o acórdão assinado a 7 de janeiro, teve também em conta os relatórios sociais feitos a cada um dos arguidos. Neles é possível perceber como a vida de cada um mudou após serem detidos e constituídos arguidos. Assim como o que fizeram para dar a volta às suas vidas num processo cuja decisão só agora foi conhecida, mas que pode ainda ser alvo de recurso para os tribunais superiores levando tempo até tornar-se definitivo.
Ministro demitiu-se e dedicou-se ao ensino. Escreveu um livro
José Azeredo Lopes era ministro da Defesa quando se deu o assalto às instalações militares de Tancos. Acabaria por se demitir em outubro de 2018, mais de um ano depois da recuperação das armas pela PJM, e após o diretor desta força ter sido detido. Segundo o despacho de indiciação, Azeredo Lopes teria mantido vários encontros com Vieira em que este lhe teria dado conta da sua insatisfação pela investigação ao assalto a Tancos ter sido atribuída à PJ civil. Para o Ministério Público, o então governante estava mesmo ao corrente de que uma equipa da PJM decidira então investigar paralelamente o caso, tendo assim conseguido recuperar o material de guerra.
Mal abandonou o ministério, Azeredo Lopes retomou de imediato o seu lugar de professor a Universidade Católica do Porto. Meses depois acabaria também ele por ser constituído arguido no processo e mais tarde acusado de abuso de poder e de prevaricação. Uma acusação confirmada em fase de instrução pelo juiz Carlos Alexandre.
O ex-governante também dá aulas numa universidade em Barcelona, o que manteve mesmo durante o julgamento que decorreu em Santarém e no qual esteve quase sempre presente, e a anotar o que se passava.
Em 2020 acabou mesmo por publicar o segundo volume de um manual de direito internacional com a colaboração de dois doutorados. Aos técnicos com quem falou para o relatório social que consta no processo, Azeredo Lopes confessou que o processo e a exposição mediática de que foi alvo trouxe danos ao nível da sua imagem pessoal.
Vasco Brazão é agora agente imobiliário. Os colegas da PJM têm outras atividades
Além de Luís Vieira, houve mais cinco elementos da PJM que foram acusados no caso Tancos. Entre eles o major Vasco Brazão, que tinha sido responsável pela investigação das mortes num curso de instrução dos comandos e que era à data porta-voz da Polícia Judiciária Militar. Segundo ficou demonstrado em tribunal, Vieira incumbiu-o de liderar a investigação ao furto a Tancos sem que a PJ civil o soubesse.
Com vários louvores no currículo, Brazão estava a regressar de uma missão na República Centro Africana quando foi detido em 2018. Ficou em prisão domiciliária e acabou por ser suspenso de funções. Foi entretanto acusado de cinco crimes de associação criminosa, tráfico e mediação de armas, falsificação e ou contrafação de documento, denegação de justiça e prevaricação, favorecimento pessoal por funcionário, mas continuou a receber salário, acrescido de um suplemento de condição militar, num total de mais de 1300 euros. Para completar os seus rendimentos, e para se manter ativo, Brazão acabou por tornar-se agente imobiliário. Depois de ter feito uma formação iniciou funções após o primeiro confinamento, em 2020.
No seu perfil no site da agência imobiliária refere-se que já vendeu uma casa na zona das Avenidas Novas por mais de meio milhão de euros. Brazão vai permanecer afastado de funções públicas, pelo menos segundo a pena aplicada pelo tribunal que o condenou apenas pelo crime de favorecimento. Paralelamente deverá estar a correr um processo disciplinar no Exército que vai determinar se regressa ou não ao serviço militar.
Já o amigo, que também prestava serviço na PJM, mas no Porto, Roberto Pinto da Costa, tem-se dedicado à família e às atividades culturais e desportivas a que já se dedicava na sua freguesia antes de ser arguido. Tal como Brazão, o processo impediu que fosse promovido a tenente-coronel.
A trabalhar com Pinto da Costa estava também o sargento Lage de Carvalho, vindo da GNR, — e que foi a ponte de contacto com a GNR de Loulé, porque conhecia o sargento Lima Santos. Licenciado em Psicologia, Lage de Carvalho entrou na PJM em 2015 e manteve a amizade com este militar que acabaria por conduzir a PJM a Fechaduras, o informador da PJ que chegou a ser arguido no processo e que Paulino convidou a participar no assalto.
Também ao serviço da PJM, mas passado à reserva com 51 anos ainda antes de ser constituído arguido, o sargento José Costa foi o homem que foi incumbido de fazer a chamada anónima a partir de um cabine telefónica na margem sul dando conta da localização do material de guerra furtado. Afastado do serviço, aproveita para ajudar a companheira, que detém três empresas entre elas uma drogaria. Mantém a ligação que já tinha à Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Alcochete. Foi absolvido no Tribunal de Santarém.
Entre os arguidos que respondiam a Luís Vieira e que foram absolvidos está também Nuno Reboleira, do Laboratório da Polícia Judiciária Militar, representado pela advogada que acabou, enquanto o julgamento corria, por se candidatar à Câmara Municipal da Amadora, a advogada Suzana Garcia. Quando foi constituído arguido no caso Tancos, Reboleira já tinha dado umas aulas e formações, tal a sua dedicação à carreira académica (é licenciado em Engenharia Informática, frequentou um mestrado de Química e está a fazer um doutoramento em Biomédica). Mas a situação processual impediu-o de continuar a dar aulas e de se dedicar a funções públicas. Assim, até ser absolvido do processo, acabou a ir trabalhar com um vizinho como analista de fraude em ocorrências que envolvam incêndios. Acabou com esta experiência por abrir uma empresa em seu nome e aufere mais do que o que ganhava na PJM.
Dos arguidos da GNR, há um que é agora um empresário de sucesso
José Gonçalves, que entre os militares da GNR foi o condenado com a pena mais baixa, disse em tribunal que era apenas o motorista e que se apercebeu apenas das conversas mantidas entre o colega Bruno Ataíde, que era amigo de infância de Paulino, e os militares da PJM. Estava ao serviço do Núcleo de Investigação Criminal da GNR de Loulé quando o seu comandante, o sargento Lima Santos, o chamou a ele e a Bruno Ataíde para a ajudarem a PJM numa investigação cujo processo estava no Porto. Acabaria por perceber que em causa estavam as armas furtadas em Tancos. Conduziu os colegas várias vezes até à zona de Tomar para os encontros com João Paulino, na tentativa de o convencer a entregar as armas.
Quando foi detido, em 2018, José Gonçalves frequentava um curso de Direito. Poucos meses depois de ter sido suspenso da Guarda decidiu abrir um gráfica e tornar-se empresário em nome individual. Uma empresa que tem crescido exponencialmente desde então e que segundo o seu site conta já com mais de 900 clientes em tão pouco tempo de vida. Satisfeito com o sucesso deste projeto, o militar ainda suspenso de funções abriu mais empresas no ramo informático. Está também a desenvolver projetos para câmaras municipais e juntas de freguesia e foi mesmo encarregado de melhorar o sistema de emergência para o território português Plataforma “EstouAqui112”. Para já Gonçalves retira apenas um ordenado mínimo destas empresas, ao qual soma o seu salário de militar. O restante investe para fazer crescer as suas empresas.
O colega Bruno Ataíde, que por coincidência era amigo de João Paulino e que foi ter com ele para lhe pedir informações sobre Fechaduras, assim que foi suspenso foi ajudar o pai que é empresário da área da restauração. Mas com a pandemia de Covid-19 e o encerramento destes estabelecimentos comerciais, começou a dedicar-se à montagem de alumínios com um familiar de um colega de trabalho que tem uma oficina em Olhão. Neste período acabou também por ir viver com a namorada, uma guarda prisional, que engravidou.
Já o sargento Lima Santos, suspenso da GNR desde setembro de 2018, não tem tido qualquer atividade profissional, dedicando-se à reconstrução de uma moradia que comprou com a família e ao apoio aos filhos e ao sogro, que está doente.
Os seus superiores hierárquicos, Luís Sequeira e Amândio Marques, que ao contrário dele foram absolvidos, optaram por também dedicar-se à sua vida familiar. Taciano Correia, que passou a coronel em 2020, assim como o diretor da PJM, Luís Vieira, passaram à reserva.
João Paulino faz voluntariado e de vez em quando trabalha nas obras. Como os amigos
O arguido que foi condenado à pena de prisão mais pesada no caso Tancos por ter sido considerado o “cérebro” do assalto foi libertado em janeiro de 2020, depois de ter estado preso preventivamente desde a sua detenção em outubro de 2018.
No arranque do julgamento, no tribunal de Santarém, Paulino comunicou que tinha já um contrato de trabalho e pediu até dispensa de comparecer, depois de prestar declarações. Ainda assim foi rara a vez que não compareceu nas sessões de julgamento que só terminaram em finais de 2021. Aos técnicos que elaboraram os seu relatório social, Paulino disse que trabalhava numa empresa de construção. O dono da empresa acabou por contar que o ordenado do arguido era de 660 euros, mas como desde janeiro de 2021 ele começou a trabalhar apenas duas a três vezes por semana começou a receber ao dia o valor de 40 euros.
O patrão, assim como o arguido, explicaram que Paulino tinha um trabalho voluntário paralelo num lar em Alvaiázere, nas áreas de canalização e eletricidade. A diretora do lar explicou que o arguido iniciou funções de voluntário indicado pelo Exército, depois de o próprio Paulino ter integrado a bolsa de voluntariado daquela força.
João Paulino entrou nos Fuzileiros com 18 anos. Entre os 21 e os 26 anos não teve nenhuma profissão conhecida até que abriu um bar em Ansião com Fernando Santos, também arguido no processo. Paulino geriu o bar até ser preso, altura em que tinha na sua posse droga. E tribunal disse que era para consumo próprio e que uma parte era para um amigo que lhe pedira. Mas acabou condenado por tráfico de droga.
Como um ex-fuzileiro planeou o assalto a Tancos. E se arrependeu de seguida
No relatório social de Paulino é descrito como um alguém que tem cuidados na sua “apresentação” e que se caracteriza como um “um bom chefe de equipa”. No sítio onde vive, porém, a vizinhança estranha a “vida faustosa” que ele leva, não lhe conhecendo nenhuma ocupação profissional diária.
Com Paulino foi também condenado por terrorismo João Pais, que era vendedor de carros quando foi detido e ficou preso preventivamente. Por esta altura tentava ter o seu próprio negócio na área, mas tudo desmoronou. Já em liberdade o patrão voltou a empregá-lo. Disse aos técnicos que o arguido “beneficiava de uma imagem bastante valorizada no contexto laboral”.
Também acusado estava António Laranginha já com os crimes de agressão e de tráfico de droga no cadastro. Este arguido acabaria preso e a cumprir pena por tráfico já depois de começar o julgamento do caso Tancos, em que acabou absolvido. Esteve também em prisão preventiva, com Paulino, por suspeitas de ter participado no furto de material de guerra, mas acabou por ser libertado. Meses depois foi preso para cumprir pena efetiva por tráfico de droga. No período em que esteve em liberdade, segundo disse, dedicou-se a trabalhos agrícolas e florestais, com máquinas adquiridas em herança pela mulher. O tribunal absolveu-o, porque não ficou provado que tivesse participado no assalto.
Fernando Santos vivia sozinho e era sócio de João Paulino na exploração de um bar em Ansião quando foi preso. Depois de sair em liberdade voltou para casa da mãe, mas em dezembro de 2020 juntou-se com a namorada e começou a trabalhar como servente de pedreiro numa empresa de construção da zona de Ansião. Também ele foi absolvido do crime de terrorismo, associação criminosa, tráfico de armas e de droga.
Outro dos detidos do grupo que também acabou por ser absolvido foi Pedro Marques, que estava no 3.º ano de Engenharia Mecânica e tinha uma empresa quando foi detido. Na prisão trabalhou na cozinha, na biblioteca e na lavandaria. Depois de libertado, em março de 2020, foi viver com o pai, solicitador, e uma irmã. Já em junho de 2020 acabaria por ir viver com a namorada, enfermeira. Quando foi feito o relatório social, Pedro Marques diz que não tinha uma ocupação profissional concreta, mas que ia trabalhando em obras de restauro. Pretendia voltar ao curso e eventualmente à sua empresa de exploração de espaços comerciais.
Também o arguido Hugo Santos, que vive com a família, era licenciado em Turismo e trabalhava numa transportadora quando foi preso. Já em liberdade foi autorizado a trabalhar no mesmo ramo, mas acabou por ir para a construção civil. Foi condenado a uma pena única de sete anos e seis meses por terrorismo e tráfico de droga.